terça-feira, 16 de janeiro de 2024

CRÔNICA: A SABATINA DE TABUADA - VIRIATO CORRÊA - COM GABARITO

 Crônica: A sabatina de tabuada

              Viriato Corrêa

        Nos dois anos e meio em que alisei os bancos da escola da povoação, não houve para mim dia pior do que aquele da sabatina de tabuada.

        Saía de casa com o coração deste tamanhinho, a pressentir coisas ruins.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjoIBoVdwyzbSpGWaYNf2E71zcYsU1GPy9jVW102ewilqRp9oTBBSATHaobIHHaKxl3M5Vg9PdN-bDju6YLPxBk9DaYvHVCTtFvsQsO3wnc8EqI0nKc4ta1boZFY4s6XN8REyLds-axgamPk22ItGeuAbRM8nziM6z6MU6J0uugJTtc3f1cPZtKHTtlRAY/s1600/TABUADA.jpg


        Eu havia assistido a vários argumentos de tabuada das classes mais adiantadas e aquilo me causara estranha confusão na cabeça.

        A sabatina de tabuada era, realmente, o grande pavor dos meninos do meu tempo.

        O professor chamava quinze, vinte, trinta alunos, colocava-os de pé, em fila, conforme a ordem de chamada, e fazia-lhes perguntas.

        A resposta devia ser dada imediatamente, em quatro ou cinco segundos. Se o aluno da ponta da fila não respondia acertadamente, o professor, com rapidez, passava ao segundo, ao terceiro, ao quarto, ao quinto, aos outros.

        Adiante, adiante, adiante, e ia ele dizendo, apressadamente, de indicador esticado, apontando menino a menino.

        Quem acertava, ia buscar a palmatória em cima da grande mesa e dava um "bolo" em cada companheiro.

        Se, de ponta a ponta, todos erravam, o professor é quem dava os "bolos" de ponta a ponta.

        As perguntas como se organizavam de propósito para embaraçar: três vezes sete, multiplicado por doze, menos cinquenta e dois, dividido por cinco.

        Em poucos segundos o aluno devia calcular mentalmente: 3 x 7 = 21, 21 x 12 = 252, 252 - 52 = 200, 200 : 5 = 40.

        Quem ficava no começo da fila não tinha tempo nenhum para isso. Os cálculos só podiam ser feitos pelos que a sorte colocava na extremidade oposta.

        Quando a pergunta chegava ao meio do caminho, já os últimos meninos agitavam o indicador da mão direita, a dizer nervosamente:

        — Eu sei, professor, eu sei.

        Não tive sorte: o professor chamou-me em terceiro lugar.

        As perguntas passavam por mim sem que eu tivesse tempo de concluir os cálculos.

        Não dei uma resposta acertada. Os "bolos" estalaram cruelmente nas minhas mãos.

        Dez minutos depois de começada a prova, eu já não suportava as palmatoadas e abria num berreiro.

        O velho João Ricardo ralhava-me sem piedade.

        — Cale essa boca! Quem não quer apanhar, estuda! Por que não estudou?

        O argumento durou hora e meia, sem uma pausa.

        Minhas mãos encheram-se de bolhas de sangue e duas delas rebentaram aos últimos "bolos".

        Quando entrei em casa, minha família estava quase toda reunida no avarandado da rua.

        Atirei-me, soluçando, aos braços de minha mãe. E quando ela me viu de mãozinhas inchadas e sangrando, voltou-se dolorosamente para meu pai.

        — Veja! Isto é coisa que se faça?

        Meu pai examinou devagar as minhas mãos.

        — Que foi isto? perguntou.

        Contei.

        Pôs-se a andar silenciosamente ao comprido da varanda, as mãos para trás e uma ruga na testa. Minutos depois exclamou com a voz abafada:

        — Eu sempre achei bárbaro o argumento da tabuada, sempre. Tio Olavo, de cigarro de palha ao canto da boca, atalhou:

        — Qual bárbaro, qual nada! No meu tempo era mais rigoroso do que hoje e ninguém morreu por apanhar. Sem palmatória é que não pode haver ensino.

        — Mas não há necessidade de arrebentar as mãos das crianças, retrucou minha mãe, com duas lágrimas brilhando nos olhos.

        Tio Olavo era um homem áspero, teimoso e que, apesar de maduro, se arrebatava facilmente como um rapaz.

        — Criança merece sempre bordoada, disse com o seu vozeirão. O professor nunca é injusto. Às vezes pensamos que ele castigou demais. É engano. Quando o castigo é demais nesta falta, serve para suprir o que foi insuficiente ou nenhum naquela outra. Bordoada nunca faz mal à criança.

        — Isso é muito fácil de dizer quando o filho é alheio, replicou minha mãe.

        E, depois de uns instantes de silêncio, afirmou com a inabalável decisão das criaturas calmas e suaves:

        — O Cazuza não vai mais à escola. Aprende aqui mesmo em casa. Depois ele aprenderá na vila.

        À noite, quando me deitei, dormi imediatamente.

        E sonhei. Um sonho muito leve, muito doce e muito bonito.

        Eu ia andando por um caminho liso quando, de repente, me surgiu uma escola diante dos olhos. Era uma escola diferente da que eu conhecia — grande, numa grande casa que parecia um palácio.

        Para chegar à porta, atravessava-se um largo jardim florido. Tinha-se a impressão de que o jardim continuava lá dentro, tantas flores lá dentro havia nos jarros, nas mesas e nos outros móveis. Pelas janelas abertas, o sol entrava luminosamente. As paredes, cobertas de mapas, quadros e desenhos, davam aos olhos um efeito deslumbrante. Havia um mundo de crianças nas salas. E tudo alegre, risonho, em liberdade. Uns escreviam, outros desenhavam, outros organizavam coleções de insetos, ou liam, ou traçavam figuras no quadro-negro.

        Estavam sentados apenas os que precisavam estar sentados; moviam-se os que tinham necessidade de se mover. E todos trabalhavam. Sentia-se que aquela gente cuidava gostosamente dos seus deveres, sem receio de castigo, sem medo de ninguém.

        E o professor que eu não via? Não era um só, eram muitos professores.

        Se não me dissessem eu não acreditava. Tinham tanta bondade no rosto, tanta brandura, delicadeza e carinho para a meninada, que eu pensei que fossem apenas companheiros mais velhos dos alunos.

        Fiquei à porta, silenciosamente, a olhar maravilhado para tudo aquilo. Um menino veio ao meu encontro.

        — Entra, disse, pegando-me a mão. Aqui não existe rigor de cadeia, nem palmatória, nem sabatinas de tabuada.

        Acordei.

Viriato Corrêa. Cazuza. 27. ed. São Paulo: Nacional, 1997. p. 16-7.

Entendendo a crônica:

01 – Por que o narrador considera a sabatina de tabuada o pior dia de sua vida na escola?

      O narrador considera a sabatina de tabuada o pior dia de sua vida na escola porque era um momento de grande pressão, com perguntas complexas e a possibilidade de receber palmatórias se não respondesse corretamente.

02 – Como o professor organizava a sabatina de tabuada?

      O professor chamava os alunos em fila, fazia perguntas de tabuada e, se o aluno não respondesse corretamente, passava para o próximo. Quem acertava ia buscar a palmatória e dava um "bolo" nos colegas.

03 – Quais eram as características das perguntas de tabuada que tornavam a tarefa mais difícil?

      As perguntas eram complexas, envolvendo operações como multiplicação, subtração e divisão em uma única pergunta, dificultando o cálculo mental em poucos segundos.

04 – Como o narrador descreve a reação dos alunos quando a pergunta chegava ao meio do caminho durante a sabatina?

      O narrador descreve que os últimos alunos na fila agitavam nervosamente os indicadores da mão direita, demonstrando ansiedade e vontade de responder à pergunta.

05 – Qual foi o resultado da participação do narrador na sabatina de tabuada?

      O narrador não teve tempo para concluir os cálculos e não deu uma resposta correta. Como resultado, recebeu palmatórias nas mãos.

06 – Como a família do narrador reagiu ao ver suas mãos machucadas após a sabatina?

      A família do narrador ficou indignada ao ver suas mãos machucadas e sangrando. A mãe questionou se era correto castigar uma criança dessa maneira.

07 – Qual foi o sonho do narrador após a experiência da sabatina de tabuada?

      O narrador sonhou com uma escola diferente, onde não havia rigidez, palmatória ou sabatinas de tabuada. Era um lugar alegre, luminoso e livre, com professores bondosos e alunos cuidando de suas tarefas sem medo de castigo.

 

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