Palestra: Cinco ideias equivocadas sobre os índios – Fragmento
Boa noite. Eu queria agradecer ao
acadêmico Domício Proença Filho e o Marco Lucchesi pelo convite para participar
desta mesa ao lado da Graça Graúna, né?, a quem eu já conheço de algum tempo.
É... eu gostaria de... de situar é... o problema de uma forma até mais...
é... informal, em tom de conversa mesmo. [...]
Eu quero compartilhar com vocês o
discurso de abertura da Sessão Magna do Quarto Centenário do Brasil, no dia 4
de maio de 1900. Brasil festejava seus quatrocentos anos. Aqui na Glória se
realizou uma missa, cardeal veio, celebrou, etc., e as comemorações
tiveram início com um discurso de um engenheiro e político carioca, que depois
se tornaria prefeito da cidade, o Paulo de Frontin. Ele foi conhecido por ter
ampliado o potencial de abastecimento de água do Rio de Janeiro, não é?,
que era a capital do Brasil. É... no discurso de abertura do Quarto Centenário,
eu vou ler bem devagar, porque eu acho que é extremamente importante esse
discurso, ele diz o seguinte: “O Brasil não é o índio; este, onde a civilização
ainda não se estendeu, perdura com os seus costumes primitivos, sem
adiantamento nem progresso. Descoberto em 1500 pela frota portuguesa ao mando
de Pedro Álvares Cabral, o Brasil é a resultante direta da civilização
ocidental, trazida pela imigração, que lenta, mas continuadamente, foi povoando
o solo. A religião”, continua Paulo de Frontin no seu discurso, “a religião, a
mais poderosa força civilizadora da época, internou-se pelos longínquos e
ínvios sertões brasileiros e, sob o influxo de Nóbrega e Anchieta,
conseguiu assimilar número considerável de aborígenes, que assim se
incorporaram à nação brasileira”. E aí ele arremata no final: “Os selvícolas,
esparsos, ainda abundam nas nossas majestosas florestas e em nada diferem dos
seus ascendentes de 400 anos atrás. Eles não são nem podem ser considerados
parte integrante da nossa nacionalidade; a esta cabe assimilá-los e, não o
conseguindo, eliminá-los”.
O discurso de abertura... quer
dizer, ele falou aquilo que está um pouco na boca de qualquer brasileiro, mas
ele estava ali numa função oficial. Era um engenheiro, que passou pela
escolaridade, teve escolaridade, teve universidade, não é?, um bom
engenheiro, um bom prefeito do Rio de Janeiro, não é?, ele estava ali como
presidente da... da... das comemorações dos quatrocentos anos do Brasil. [...]
Eu só estou citando porque é difícil a gente acreditar que é... uma autoridade
pública, abrindo o aniversário de quatrocentos anos do Brasil, diga que
essa... que o Brasil não tem nada que ver com o índio, que cabe à nação
brasileira assimilá-los e, se não conseguir, eliminá-los, né? Bom, o discurso
choca... mas a prática, ela está aí também, seguindo um pouco essa orientação.
Eu, eu fiquei pensando, eu
escrevi um artigo, que eu trabalho também com meus alunos em sala de aula,
que são os cinco equívocos, os cinco grandes equívocos, que o brasileiro comete
quando pensa no índio. Todos esses equívocos e mais um sexto equívoco ainda,
eles estão presentes nesse curto discurso aqui, nesse trecho curto do
discurso do Paulo de Frontin.
Ele... primeiro... primeiro grande
equívoco: eliminar os índios como matriz formadora da nacionalidade brasileira.
Quer dizer, a presença indígena é muito forte na cultura brasileira, embora nós
não tenhamos um conhecimento, porque não foi feito um inventário dessa
contribuição, não é? Teve uma tese de doutorado defendida na Unicamp alguns
anos atrás que mostra que aquele “r” caipira do interior de São Paulo, de
“morte”, “porta”, “Dirceu”, que esse “r” retroflexo, ele é um som da língua
ofaié xavante, que era falada no interior de São Paulo, em Bauru. Quando eu li
isso, quer dizer, eu me dei conta de como essa enorme variedade dialetal
existente no Brasil, ela poderia ser explicada se nós fizéssemos um inventário
da contribuição que os índios deram na formação do Brasil moderno,
contemporâneo. Então, é um erro, um equívoco muito grande, um preconceito
excluir os índios da matriz formadora de nossa nacionalidade, mas é o que
acontece com muita frequência. [...]
No discurso do Paulo de Frontin tem
também um outro equívoco, que é de situar os índios apenas no passado, é
considerar como é... é... integrantes de um passado que não existe mais e o que
passou, passou. Num texto escrito em 1997 sobre a biodiversidade vista do ponto
de vista de um índio, o Jorge Terena, que é um índio que morreu há alguns
atrás, grande sociólogo indígena, índio Terena, ele escreveu que uma das
consequências mais graves do colonialismo foi justamente tachar de primitivas
as culturas indígenas, considerá-las como obstáculos à modernidade e ao
progresso. Eu quero compartilhar uma pequena citação do que ele disse, do que
ele escreveu. Ele disse: “Eles veem a tradição viva como primitiva, porque não
segue o paradigma ocidental. Assim, os costumes e as tradições, mesmo sendo adequados
para a sobrevivência, deixam de ser considerados como estratégia de futuro,
porque são ou estão localizadas no passado. Tudo aquilo que não é do âmbito do
Ocidente é considerado do passado, desenvolvendo uma noção equivocada em
relação aos povos tradicionais, sobre o seu espaço na história”. Então, os
índios efetivamente fazem parte do nosso passado, mas eles estão encravados
aqui no nosso presente e, queira Deus, que no futuro desse país, porque, se
não, nós estaríamos muito mais empobrecidos seguramente, não é?
É... os dados revelados pelo IBGE na
semana passada, o Censo de 2010, mostra a existência de mais de 830 mil índios.
A população indígena está crescendo no Brasil. Tem um fenômeno novo que é o
fato de que mais de 350 mil índios estão vivendo hoje nas cidades, né? E aí
isso gera um outro equívoco, que é aquele equívoco de considerar como índio
autêntico, né?, só aquele índio que foi descrito pelo Pero Vaz de Caminha, né?,
e tal como ele descreveu. Aquele que tá lá no mato, na floresta, né? É...
o José Saramago ou o Alçada Batista, aqui citado, nenhum dos dois escrevia
como o Pero Vaz de Caminha, mas ninguém diz que eles não eram portugueses
autênticos. Também não se vestiam como Pedro Álvares Cabral, os portugueses de
hoje... ninguém diz que não são autênticos. Então, a gente aceita, quer dizer,
que, como qualquer cultura, todas as culturas são vivas e mudam, mas, quando se
trata da questão indígena, está tão internalizada aquela imagem do índio nu, na
floresta, etc., etc., que a gente não percebe que pas... que quinhentos anos,
cinco séculos passaram e que os índios, no contato com a sociedade colonial,
depois com a sociedade imperial, com a sociedade nacional brasileira, eles,
como todas as outras culturas, também foram se modificando. No discurso do
Paulo de Frontin citado aqui no início, ele também congela essas culturas e ele
considera essas culturas como culturas atrasadas. Ele faz isso por pura
ignorância, ele desconhece, na época também não existia uma... Hoje já
existe, quer dizer, hoje nós temos uma quantidade expressiva de trabalhos na
área de Antropologia, Etnologia, que nos dão conta dos conhecimentos que os
índios trouxeram para a... a... a sociedade nacional. Portanto, considerar
essas culturas como culturas atrasadas é desconhecer que esses povos produziram
saberes, ciência, arte refinada, literatura, poesia, música, religião, não
é?
[...]
Bom, meu tempo se esgotou. Eu me...
coloco à disposição depois, na discussão, para conversar e responder às
perguntas. Muito obrigado.
BESSA FREIRE, José
Ribamar. Seminário realizado em abril de 2012. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=PcDsQE223sg. Acesso
em: 24 nov. 2015.
Fonte: Língua Portuguesa – Se liga na
língua – Literatura, Produção de texto, Linguagem – 2 Ensino Médio – 1ª edição
– São Paulo, 2016 – Moderna – p. 173-8.
Entendendo a palestra:
01 – Que cuidados o falante
tem ao inserir esse discurso?
O palestrante o
contextualiza, informando quando ocorreu o discurso, onde e quem o proferiu.
02 – Diga que tese é essa.
Tese: criticar o
tratamento da questão indígena no Brasil, mostrando que continua a existir
uma visão excludente.
03 – Em que outro trecho do
parágrafo se faz o mesmo tipo de referência?
Outra referência é feita no trecho em que
o falante comenta sua leitura de uma tese universitária.
04 – O que pretende José
Bessa ao se referir aos limites do conhecimento sobre os índios no início do
século XX?
Ao reconhecer os
limites do conhecimento sobre os índios, o falante evita que a crítica seja
considerada inadequada e reforça a ideia de que ela se aplica inteiramente na
atualidade.
05 – Releia os parágrafos
iniciais das duas exposições, os quais aludem à situação de produção dos
textos.
I.
“Bom dia a todos. Ahn... é um prazer tá aqui de volta. Eu tive aqui há umas...
quatro semanas atrás falando pra pais. [...] É uma experiência nova para mim
falar pra pessoas na faixa de idade de vocês. Eu, em geral, tenho como
interlocutores pessoas mais velhas. Então, vocês, ahn..., por favor, me
desculpem se eu ficar um pouco mais formal do que vocês tão acostumados a
se relacionar, né?”
II.
“Boa noite. Eu queria agradecer ao acadêmico Domício Proença Filho e o Marco
Lucchesi pelo convite para participar desta mesa ao lado da Graça Graúna, né?,
a quem eu já conheço de algum tempo. É... eu gostaria de... de situar é... o
problema de uma forma até mais... é... informal, em tom de conversa mesmo.
[...]”
a) As duas aberturas fazem referência à questão da linguagem. Qual é a preocupação comum aos dois falantes?
A preocupação de explicar ao público o nível de linguagem que
empregarão: Pompeia admite que talvez seja formal demais para seus
ouvintes, e Bessa afirma que deseja um tom de conversa.
b) De que maneira Guto Pompeia procurou conquistar a simpatia do público adolescente a quem se dirige?
Ele se desculpa por não estar habituado a conversar com jovens,
já que geralmente conversa com interlocutores mais velhos.
c) Veja uma fotografia da palestra de Guto Pompeia e responda: em sua opinião, o espaço ocupado pelo palestrante e sua posição favorecem essa aproximação com o público? Por quê?
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: A análise do espaço,
constituído por uma mesa, e da posição do falante, sentado, sugere
uma apresentação menos dinâmica, aparentemente menos atraente para o público.
06 – Leia o trecho
correspondente ao momento registrado.
“Eu só estou citando porque é diFÍcil a
gente a-cre-di-tar que é... uma autori- DAde PÚblica, aBRINdo o
aniverSÁrio de quatrocentos anos do Brasil, diga que essa... que o Brasil
não tem nada que ver com o índio, que cabe à nação brasileira assimilá-los e,
se não conseguir, e-li-mi-ná-los, né? Bom, o discurso choca... mas a
prática, ela está aí também, seguindo um pouco essa orientação.”
a) Nesse
trecho, destacamos em maiúsculas as sílabas pronunciadas com bastante
intensidade pelo falante e dividimos as palavras cujas sílabas foram ditas
separadamente. Relacione esses recursos de pronúncia ao conteúdo do texto.
Os recursos de pronúncia chamam a
atenção para a atitude de indignação do falante diante do conteúdo que ele
explora, reforçando sua crítica à maneira como a causa indígena era
compreendida pela autoridade pública citada.
b) Observe,
na foto, que o palestrante gesticula enquanto fala. Que efeito um gestual mais
enfático tem na interação com o ouvinte?
Um gestual enfático torna a apresentação mais
dinâmica, o que contribui para manter a atenção do ouvinte.
07 – Releia um trecho da
parte inicial da mesma palestra.
“Eu
quero compartilhar com vocês o discurso de abertura da Sessão Magna do Quarto
Centenário do Brasil, no dia 4 de maio de 1900. Brasil festejava seus
quatrocentos anos. Aqui na Glória se realizou uma missa, cardeal
veio, celebrou, etc., e as comemorações tiveram início com um discurso de um
engenheiro e político carioca, que depois se tornaria prefeito da cidade,
o Paulo de Frontin. Ele ficou conhecido por ter ampliado o potencial de abastecimento
de água do Rio de Janeiro, não é?, que era a capital do Brasil.”
a) Explique a seguinte afirmação: O trecho “Aqui na Glória se realizou uma missa, cardeal veio, celebrou, etc.” é pouco importante do ponto de vista da informação, mas eficiente para conquistar o ouvinte.
A narração do momento de enunciação do discurso é dispensável para
sua compreensão, mas ajuda a criar uma imagem daquela situação. Essa imagem
torna o discurso mais concreto para o ouvinte, que está sendo introduzido
no assunto.
b) Reflita sobre a lógica do texto e explique: por que é fundamental apresentar Paulo de Frontin ao público?
A intenção do produtor do texto é mostrar que mesmo uma autoridade
pública bem conceituada e com boa formação tinha dificuldade para analisar a
questão indígena sem equívocos ou preconceitos, uma prática que se estende aos
demais brasileiros.
08 – Veja outro recurso
empregado na mesma palestra para mobilizar o ouvinte.
“O
José Saramago ou o Alçada Batista, aqui citado, nenhum dos dois
escrevia como o Pero Vaz de Caminha, mas ninguém diz que eles não eram
portugueses autênticos. Também não se vestiam como Pedro Álvares Cabral, os
portugueses de hoje... ninguém diz que não são autênticos.”
a) Que ideia o palestrante quer tornar clara para o ouvinte?
A ideia de que a identificação de um povo não depende de reconhecer
nele características de seu passado. Portanto, é equivocada a visão que
mantém o indígena como um ser preso à floresta e a formas ancestrais de vida e
de pensamento.
b) Por que a comparação empregada é um recurso argumentativo eficaz?
A comparação constrói um raciocínio lógico incontestável: se a ideia
de evolução é válida para os portugueses, aplica-se igualmente ao povo
indígena.
09 – Compare agora dois
trechos da palestra de Guto Pompeia.
I.
“E você poder fazer o que quer é aquilo que é caracterizado pelo fato de
você ter liberdade, mas você usar a liberdade é diferente de você ter a
liberdade. Porque você ter a liberdade é você PODER fazer o que quer; você
usar a liberdade é você FAZER o que quer, né?”
II.
“Se vocês entram num restaurante, pegam um cardápio, no cardápio tem
trinta pratos que vocês podem comer... Vocês não vão comer os trinta
pratos, por isso vocês têm que escolher um prato, né?, pra comer.”
a) De que modo a analogia com o restaurante explica a relação entre “ter liberdade” e “usar a liberdade”, abordada na fala?
Em um restaurante, o cliente tem a liberdade de escolher
qualquer prato disponível, mas o uso dessa liberdade corresponde à escolha de
um único prato, exigindo uma seleção e uma série de abdicações.
b) Levando em conta o público a que se destina a palestra, qual é a função do uso desse tipo de analogia?
A exposição de Guto Pompeia trata de um tema de ordem filosófica e
analogias como essa favorecem a compreensão dos dados por torná-los mais concretos
e próximos do público, no caso, os adolescentes.
c) Observe o uso do termo “você/vocês” nos dois exemplos. Por que a função de “você” no primeiro trecho está mais próxima da função de um pronome indefinido do que de um pronome de tratamento?
Como pronome de tratamento, “você” se refere ao interlocutor, como
ocorre no segundo trecho em estudo. No primeiro trecho, “você” generaliza,
tendo uso similar a “alguém”.
d) Toda a palestra é marcada pela repetição de “você” e “vocês”. Essa repetição parece ser involuntária, constituindo um defeito de estilo? Justifique.
Não. A repetição cumpre um papel de ênfase e aproxima o texto, que
traz uma verdade filosófica geral, para um universo mais particular,
concreto e próximo do ouvinte.