Crônica: O Risadinha – Fragmento
Paulo Mendes Campos
Seria melhor dizer que ele não teve
infância. Mas não é verdade. Eu o conheci menino, trepando às árvores, armando
alçapão para canários-da-terra, bodoqueando as rolinhas, rolando pneu velho
pelas ruas, pegando traseira de bonde, chamando o professor Asdrúbal de Jaburu.
Foi este último um dos mais divertidos e perigosos brinquedos da nossa
infância: o velho corria atrás da gente brandindo a bengala, seus bastos
bigodes amarelos fremindo sob as ventas vulcânicas.

Nestor, em suma, teve a meninice normal
de um filho de funcionário público em nosso tempo, tempo incerto, pois os
recursos da Fazenda na província eram magros, e os pagamentos se atrasavam,
enervando a população.
Seus companheiros talvez nem soubessem
que se chamasse Nestor; era para todos o Risadinha. Falava pouco e ria muito,
um riso de fato diminutivo, nascido de reservados solilóquios, quase sempre
extemporâneo. Certa feita, na aula de francês, quando entoávamos em coro o
presente do subjuntivo do verbo s`en aller, Risadinha pespegou uma bólide de
papel bem na ponta do nariz do professor, que era muito branco, pedante a
capricho e tinha o nome de Demóstenes. O rosto do mestre passou do pálido ao
rubro das suas tremendas cóleras. Um dos seus prazeres, sendo-lhe vetado por
lei castigar-nos com o bastão, era desfiar em cima do culpado uma série de
insultos preciosos, que ele ia escandindo um por um, sem pressa e com ódio.
− Levante-se, seu Nestor!
Sa-cri-pan-ta! Ne-gli-gen-te! Si-co-fan-ta! Tu-nan-te! Man-dri-ão!
Ca-la-cei-ro! Pan-di-lha! Bil-tre! Tram-po-lei-ro! Bar-gan-te! Es-troi-na!
Val-de-vi-nos! Va-ga-bun-do!...
Pegando a deixa da única palavra
inteligível, Risadinha erguia o dedo no ar e protestava, com ar ofendido:
− Vagabundo, não, professor.
Era um artista do cinismo, e sua momice
de inocência era de tal arte que até mesmo seu Demóstenes não conseguia conter
o riso. Como também somente ele já arrancara uma gargalhada do padre-prefeito,
um alemão da altura da catedral de Colônia, num dia em que vinha caminhando
lento e distraído, fora de forma.
− Por que o senhorrr não está na forma?
− perguntou-lhe rosnando o padre, como se estivesse de promotor da Inquisição,
diante de um herege horripilante.
− É porque estou com meu pezinho machucado,
respondeu com doçura o Risadinha.
− E por que o senhorrr não está
mancando?
Risadinha olhou com espanto para os
seus próprios pés, começando a mancar vistosamente:
− Desculpe, seu padre, é porque eu
tinha esquecido.
Foi um precursor de Cantinflas e, a
despeito da opinião do leitor, nós lhe achávamos uma graça de doer a barriga.
[...]
CAMPOS, Paulo Mendes. Para gostar de ler.
Fonte: Gramática da
Língua Portuguesa Uso e Abuso. Suzana d’Avila – Volume Único. Editora do Brasil
S/A. Ensino de 1º grau. 1997. p. 281.
Entendendo a crônica:
01 – Qual era o nome
verdadeiro do personagem principal e qual era seu apelido?
O nome verdadeiro
do personagem principal era Nestor, mas ele era conhecido por todos como
Risadinha.
02 – Que tipo de infância o
narrador descreve que Nestor (o Risadinha) teve?
O narrador
descreve que Nestor teve a meninice "normal de um filho de funcionário
público em nosso tempo", embora a época fosse de recursos magros e
pagamentos atrasados. A meninice era marcada por brincadeiras típicas, como
trepar em árvores, armar alçapão, "bodoquear" rolinhas e rolar pneu.
03 – Qual era a característica
principal do Risadinha que lhe rendeu o apelido, e como o narrador descreve
esse traço?
A principal
característica era o riso. O narrador o descreve como alguém que "falava
pouco e ria muito, um riso de fato diminutivo, nascido de reservados
solilóquios, quase sempre extemporâneo."
04 – Que travessura o
Risadinha cometeu durante a aula de francês e qual foi a reação imediata do
professor Demóstenes?
Risadinha atirou
uma "bólide de papel" (bolinha) bem na ponta do nariz do professor Demóstenes.
A reação do professor foi passar do pálido ao rubro de cólera.
05 – Como o professor
Demóstenes, impedido por lei de usar o bastão, punia o Risadinha verbalmente?
Ele punia o
Risadinha proferindo "uma série de insultos preciosos", que ia
escandindo (falando pausadamente) um por um, sem pressa e com ódio. A lista de
insultos incluía "Sacripanta", "Sicofanta",
"Trampoleiro", "Vagabundo", entre outros.
06 – Qual foi a
"jogada" de cinismo e inocência do Risadinha que conseguiu arrancar o
riso até do professor Demóstenes?
Ao ser xingado
com a lista de insultos, Risadinha interrompeu o professor na única palavra que
considerou ofensiva e inteligível ("Vagabundo") e protestou com ar
ofendido: "Vagabundo, não, professor." Sua "momice de inocência"
era tão perfeita que o professor não conseguiu conter o riso.
07 – Que estratagema o
Risadinha usou para convencer o padre-prefeito de que seu pé estava machucado?
Ao ser
questionado pelo padre ("E por que o senhorrr não está mancando?"),
Risadinha olhou para os próprios pés, começou a mancar vistosamente e pediu
desculpas, dizendo: "Desculpe, seu padre, é porque eu tinha
esquecido." Essa resposta também arrancou uma gargalhada do padre.