Crônica: A sabatina de tabuada
Viriato Corrêa
Nos dois anos e meio em que alisei os
bancos da escola da povoação, não houve para mim dia pior do que aquele da
sabatina de tabuada.
Saía de casa com o coração deste
tamanhinho, a pressentir coisas ruins.
Eu havia assistido a vários argumentos
de tabuada das classes mais adiantadas e aquilo me causara estranha confusão na
cabeça.
A sabatina de tabuada era, realmente, o
grande pavor dos meninos do meu tempo.
O professor chamava quinze, vinte,
trinta alunos, colocava-os de pé, em fila, conforme a ordem de chamada, e
fazia-lhes perguntas.
A resposta devia ser dada
imediatamente, em quatro ou cinco segundos. Se o aluno da ponta da fila não
respondia acertadamente, o professor, com rapidez, passava ao segundo, ao terceiro,
ao quarto, ao quinto, aos outros.
Adiante, adiante, adiante, e ia ele
dizendo, apressadamente, de indicador esticado, apontando menino a menino.
Quem acertava, ia buscar a palmatória
em cima da grande mesa e dava um "bolo" em cada companheiro.
Se, de ponta a ponta, todos erravam, o
professor é quem dava os "bolos" de ponta a ponta.
As perguntas como se organizavam de
propósito para embaraçar: três vezes sete, multiplicado por doze, menos cinquenta
e dois, dividido por cinco.
Em poucos segundos o aluno devia
calcular mentalmente: 3 x 7 = 21, 21 x 12 = 252, 252 - 52 = 200, 200 : 5 = 40.
Quem ficava no começo da fila não tinha
tempo nenhum para isso. Os cálculos só podiam ser feitos pelos que a sorte colocava
na extremidade oposta.
Quando a pergunta chegava ao meio do
caminho, já os últimos meninos agitavam o indicador da mão direita, a dizer
nervosamente:
— Eu sei, professor, eu sei.
Não tive sorte: o professor chamou-me
em terceiro lugar.
As perguntas passavam por mim sem que
eu tivesse tempo de concluir os cálculos.
Não dei uma resposta acertada. Os
"bolos" estalaram cruelmente nas minhas mãos.
Dez minutos depois de começada a prova,
eu já não suportava as palmatoadas e abria num berreiro.
O velho João Ricardo ralhava-me sem
piedade.
— Cale essa boca! Quem não quer
apanhar, estuda! Por que não estudou?
O argumento durou hora e meia, sem uma
pausa.
Minhas mãos encheram-se de bolhas de
sangue e duas delas rebentaram aos últimos "bolos".
Quando entrei em casa, minha família
estava quase toda reunida no avarandado da rua.
Atirei-me, soluçando, aos braços de
minha mãe. E quando ela me viu de mãozinhas inchadas e sangrando, voltou-se
dolorosamente para meu pai.
— Veja! Isto é coisa que se faça?
Meu pai examinou devagar as minhas
mãos.
— Que foi isto? perguntou.
Contei.
Pôs-se a andar silenciosamente ao
comprido da varanda, as mãos para trás e uma ruga na testa. Minutos depois
exclamou com a voz abafada:
— Eu sempre achei bárbaro o argumento
da tabuada, sempre. Tio Olavo, de cigarro de palha ao canto da boca, atalhou:
— Qual bárbaro, qual nada! No meu tempo
era mais rigoroso do que hoje e ninguém morreu por apanhar. Sem palmatória é
que não pode haver ensino.
— Mas não há necessidade de arrebentar
as mãos das crianças, retrucou minha mãe, com duas lágrimas brilhando nos
olhos.
Tio Olavo era um homem áspero, teimoso
e que, apesar de maduro, se arrebatava facilmente como um rapaz.
— Criança merece sempre bordoada, disse
com o seu vozeirão. O professor nunca é injusto. Às vezes pensamos que ele
castigou demais. É engano. Quando o castigo é demais nesta falta, serve para
suprir o que foi insuficiente ou nenhum naquela outra. Bordoada nunca faz mal à
criança.
— Isso é muito fácil de dizer quando o
filho é alheio, replicou minha mãe.
E, depois de uns instantes de silêncio,
afirmou com a inabalável decisão das criaturas calmas e suaves:
— O Cazuza não vai mais à escola.
Aprende aqui mesmo em casa. Depois ele aprenderá na vila.
À noite, quando me deitei, dormi
imediatamente.
E sonhei. Um sonho muito leve, muito
doce e muito bonito.
Eu ia andando por um caminho liso
quando, de repente, me surgiu uma escola diante dos olhos. Era uma escola
diferente da que eu conhecia — grande, numa grande casa que parecia um palácio.
Para chegar à porta, atravessava-se um
largo jardim florido. Tinha-se a impressão de que o jardim continuava lá
dentro, tantas flores lá dentro havia nos jarros, nas mesas e nos outros
móveis. Pelas janelas abertas, o sol entrava luminosamente. As paredes,
cobertas de mapas, quadros e desenhos, davam aos olhos um efeito deslumbrante.
Havia um mundo de crianças nas salas. E tudo alegre, risonho, em liberdade. Uns
escreviam, outros desenhavam, outros organizavam coleções de insetos, ou liam,
ou traçavam figuras no quadro-negro.
Estavam sentados apenas os que
precisavam estar sentados; moviam-se os que tinham necessidade de se mover. E
todos trabalhavam. Sentia-se que aquela gente cuidava gostosamente dos seus
deveres, sem receio de castigo, sem medo de ninguém.
E o professor que eu não via? Não era
um só, eram muitos professores.
Se não me dissessem eu não acreditava.
Tinham tanta bondade no rosto, tanta brandura, delicadeza e carinho para a
meninada, que eu pensei que fossem apenas companheiros mais velhos dos alunos.
Fiquei à porta, silenciosamente, a
olhar maravilhado para tudo aquilo. Um menino veio ao meu encontro.
— Entra, disse, pegando-me a mão. Aqui
não existe rigor de cadeia, nem palmatória, nem sabatinas de tabuada.
Acordei.
Viriato Corrêa. Cazuza.
27. ed. São Paulo: Nacional, 1997. p. 16-7.
Entendendo a crônica:
01 – Por que o narrador
considera a sabatina de tabuada o pior dia de sua vida na escola?
O narrador
considera a sabatina de tabuada o pior dia de sua vida na escola porque era um
momento de grande pressão, com perguntas complexas e a possibilidade de receber
palmatórias se não respondesse corretamente.
02 – Como o professor
organizava a sabatina de tabuada?
O professor
chamava os alunos em fila, fazia perguntas de tabuada e, se o aluno não
respondesse corretamente, passava para o próximo. Quem acertava ia buscar a
palmatória e dava um "bolo" nos colegas.
03 – Quais eram as
características das perguntas de tabuada que tornavam a tarefa mais difícil?
As perguntas eram complexas, envolvendo
operações como multiplicação, subtração e divisão em uma única pergunta, dificultando
o cálculo mental em poucos segundos.
04 – Como o narrador descreve
a reação dos alunos quando a pergunta chegava ao meio do caminho durante a
sabatina?
O narrador descreve que os últimos alunos
na fila agitavam nervosamente os indicadores da mão direita, demonstrando
ansiedade e vontade de responder à pergunta.
05 – Qual foi o resultado da
participação do narrador na sabatina de tabuada?
O narrador não
teve tempo para concluir os cálculos e não deu uma resposta correta. Como
resultado, recebeu palmatórias nas mãos.
06 – Como a família do
narrador reagiu ao ver suas mãos machucadas após a sabatina?
A família do narrador ficou indignada ao
ver suas mãos machucadas e sangrando. A mãe questionou se era correto castigar
uma criança dessa maneira.
07 – Qual foi o sonho do
narrador após a experiência da sabatina de tabuada?
O narrador sonhou
com uma escola diferente, onde não havia rigidez, palmatória ou sabatinas de
tabuada. Era um lugar alegre, luminoso e livre, com professores bondosos e
alunos cuidando de suas tarefas sem medo de castigo.
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