CONTO: O CÚMPLICE
Modesto Carone
Ele estava sabendo que eu
tinha um dente podre e dolorido, por isso passei a evitá-lo. Pode parecer
estranho que alguém fuja de outro por causa de um dente estragado. Neste caso
porém os motivos são específicos. Em primeiro lugar porque ele vive à minha
sombra; em segundo porque as semelhanças entre eu e ele são tantas que anulam
os contrastes mais notórios. De fato quem olha de fora imagina que somos a
mesma pessoa. É claro que isso não passa de uma ilusão: basta ver a euforia que
o acomete quando meu dente dói. Nessas ocasiões tenho a sensação de que o olho
requintado de uma fera fica cruzando o caminho. Evidentemente ele desaparece
logo que a dor some; mas ressurge com ímpeto dobrado assim que a gengiva começa
a formigar.
Foi prevendo um incidente
mais grave que decidi agir em causa própria. Devo dizer que o resultado não se
fez esperar: pressentindo à tarde que a dor não chegaria ao anoitecer, vasculhei
a casa à procura de um instrumento adequado de defesa. Acaso ou não, topei na
escada do quintal com a velha espingarda de repetição. Ela estava enterrada no
pó, mas lá do fundo o metal emitia o brilho hipnótico de sempre. Nesse lance eu
a revi na mão direita de meu pai comandando de longe o trabalho dos homens.
Quando o velho morreu ela entrou no inventário da família e veio parar nas
minhas mãos. Por insensibilidade ou falta de visão deixei-a de lado e nunca
mais a vi. Suponho que só a malícia do tempo explique a sequência de gestos que
me levaram a reavê-la na hora do perigo.
Foi estimulado por essa
autoconfiança tardia que me postei no centro da sala à espera de que ele
aparecesse. Meu batismo de fogo foi dobrar a impaciência: a noite já ia alta
quando ele deu os primeiros sinais de vida. Mesmo assim tive que desferir um
soco na cara, à altura do dente lesado, para que a dor o chamasse à minha
presença. Sem dúvida o baque foi forte demais — ele só faltou pular de gozo no
meu pescoço. Eu percebia nitidamente que minha única chance era a agilidade
mental. Foi o que aconteceu: acuado pelo pavor apertei os dois gatilhos de uma
só vez, a mira voltada para o meio da testa. Confesso que nem de longe
imaginava a potência da arma: o duplo disparo espatifou os espelhos e eu caí no
chão com o coice do recuo. Quando superei o susto vistoriei o espaço aberto à
minha frente: nada que não fosse a fumaça expelida pelos canos. Mas continuei a
busca com minúcia neurótica, a ponto de verificar se havia alguma coisa nas
franjas do tapete. Obviamente ali não se mexia viva alma — e pela primeira vez
em muitos meses pude respirar aliviado.
A verdade é que o sossego
não durou mais que algumas horas: ao sair do êxtase notei que após a caçada eu
não tinha sentido a menor dor de dente. Isso poderia significar que ele
voltaria caso ela também voltasse. Quero crer que esse dilema seja frequente.
Quem convive com os seres da sombra sabe muito bem que eles se apegam à vida
assim que nós os tornamos necessários.
CARONE, Modesto. O cúmplice. Em: POE, Edgar Allan e outros. Histórias fantásticas. Coordenação geral e seleção de textos de José Paulo Paes; ilustrações de Júlio Minervino. São Paulo: Ática, 2002. p. 143-144. (Para Gostar de Ler, 21).
Fonte:
Livro - APROVA BRASIL - Língua Portuguesa, 7º ano, 3ª ed. São Paulo: Moderna,
2019, p.44-47.
Entendendo o Conto
1. O que é narrado no conto?
A aflição de uma
personagem que evita o seu “outro” por causa do dente podre e dolorido.
2.O que há de incomum no
conto lido?
O fato de a
personagem ser atormentada por alguém que aparece quando seu dente começa a
doer. De modo geral, quando uma pessoa sente dor, outras tentam ajudá-la e não
se divertem com essa dor.
3. Releia este trecho do
conto.
“Acaso
ou não, topei na escada do quintal com a velha espingarda de repetição. Ela
estava enterrada no pó, mas lá do fundo o metal emitia o brilho hipnótico de
sempre. Nesse lance eu a revi na mão direita de meu pai comandando de longe o
trabalho dos homens. Quando o velho morreu ela entrou no inventário da família
e veio parar nas minhas mãos. Por insensibilidade ou falta de visão deixei-a de
lado e nunca mais a vi. Suponho que só a malícia do tempo explique a sequência
de gestos que me levaram a reavê-la na hora do perigo.”
• Copie do trecho todos os
termos que se referem ao objeto encontrado, evitando a repetição da palavra espingarda.
Ela; a; ela; -a,
a, -la.
4. Ao usar o pronome ele para
referir-se à personagem, o narrador consegue torná-la mais
a) verídica.
b) misteriosa.
c) perigosa.
d) solitária.
5 A personagem “ele” é real
ou pode ser uma alucinação do narrador? Por quê?
A personagem “ele”
é real, pois pode ser um inimigo que vive na mesma casa que o narrador, ou que
é uma alucinação, já que o narrador diz que “ele” surge do nada, sempre que a
dor de dente começa.
6. Releia este trecho do
conto.
“Ele
estava sabendo que eu tinha um dente podre e dolorido, por isso passei a
evitá-lo. Pode parecer estranho que alguém fuja de outro por causa de um dente
estragado. Neste caso porém os motivos são específicos.
Em
primeiro lugar porque ele vive à minha sombra; em segundo porque as semelhanças
entre eu e ele são tantas que anulam os contrastes mais notórios. De fato quem
olha de fora imagina que somos a mesma pessoa.
É
claro que isso não passa de uma ilusão: basta ver a euforia que o acomete quando
meu dente dói. Nessas ocasiões tenho a sensação de que o olho requintado de uma
fera fica cruzando o caminho. Evidentemente ele desaparece logo que a dor some;
mas ressurge com ímpeto dobrado assim que a gengiva começa a formigar.”
• O trecho que revela uma
opinião sobre o fato “[...] quem olha de fora imagina que somos a mesma
pessoa.” é
a) “Pode parecer estranho
que alguém fuja de outro por causa de um dente estragado.”.
b) “[...] ele vive à minha
sombra [...]”.
c) “[...] É claro
que isso não passa de uma ilusão [...]”.
d) “Evidentemente ele
desaparece logo que a dor some [...]”.
7. Narrado em primeira pessoa, o conto
a) contribui para
que duvidemos dos fatos narrados.
b) ajuda a tornar a
narrativa mais leve e descontraída.
c) faz com que tenhamos
certeza de que os fatos ocorreram.
d) indica que os fatos se
passaram em um passado distante.
8. Por que a história se
passa à noite?
Os fatos se passam
nesse período para tornar a história mais misteriosa.
9. Considerando as
características do texto “O cúmplice”, por que podemos afirmar que se trata de
um conto de mistério?
Porque a história
provoca suspense, acontece à noite, seduz pelo desconhecido, apresenta um final
inesperado, tem personagens em número reduzido e com comportamentos inusitados.
10. Releia o conto prestando
atenção aos verbos.
• A maioria dos verbos
empregados no texto está flexionada no presente, no pretérito ou no futuro?
A maioria dos
verbos está flexionada no pretérito do indicativo (ou no passado).
11. A maior parte dos verbos
está flexionada nesse tempo verbal porque os acontecimentos supostamente
a) já ocorreram.
b) ainda vão ocorrer.
c) são fictícios.
d) são misteriosos.
12. Releia este trecho do
último parágrafo do conto.
“A
verdade é que o sossego não durou mais que algumas horas: ao sair do êxtase
notei que após a caçada eu não tinha sentido a menor dor de dente. Isso poderia significar que ele voltaria caso ela também voltasse.”
• Que sentido o uso das
formas verbais destacadas, flexionadas no futuro do pretérito, dá ao texto?
As formas verbais flexionadas no futuro do
pretérito expressam dúvida, hipótese, incerteza.