sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

CONTO: AS MARIAS - DALTON TREVISAN - COM GABARITO

 Conto: As Marias

            Dalton Trevisan

      Maria, filha de Maria, a filha de Maria, tem trinta e um desgostos. Lava a roupa, lava a louça, varre que varre, e a patroa – Jesus Maria José? – a patroa ralhando.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhXBFum7gEgOZbc1fE3VF_kbRg7tjt1uS00iMP4HSA6gpOPX0ouciMMKANyvMevDHl_9o4u7cldz3TO7sOBQz4I-fWm0FYLum11EMZUUogXb8vK8UF-PQBbKHmrfWZz-j2YZuyzh-gCXD1hVmQebHwfSVO7-660DeQiXPHGnBfMCadN6n1G_TEKVt8hTZA/s320/MARIA.jpg


       Aos sete anos, foi esquecida pela mãe na primeira esquina. Mulher cheia de filhos, não podia com mais um: deu a pobre da Maria.

        Sempre em casa estranha, dormindo em cama-de-vento, comendo em pé ao lado do fogão. Trabalhadeira, era de confiança e não tinha boca para pedir. Pálida, vivia debaixo de chá de ervas. Sonhando, rilhava os dentes, com as bichas alvoraçadas. Maria, ai dela, nunca soube qual o gosto de uma pêra-d’água! O guarda-comida trancado a chave, ela roía com fome um naco de rapadura, escondida sob o travesseiro.

         Lenço amarrado na bochecha, usava cera milagrosa para dor de dente – até que perdia o dente. Vagarosa por culpa de unha encravada. De lidar na potassa, partiam-se os dedos e sofria de panarício. Nunca se despedia, era despachada pela patroa, aborrecida de suas aflições e sua cara de pamonha.

          Ao rolar de uma para outra casa, engordava com os anos, gemia de dor nas cadeiras e enleava-se no serviço. Sua alegria era lavar o cueiro do bebê. Ah, mas beijar a criancinha...

           - Está proibida, ouviu, Maria?

           Criada não conhece o seu lugar, podia ter alguma doença.

           Menina séria, não ia ao baile com as outras. No carão anêmico esfregava papel de seda escarlate molhado na língua e, mal surgia à janela, a espiar um soldadinho verde, a patroa ralhava.

            - Maria, já escolheu o arroz?

            - Maria, já passou a roupa?

            - Já encerou a casa, ó Maria?

            Areada a chapa do fogão, guardava a louça, varrida a cozinha, chegava-se medrosa à porta. O soldado rondava, parava, batia continência. Tinha pressa como soldado era de guerra: queria pegar na mão e cobrir de beijos.

              - Deus me livre, podia ter algumas doenças!

              Maria faz o sinal-da-cruz: a boca só o marido é que iria beijar.

              Onde estão os praças de cavalaria, o tinir das esporas na calçada? Trinta e um anos de Maria! Até proibida de passear com a Maria.

                - Pois vá chorar no quarto – ordena-lhe a patroa. – Não suporto cena de gentinha!

                 Essa Maria, um objeto de casa, o capacho da porta, a vassoura no prego.

                  Maria não vai ao circo, o palhaço é tão gozado.

                  Maria não vai ao Passeio Público ver o macaquinho comer banana.

                   Maria não vai ao cineminha na sexta-feira assistir à Vida, Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo.

                   Maria, a filha de Maria, distraída no domingo com a Marta, viu seu coração rolar do peito e, prato que lhe escapou dos dedos gordurosos ( a patroa vai ralhar?), partir-se em sete pedaços de sangue pelo chão.

                   Era um cabo? Maria nunca soube de que arma. Falava lindo e tão difícil, puxando no xis – vixto, mocinha? – que ela saltitar ora numa perna ora noutra, esganada roía as unhas.

                   - Tem gente, cabo. Você me respeite, ó cabo?

                    Ele a levou ao circo e Maria entrou soberba como uma patroa entre a gentinha que fazia cena: no pescoço a velha pele de coelho mordendo a cauda. A charanga, o peludo de cara pintada, o cabo das grandes botas de general. Um palhaço xinga o outro de “Gigolô”!, o circo vem abaixo de tanta gargalhada. Maria sorri, o cabo lhe tira sangue do peito.

                    - Ocê me deixa louco, Maria.

                    Sob o espanto do baleiro, anunciando “Oia a bala oi...”, ela beijou a mão do cabo.

                     Em nove meses Maria, filha de Maria, vai ser mãe de Maria.

Entendendo o texto

01. Como se constrói a narrativa?

Se constrói de ações fragmentadas e gestos estereotipados das domésticas errantes, doentes, esfaimadas, sonhadoras. Maria resume um tipo que reitera modelos previsíveis de comportamento, é o retrato das mazelas de uma doméstica.

02. Qual é o nome da personagem principal no conto "As Marias"?

         O nome da personagem principal é Maria.

03. Quantos desgostos a personagem Maria tem de acordo com o conto?

           Maria tem trinta e um desgostos.

04. Por que Maria foi esquecida pela mãe aos sete anos?

          Maria foi esquecida pela mãe aos sete anos porque a mãe, cheia de filhos, não podia cuidar de mais um, então deu Maria para outra pessoa.

05. Qual era a alegria de Maria, mesmo enfrentando dificuldades em sua vida?

         A alegria de Maria era lavar o cueiro do bebê.

06. O que acontece quando Maria se distrai com Marta no domingo?

          Quando Maria se distrai com Marta no domingo, seu coração rola do peito e parte-se em sete pedaços de sangue pelo chão.

07. Por que Maria não vai ao circo e a outros eventos mencionados no conto?

          Maria não vai ao circo e a outros eventos mencionados porque a patroa a proíbe e a considera um objeto de casa, um capacho da porta.

08. Quem é o responsável por Maria, filha de Maria, se tornar mãe no final do conto?

O cabo mencionado no conto é responsável por Maria, filha de Maria, se tornar mãe, e ela estará grávida em nove meses.

09. Que linguagem traz o texto?

  Pode-se divisar a crítica à subalternidade das domésticas, à sua condição subumana de vida e à opressão das patroas.


 

 

 

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