ARTIGO DE OPINIÃO: Violência epidêmica
A violência urbana é uma enfermidade
contagiosa. Embora possa acometer indivíduos vulneráveis em todas as classes
sociais, é nos bairros pobres que ela adquire características epidêmicas.
A prevalência varia de um país para
outro e entre as cidades de um mesmo país, mas, como regra, começa nos grandes
centros urbanos e se dissemina pelo interior. A incidência nem sempre é
crescente; mudança de fatores ambientais e medidas mais eficazes de repressão,
por exemplo, podem interferir em sua escalada.
As estratégias que as sociedades adotam
para combater a violência flutuam ao sabor das emoções, raramente o
conhecimento científico sobre o tema é levado em consideração. Como reflexo, a
prevenção das causas e o tratamento das pessoas violentas evoluíram muito pouco
no decorrer do século XX, ao contrário dos avanços ocorridos no campo das
infecções, câncer, diabetes e outras enfermidades.
A agressividade impulsiva é
consequência de perturbações nos mecanismos biológicos de controle emocional.
Tendências agressivas surgem em indivíduos com dificuldades adaptativas que os
tornam despreparados para lidar com as frustrações de seus desejos.
A violência urbana é uma doença com
múltiplos fatores de risco, dos quais os mais relevantes são a pobreza e a
vulnerabilidade biológica.
Os mais vulneráveis são os que tiveram
a personalidade formada num ambiente desfavorável ao desenvolvimento psicológico
pleno. A revisão dos estudos científicos já publicados permite identificar três
fatores principais na formação das personalidades com maior inclinação ao
comportamento violento:
1) crianças que apanharam,
foram abusadas sexualmente, humilhadas ou desprezadas nos primeiros anos de
vida;
2) adolescência vivida em
famílias que não lhes transmitiram valores sociais altruísticos, formação moral
e não lhes impuseram limites de disciplina;
3) associação com grupos de
jovens portadores de comportamento antissocial.
Na periferia das cidades brasileiras
vivem milhões de crianças que se enquadram nessas três condições de risco.
Associadas à falta de acesso aos recursos materiais, à desigualdade social, à
corrupção policial e ao péssimo exemplo de impunidade dado pelos chamados
criminosos de colarinho-branco, esses fatores de risco criam o caldo de cultura
que alimenta a violência crescente nas cidades.
Na falta de outra alternativa, damos à
criminalidade a resposta do aprisionamento. Embora pareça haver consenso de que
essa seja a medida ideal e de que lugar de bandido é na cadeia, não se pode
esquecer de que o custo social de tal solução está longe de ser desprezível.
Além disso, seu efeito é passageiro: o criminoso fica impedido de delinquir
apenas enquanto estiver preso. Ao sair, estará mais pobre, terá rompido laços
familiares e sociais e dificilmente encontrará quem lhe dê emprego. Ao mesmo
tempo, na prisão, terá criado novas amizades e conexões mais sólidas com o
mundo do crime.
Construir cadeias custa caro;
administrá-las, mais ainda. Para agravar, obrigados a optar por uma repressão
policial mais ativa, aumentaremos o número de prisioneiros a ponto de não
conseguirmos edificar prisões na velocidade necessária para albergá-los. As
cadeias continuarão superlotadas, e o poder dentro delas, nas mãos dos
criminosos organizados.
Seria mais sensato investir o que
gastamos com as cadeias em educação, para prevenir a criminalidade e tratar os
que ingressaram nela. Mas, como reagir diante da ousadia sem limites dos que
fizeram do crime sua profissão sem investir pesado no aparelho repressor e no
aprisionamento, mesmo reconhecendo que essa é uma guerra perdida?
Estamos nesse impasse!
Na verdade, não existe solução mágica a
curto prazo. Precisamos de uma divisão de renda menos brutal, motivar os
policiais a executar sua função com dignidade, criar leis que acabem com a
impunidade dos criminosos bem sucedidos e construir cadeias novas para
substituir as velhas, mas isso não resolverá o problema enquanto a fábrica de
ladrões colocar em circulação mais criminosos do que nossa capacidade de
aprisioná-los.
Só teremos tranquilidade nas ruas
quando entendermos que ela depende do envolvimento de cada um de nós na
educação das crianças nascidas na periferia do tecido social. O desenvolvimento
físico e psicológico das crianças acontece por imitação. Sem nunca ter visto um
adulto, ela andará literalmente de quatro pelo resto da vida. Se não estivermos
por perto para dar atenção e exemplo de condutas mais dignificantes para esse
batalhão de meninos e meninas soltos nas ruas pobres das cidades brasileiras,
vai faltar dinheiro para levantar prisões.
Enquanto não aprendemos a educar e
oferecer medidas preventivas para que os pais evitem ter filhos que não serão
capazes de criar, cabe a nós a responsabilidade de integrá-los na sociedade por
meio da educação formal de bom nível, das práticas esportivas e da oportunidade
de desenvolvimento artístico.
VARELLA, Dráuzio. In. Folha
de São Paulo, 9 março 2002.
Entendendo o texto:
01 – No texto “Violência
epidêmica”, afirma-se que nos bairros pobres a violência urbana “adquire
características epidêmicas”. Considerando o conceito de epidemia (doença infecciosa
que ataca simultaneamente grande número de indivíduos), explique como o autor
justifica essa afirmação.
Pessoas
vulneráveis (que sofreram abusos quando crianças, que não foram bem orientadas
pela família, que tiveram contato com jovens de comportamento anti-social)
encontram terreno fértil (desigualdade social, corrupção, impunidade, etc.) e
acabam “se contaminando” com a violência urbana – epidemia que se alastra
sobretudo na periferia das cidades brasileiras.
02 – Esse texto apresenta
introdução, desenvolvimento e conclusão. Identifique tal divisão.
Introdução: “A violência
urbana é uma enfermidade contagiosa (...) diabetes e outras enfermidades (1° e
3° parágrafo).
Desenvolvimento:
“A agressividade impulsiva é consequência (...). Estamos nesse impasse!” (4° e
11° parágrafo).
Conclusão:
“Na verdade, não existe solução mágica (...) desenvolvimento artístico” (12° e
14° parágrafo).
03 – A organização de um
texto pode ser observada ao se extrair de cada parágrafo a ideia desenvolvida
em cada um. O texto “Violência epidêmica” tem 14 parágrafos. Qual é a ideia
principal de cada um?
1° – A violência é uma enfermidade
contagiosa, epidêmica.
2° – Ela começa nos grandes centros e se
dissemina no interior.
3° – Nas estratégias para combate-la, o
conhecimento científico não é considerado.
4° – A agressividade impulsiva deve-se às
perturbações nos mecanismos biológicos de controle emocional.
5° – A violência urbana é uma doença com
fatores de risco.
6° – Há três causas principais na
formação de personalidades com inclinação ao comportamento violento: crianças
que apanham ou foram abusada sexualmente; convivência com família que não
transmite valores sociais e formação moral adequados; associação com jovens de
comportamento anti-social.
7° – Na periferia das cidades brasileiras
milhões de crianças se enquadram em condições de risco, agravadas por outros
fatores, aumentando a violência nas cidades.
8° – Consenso de
que lugar de bandido é na cadeia tem alto custo social e efeito passageiro.
9° – Além de cadeias custarem caro, optar
por repressão policial mais ativa aumentará o número de prisioneiros.
10° – O mais sensato é investir em
educação.
11° – Há um impasse.
12° – Vários fatores foram apontados como
solução; melhor divisão de renda, motivar policiais, criar leis, construir
novas cadeias.
13° – É preciso o envolvimento de todos
na educação de crianças menos favorecidas.
14° – Uma solução seria aprender a educar,
oferecer medidas preventivas e integrar essas crianças à sociedade.
04 – Na introdução, é
apresentada a tese, para inteirar o leitor do que será desenvolvido em seguida.
Identifique essa tese.
A violência
urbana é uma enfermidade contagiosa.
05 – Segundo o texto, o
conhecimento cientifico é pouco aplicado na prevenção das causas e no
tratamento das pessoas violentas. Qual seria a utilidade desse conhecimentos?
De acordo com o
autor, a agressividade impulsiva é consequência de perturbações nos mecanismos
biológicos de controle emocional, devendo, portanto, ser tratada
cientificamente e não “flutuar ao sabor das emoções”.
06 – Enumeração é uma das
características do texto dissertativo. Nesse texto o Varella, foi utilizada
para apontar as causas pela formação de personalidades com maior inclinação ao
comportamento violento. Escreva, com suas próprias palavras, quais são essas
causas.
Resposta pessoal
do aluno. Sugestão: a) Crianças que apanharam, foram abusadas sexualmente,
humilhadas ou desprezadas nos primeiros anos de vida. b) Adolescentes mal
orientados pela família. c) Companhia de jovens com comportamento anti-social.
07 – No desenvolvimento, o
autor seleciona aspectos que desenvolvem a tese de forma ordenada, evitando
detalhes desnecessários e incoerência em relação ao que é afirmado no início.
Quais são esses aspectos?
Pobreza e
vulnerabilidade biológica como fatores de risco da violência; enumeração de
fatores responsáveis por personalidades com inclinação ao comportamento violento;
condições que agravam esses fatores; aprisionamento como método ineficaz
empregado para combater a violência.
08 – Procurando instigar o
leitor a refletir, o argumentador de “Violência epidêmica” também recorre ao
questionamento do senso comum. Cite o trecho em que ele utiliza esse recurso.
“Embora pareça haver consenso de que essa
seja a medida ideal e de lugar de bandido é na cadeia, não se pode esquecer
(...)”
09 – O autor é favor da
construção de cadeias novas em substituição às velhas. A partir dessa posição,
ele defende o argumento de que “lugar de bandido é na cadeia”? Justifique sua
resposta.
Não. Segundo ele, o criminoso não se
recupera nas cadeias, que são dispendiosas e insuficientes para o número
crescente de marginais. Presos, eles convivem com elementos perniciosos que
agravam sua agressividade e, quando saem das prisões, não têm o apoio da
família e da sociedade. Sem emprego, o criminoso se torna muito mais violento.
10 – Referindo-se à criança,
Dráuzio Varella afirma: “Sem nunca ter visto um adulto, ela andará literalmente
de quatro pelo resto da vida”. Que conclusão está implícita nessa afirmação?
As crianças se
desenvolvem física e psicologicamente por imitação. Precisam, portanto, de
pessoas que lhes deem o exemplo de condutas mais dignificantes, tanto na
família como na sociedade, o que por si só já reduziria a violência.
11 – Para defender sua tese
de que a violência urbana é epidêmica, o autor recorre a vários argumentos,
procurando convencer o leitor. Identifique um trecho em que a argumentação se
baseie na relação de causa e consequência.
Sugestão:
“Associadas à falta de acesso aos recursos materiais (...) esses fatores de
risco criam o caldo de cultura que alimenta a violência crescente nas cidades.”
12 – O texto dissertativo
procura convidar o leitor a participar de uma discussão. Sê um exemplo, no
texto de Dráuzio Varella, em que isso pode ser percebido.
Sugestão: “Seria
mais sensato investir (...) mesmo reconhecendo que isso é uma guerra perdida?”.
13 – Na conclusão, o
argumentador retorna o que foi dito no início: a violência é uma doença
contagiosa. Ele afirma que não existe solução mágica para o problema da
violência urbana, portanto é preciso adotar algumas medidas. Quais são elas?
Melhor divisão de
renda, motivação de policiais, criação de leis contra a impunidade, novas
cadeias para substituir as velhas, envolvimento de todos na educação de
crianças menos favorecidas, exemplos de condutas mais dignificantes, integração
à sociedade por meio de educação formal de bom nível, práticas esportivas e
desenvolvimento artístico.