Romance: OS SERTÕES – Capítulo III
Euclides da Cunha
O sertanejo é, antes de tudo, um forte.
Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral.
A sua aparência, entretanto, ao
primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o
desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas.
É desgracioso, desengonçado, torto.
Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O andar
sem firmeza, sem aprumo, quase gigante e sinuoso, aparenta a translação de
membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente abatida, num manifestar
de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente. A pé, quando
parado, recosta-se invariavelmente ao primeiro umbral ou parede que encontra; a
cavalo, se sofreia o animal para trocar duas palavras com um conhecido, cai
logo sobre um dos estribos, descansando sobre a espenda da sela. Caminhando,
mesmo a passo rápido, não traça trajetória retilínea e firme. Avança
celeremente, num bambolear característico, de que parecem ser o traço
`geométrico os meandros das trilhas sertanejas. E se na marcha estaca pelo
motivo mais vulgar, para enrolar um cigarro, bater o isqueiro, ou travar
ligeira conversa com um amigo, cai logo – cai é o termo – de cócoras,
atravessando largo tempo numa posição de equilíbrio instável, em que todo o seu
corpo fica suspenso pelos dedos grandes dos pés, sentado sobre os calcanhares,
com uma simplicidade a um tempo ridícula e adorável.
É o homem permanentemente fatigado.
Reflete a preguiça invencível, a atonia
muscular perene, em tudo: na palavra remorada, no gesto contrafeito, no andar
desaprumado, na cadência langorosa das modinhas, na tendência constante à
imobilidade e à quietude.
Entretanto, toda esta aparência de
cansaço ilude.
Nada é mais surpreendedor do que vê-la
desaparecer de improviso. Naquela organização combalida operam-se, em segundos,
transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente
exigindo-lhe o desencadear das energias adormidas. O homem transfigura-se.
Empertiga-se, estadeando novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e
a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes, aclarada pelo olhar
desassombrado e forte; e corrigem-se-lhe, prestes, numa descarga nervosa
instantânea, todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura
vulgar do tabaréu canhestro, reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de
um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e
agilidade extraordinárias.
CUNHA, Euclides da.
Os sertões. São Paulo: Nova Cultural, 2002.
Fonte: Livro – Viva
Português 2° – Ensino médio – Língua portuguesa – 1ª edição 1ª impressão – São
Paulo – 2011. Ed. Ática. p. 277-9.
Entendendo o romance:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Acobreado: amorenado.
·
Atonia: perda de tônus; inércia.
·
Canhestro: desajeitado, torto.
·
Combalido: abalado, enfraquecido.
·
Desempeno: elegância.
·
Empertigar-se: aprumar-se, endireitar-se.
·
Espenda: parte da sela em que se apoia a coxa do cavaleiro.
·
Estadear: demonstrar, ostentar.
·
Hércules-Quasímodo: substantivo formado a partir de: Hércules (indivíduo de força
incomum, assim como o herói grego) e Quasímodo (indivíduo monstruoso, feio,
assim como a personagem literária).
·
Remorado: adiado.
·
Sofrear: suspender ou modificar a marcha de uma cavalgadura puxando as
rédeas.
·
Tabaréu: caipira.
·
Titã: pessoa de características físicas ou morais extraordinárias.
·
Translação: movimento de um corpo em que todos os componentes se deslocam
paralelamente e mantêm as mesmas distâncias entre si.
·
Umbral: local de entrada, cada uma das peças verticais que compõem as
aberturas em que se encaixam portas ou janelas.
02 – Euclides da Cunha
afirma: “O sertanejo é, antes de tudo,
um forte”.
a) Se, de acordo com o pensamento desse autor, o sertanejo é antes de tudo um forte, por que sua força não se revela numa observação inicial?
Porque, de acordo com o texto, suas características físicas
mostrariam-no, à primeira vista, como alguém desgracioso, desengonçado. Seus
gestos e sua postura indicariam uma pessoa preguiçosa, ou seja, sua presença
acabaria contrariando a ideia de que ele é um forte.
b) Considerando o texto, em que situação essa força se revelaria?
Quando aparecesse um incidente que exigisse dele algum tipo de
reação. Daí sua postura e seus gestos se modificariam, ele se tornaria um
gigante ágil e determinado na realização de seus intentos.
03 – A forma é fundamental
na construção desse trecho. O termo “Hércules-Quasímodo”
resume as ideias apresentadas pelo autor sobre aquilo que, para ele, seria a
essência contraditória do sertanejo. Mas o autor não se restringe a esse termo;
ele enumera diversas características para construir sua visão.
a) Aponte no caderno algumas expressões do texto que aproximam o sertanejo de um Hércules.
Ombros possantes, olhar desassombrado e forte, aspecto dominador de
um titã acobreado e potente, desdobramento surpreendente de força e agilidade
extraordinárias.
b) Aponte agora algumas expressões que o relacionam a um Quasímodo.
Desgracioso, desengonçado, torto; fealdade típica dos fracos; andar
sem firmeza, sem aprumo, quase gigante e sinuoso, membros desarticulados;
humildade deprimente; uma simplicidade ridícula e adorável.
04 – A descrição do
sertanejo feita por Euclides da Cunha confirma ou contraria a visão que Lentz,
do livro Canaã, tem do brasileiro em geral? Justifique sua resposta.
Contraria. Lentz
considera os brasileiros preguiçosos, diz que a mestiçagem é negativa. O narrador
de Os sertões escreve que o sertanejo tem certo aspecto aparentemente fatigado,
o que parecia confirmar a visão de Lentz, mas logo destaca a força, o aspecto
dominador e ágil revelado diante de uma necessidade.
05 – A visão da personagem
Lentz sobre o outro – ou
seja, o diferente – é
francamente negativa e preconceituosa, já que considera a mestiçagem dos
brasileiros algo que os tornaria inferiores aos europeus. De outro lado, o
escritor brasileiro Euclides da Cunha, ao descrever o brasileiro do sertão,
enumera diversos aspectos que também demonstram a sua visão sobre o outro. Pensando nisso, responda:
a) De acordo com o ponto de vista atual, que tipos de preconceito podem ser percebidos no discurso apresentado em Os sertões? Explique.
O autor de Os sertões, embora procure compreender o outro, baseia-se
em preconceitos relacionados ao aspecto físico do sertanejo, que ele considera
inferior, “desgracioso”, “desengonçado”, para construir o seu discurso.
b) Qual a sua relação com pessoas que possuem características diferentes das suas? É difícil par você compreender essas diferenças?
Resposta pessoal do aluno.