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sábado, 21 de setembro de 2024

CRÔNICA: OS DIFERENTES ESTILOS - (FRAGMENTO) - PAULO MENDES CAMPOS - COM GABARITO

 Crônica: Os Diferentes Estilos – Fragmento

              Paulo Mendes Campos

      Parodiando Raymond Queneau, que toma um livro inteiro para descrever de todos os modos possíveis um episódio corriqueiro, acontecido em um ônibus de Paris, narra-se aqui, em diversas modalidades de estilo, um fato comum da vida carioca, a saber: o corpo de um homem de quarenta anos presumíveis é encontrado de madrugada pelo vigia de uma construção, à margem da Lagoa Rodrigo de Freitas, não existindo sinais de morte violenta.

        Estilo interjetivo – Um cadáver! Encontrado em plena madrugada! Em pleno bairro de Ipanema! Um homem desconhecido! Coitado! Menos de quarenta anos! Um que morreu quando a cidade acordava! Que pena!

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEju_hHEHPyuCwIWJp8FcFejy-u7tGxeMG2JZsF9CAmsU_p13dP69zlFDyBMK1TD0senbwqluDPTmi3sNbr5UtAEWlSUVQwjKSzC-otzS_vWZBFcEQ0e9JvNrpeKlY5woVm_9cfF__T6xquGR9LSeKiWIcaHuOEsTF7v2TYeCp49jyuS1M1Q7eH6HVLfAqg/s320/ESTILO.jpg


        Estilo colorido – Na hora cor-de-rosa da aurora, à margem da cinzenta Lagoa Rodrigo de Freitas, um vigia de cor preta encontrou o cadáver de um homem branco, cabelos louros, olhos azuis, trajando calça amarela, casaco pardo, sapato marrom, gravata branca com bolinhas azuis. Para este o destino foi negro.

        [...]

        Estilo reacionário – Os moradores da Lagoa Rodrigo de Freitas tiveram na manhã de hoje o profundo desagrado de deparar com o cadáver de um vagabundo que foi logo escolher para morrer (de bêbado) um dos bairros mais elegantes desta cidade, como se já não bastasse para enfear aquele local uma sórdida favela que nos envergonha aos olhos dos americanos que nos visitam ou que nos dão a honra de residir no Rio.

        Estilo então – Então o vigia de uma construção em Ipanema, não tendo sono, saiu então para passeio de madrugada. Encontrou então o cadáver de um homem. Resolveu então procurar um guarda. Então o guarda veio e tomou então as providências necessárias. Aí então eu resolvi te contar isto.

        [...]

        Estilo preciosista – No crepúsculo matutino de hoje, quando fulgia solitária e longínqua a Estrela-d’Alva, o atalaia de uma construção civil, que perambulava insone pela orla Sinuosa e  murmurante de uma lagoa serena, deparou com a atra e lúrida visão de um ignoto e gélido ser humano, já eternamente sem o hausto que vivifica.

        [...]

        Estilo sem jeito – Eu queria ter o dom da palavra, o gênio de um Rui ou o estro de um Castro Alves, para descrever o que se passou na manhã de hoje. Mas não sei escrever, porque nem todas as pessoas que têm sentimento são capazes de expressar esse sentimento. Mas eu gostaria de deixar, ainda que sem brilho literário, tudo aquilo que senti. Não sei se cabe aqui a palavra sensibilidade. Talvez não caiba. Talvez seja uma tragédia. Não sei escrever mas o leitor poderá perfeitamente imaginar o que foi isso. Triste, muito triste. Ah. se eu soubesse escrever.

        Estilo feminino – Imagine você, Tutsi, que ontem eu fui ao Sacha's, legalíssimo, e dormi tarde. Com o Tony. Pois logo hoje, minha filha, que eu estava exausta e tinha hora marcada no cabeleireiro, e estava também querendo dar uma passada na costureira, acho mesmo que vou fazer aquele plissadinho, como o da Teresa, o Roberto resolveu me telefonar quando eu estava no melhor do sono. Mas o que era mesmo que eu queria te contar? Ah, menina, quando eu olhei da janela, vi uma coisa horrível, um homem morto lá na beira da Lagoa. Estou tão nervosa!  Logo eu que tenho horror de gente morta!

        Estilo lúdico ou infantil – Na madrugada de hoje por cima, o corpo de um homem por baixo foi encontrado por cima pelo vigia de uma construção por baixo. A vítima por baixo não trazia identificação por cima. Tinha aparentemente por cima a idade de quarenta anos por baixo.

        [...]

        Estilo didático – Podemos encarar a morte do desconhecido encontrado morto à margem da Lagoa em três aspectos: a) policial; b) humano; e) teológico. Policial: o homem em sociedade; humano: o homem em si mesmo; teológico: o homem em Deus. Polícia e homem: fenômeno; alma e Deus: epifenômeno. Muito simples, como os senhores veem.

Paulo Mendes Campos. Os diferentes estilos. In: Para gostar de ler: crônicas. São Paulo. Ática, 1979. v. 4. p. 39-42.

Fonte: livro Língua e Literatura – Faraco & Moura – vol. 1 – 2º grau – Edição reformulada 9ª edição – Editora Ática – São Paulo – SP. p. 139-140.

Entendendo a crônica:

01 – Qual a principal característica do experimento literário realizado por Paulo Mendes Campos nesse fragmento?

      O autor utiliza a mesma cena como ponto de partida para explorar diferentes estilos de escrita, demonstrando a riqueza e a diversidade da linguagem e como ela pode influenciar a percepção do leitor sobre um mesmo fato.

02 – Como os diferentes estilos alteram a percepção do leitor sobre a cena do crime?

      Cada estilo atribui uma carga emocional e interpretativa diferente à cena, desde a objetividade do estilo policial até a subjetividade do estilo feminino. Isso demonstra como a linguagem pode moldar a forma como percebemos a realidade.

03 – Qual a função da repetição da mesma cena em diferentes estilos?

      A repetição da cena serve para destacar a versatilidade da linguagem e a capacidade do autor de criar diferentes atmosferas e perspectivas a partir de um mesmo fato.

04 – Qual o papel do humor na construção dos diferentes estilos?

      O humor é utilizado de forma estratégica em alguns estilos, como no estilo lúdico ou infantil, para criar um contraste com a seriedade do tema e provocar o leitor.

05 – Como a linguagem influencia a forma como percebemos a morte no fragmento?

      A linguagem utilizada em cada estilo influencia a forma como percebemos a morte, desde uma abordagem mais objetiva e fria até uma abordagem mais subjetiva e emotiva.

06 – Qual a crítica implícita à linguagem presente em alguns estilos?

      Alguns estilos, como o reacionário e o preciosista, são utilizados para satirizar determinados usos da linguagem, como o discurso ideológico ou a linguagem rebuscada e artificial.

07 – Qual a importância da experimentação formal na literatura?

      A experimentação formal, como a realizada por Paulo Mendes Campos nesse fragmento, permite que o autor explore novas possibilidades expressivas e desafie as convenções da linguagem literária, renovando a forma como contamos histórias.

 

 

domingo, 21 de junho de 2020

CRÔNICA: A CESTA - PAULO MENDES CAMPOS - COM GABARITO

Crônica: A cesta           

                Paulo Mendes Campos

        Quando a cesta chegou, o dono não estava. Embevecida, a mulher recebeu o presente. Procurou logo o cartão, leu a dedicatória destinada ao marido, uma frase ao mesmo tempo amável e respeitosa.

        Quem seria? Que amigo seria aquele que estimava tanto o marido dela? Aquele cesta, sem dúvida nenhuma, mesmo a uma olhada de relance, custava um dinheirão. Como é que ela nunca tivera notícia daquele nome? Ricos presentes só as pessoas ricas recebem. Eles eram remediados, viviam de salários, sempre inferiores ao custo das coisas. Sim, o marido, com o protesto dela, gostava de bons vinhos e boa mesa, mas isso com o sacrifício das verbas reservadas a outras utilidades.

        De qualquer forma, aquela cesta monumental chegava em cima da hora. E se fosse um engano? Não, felizmente o nome e o sobrenome do marido estavam escritos com toda a clareza e o endereço estava certo.

        Alvoroçada, examinou uma a uma as peças de envoltas em flores e serpentinas de papel colorido. Garrafas de uísque escocês, champanha francês, conhaque, vinhos europeus, patê, licores, caviar, salmão, champignon, uma lata de caranguejos japoneses ... Tudo do melhor. Mulher prudente, surrupiou umas garrafas e escondeu-as nas gavetas femininas do armário. Conhecia de sobra a generosidade do marido: à vista daquela cesta farta, iria convidar todo o mundo para um devastador banquete. Isso não tinha nem conversa, era tão certo quanto dois e dois são quatro. Mas quem seria o amigo? Esperou o regresso do marido, morrendo de curiosidade.

        E ei-lo que chega, ao cair da noite, cansado, sobraçando duas garrafas de vinho espanhol, uma garrafa de uísque engarrafado no Brasil, um modesto embrulho de salgadinhos. Caiu das nuvens ao deparar com a gigantesca cesta. Pálido de espanto, não tanto pelo material do presente (era um sentimental), mas pelo valor afetivo que o mesmo significava, começou a ler o cartão que a mulher lhe estendia. Houve um longo minuto de densa expectativa, quando, terminada a leitura, ele enrugou a testa e se concentrou no esforço de recordar. A mulher perguntava aflita:

        -- Quem é?

        Mais da metade da esperança dela desabou com a desolada resposta.

        -- Esta cesta não é pra mim.

        -- Como assim? Você anda ultimamente precisando de fósforo.

        -- Não é minha.

        -- Mas olhe o endereço: é o nosso! O nome é o seu.

        -- O meu nome não é só meu. Há um banqueiro que tem o nome o igualzinho. Está na cara que isso é cesta pra banqueiro.

        -- Mas, o endereço?

        -- Deve ter sido procurado na lista telefônica.

        Ela não queria, nem podia, acreditar na possibilidade do equívoco.

        -- Mas faça um esforço.

        -- Não conheço quem mandou a cesta.

        -- Talvez um amigo que você não vê há muito tempo.

        -- Não adianta.

        -- Você não teve um colega que era muito rico?

        -- O nome dele é completamente diferente. E ficou pobre!

        -- Pense um pouco mais, meu bem.

        Novo esforço foi feito, mas a recordação não veio. Ela apelou para a hipótese de um admirador. Afinal, ele era um grande escritor, autor de um romance que fizera sucesso e de um livro para crianças, que comovera grandes e pequenos.

        -- Um fã, quem sabe é um fã?

        -- Mulher, deixa de bobagens... Que fã coisa nenhuma!

        -- Pode ser sim! Você é muito querido pelos leitores.

        A ideia o afagou. Bem, era possível. Mas, em hipótese nenhuma, ficaria com aquela cesta, caso não estivesse absolutamente certo de que o prêmio lhe pertencia.

        -- Sou um homem de bem!

        Era um homem de bem. Pegou o catálogo, procurou o telefone do homônimo banqueiro, falou diretamente com ele depois de alguma demora: não é muito fácil um desconhecido falar a um banqueiro.

        Aí, a mulher ouviu com os olhos arregalados e marejados:

        -- Pode mandar buscar a cesta imediatamente. O senhor queira desculpar se minha mulher desarrumou um pouco a decoração. Mas não falta nada.

        A mulher foi lá dentro, quase chorando, e voltou com umas garrafas nas mãos:

        -- Eu já tinha escondido estas.

        -- Você é de morte. Coloque as garrafas na cesta.

        Vinte minutos depois, um carro enorme parava à porta, subindo um motorista de uniforme. A cesta engalanada cruzou a rua e sumiu dentro do automóvel. Ele sorria, filosoficamente. Dos olhos da mulher já agora corriam lágrimas francas. Quando o carro desapareceu na esquina, ele passou o braço em torno do pescoço da mulher:

        -- Que papelão, meu bem! Você ficou olhando aquela cesta como se estivesse assistindo à saída de meu enterro.

        E ela, passando um lenço nos olhos:

        -- Às vezes é duro ser casada com um homem de bem.

Paulo Mendes Campos. Supermercado.

Entendendo a crônica:

01 – Vocábulo – pesquise e responda:

·        Embevecida: estática.

·        Estimava: gostava.

·        De relance: rapidamente.

·        Remediado: sem muitos recursos financeiros.

·        Verbas: quantias.

·        Monumental: grandiosa.

02 – Nessa crônica a mulher fica admirada com a entrega de uma cesta de vinhos ao marido. Apesar de o nome e o endereço estarem completos e corretos, era apenas uma coincidência:

a)   Quais foram os argumentos usados pelo marido para convencer a mulher de que a cesta não era para ele?

-- Que existia um banqueiro com o mesmo nome que o dele.

-- Não conhecia quem mandou a cesta.

-- Tinha um amigo rico, mas ficou pobre.

b)   A mulher tentou convencer o marido de todas as formas a ficar com a cesta, porém não conseguiu. Ele afirmou ser um homem de bem e decidiu devolvê-la. Comente o que ele fez para entrega-la.

Ele procurou na lista telefônica o telefone do verdadeiro dono da cesta, o banqueiro, e pediu para buscar a cesta que havia sido entregue por engano em sua casa.

03 – Que tema é abordado na crônica?

      O tema é o consumismo.

04 – Que fato desencadeou os acontecimentos narrados na crônica?

      A chegada de uma cesta de vinho.

05 – no texto estudado predomina a ação ou a reflexão? Comente.

      Predomina a ação, desde o momento que a mulher recebe a cesta até o final, quando o marido devolve a cesta para o verdadeiro dono.

06 – O que tinha na cesta?

      Flores, serpentinas de papel colorido, garrafas de uísque escocês, champanha francês, conhaque, vinhos europeus, patê, licores, caviar, salmão, champignon, uma lata de caranguejos japoneses.

 


quarta-feira, 17 de junho de 2020

CONTO: O POMBO ENIGMÁTICO - PAULO MENDES CAMPOS -COM GABARITO

Conto: O POMBO ENIGMÁTICO

                                            Paulo Mendes Campos

        Na inelutável necessidade do amor (era quase primavera) pombo e pomba marcaram um encontro galante quando voavam e revoavam no azul do Rio de Janeiro. Era bem de manhãzinha.

        -- Às quatro em ponto me casarei contigo no mais alto beiral – disse o pombo.

        -- Candelária? – perguntou a noiva.

        -- Do lado norte – respondeu ele.

        Pois, às quatro azul em ponto, a pomba pontualíssima pousava pensativamente no beiral. O pombo? O pombo não.

        A pombinha, que era branca sem exagero, arrulhava, humilhada e ofendida com o atraso, contemplando acima do campanário todas as possibilidades da rosa-dos-ventos. Mas na paisagem do céu voavam só velozes andorinhas garotas porque as andorinhas mais velhas enfileiravam-se nas cornijas, pensando na morte, como gente fina, lá dentro nos dias solenes de missa de réquiem.

        Quatro e dez. Quatro e um quarto. Uma pomba sozinha, à mercê quem sabe de um gavião, lendário mas possível. Sol e sombra. Como custa a passar um quarto de hora para uma noiva que espera o noivo no mais alto beiral. Como a brisa é triste. Como se humilha em revolta a noiva branca.

        Ah, arrulhou de repente a pomba, quando distinguiu, indignada, o pombo que chegava, o pombo que chegava caminhando pelo beiral mais alto, do outro lado, lá onde, um pouco além, gritavam esganadas as gaivotas do mar pardo do mercado. Irônica, perguntou a pomba:

        -- Perdeste a noção do tempo?

        -- Perdão, por Deus, perdão – respondeu o pombo: – Tardo mas ardo. Olha que tarde...

        -- Que tarde? – perguntou a pomba.

        -- Que tarde! Que azul! Que tarde azul!

        -- Mas e eu?! – disse a pomba. – Sozinha aqui em cima!

        -- A tarde era tão bonita – disse o pombo gravemente – a tarde era tão bonita, que era um crime voar, vir voando...

        -- Mas e eu?! Eu?! – queixava-se a pomba.

        -- A tarde era tão bonita – explicou o pombo com doce paciência – que eu vim andando, que eu tinha de vir andando, meu amor.

                                       Paulo Mendes Campos.

Entendendo o conto:

01 – A pomba transfere para o ambiente toda a sua angustia. Copie a frase que revela isso.

      “[...] Como a brisa é triste. Como se humilha em revolta a noiva branca”.

02 – Assinale a palavra que encerra a ideia que melhor se relaciona com a “primavera” em relação ao texto:

a)   Inelutável.

b)   Azul.

c)   Amor.

d)   Necessidade.

03 – O que pode significar a expressão “as quatro azul em ponto”?

      As quatro horas da tarde pontualmente.

04 – Além do efeito da rima, pode se encontrar explicação para a presença de “ardo” no trecho: “Tardo mas ardo. Olha que tarde! ...” seria:

a)   Exprime a força do amor.

b)   Traduz o calor da tarde.

c)   É sinônimo de casar.

d)   É apenas um jogo de palavras com tarde.

05 – “Quatro e dez. Quatro e um quarto” (Frequentemente você é chamado a responder ao célebre “Que horas são”? Assinale, dentre as opções abaixo, a que contém erro:

a)   São quatro e um quarto.

b)   Já deve ser uma e quarenta.

c)   Já é meio-dia e meio.

d)   Faltam quinze para o meio-dia.

06 – “Como custa a passar um quarto de hora para uma noiva que espera o noivo no mais alto beiral. Qual o significado da expressão destacada?

      Significa quinze minutos.

07 – O prefixo “re”, em revoavam traduz uma ideia de repetição. Assinale a única palavra abaixo em que o “re” NÃO denota a mesma ideia:

a)   Regredir.

b)   Rever.

c)   Reler.

d)   Reencontrar.

08 – Em “Perdeste a noção do tempo?” Ocorre um (a):

a)   Trocadilho, juntando as noções de tempo e lugar.

b)   Erro tipográfico, deveria ser “Perdeste a noção do tempo?”

c)   Expressão antiga para dar sabor de ironia à pergunta.

d)   Um engano da pombinha, que trocou a palavra “tempo” por “templo”.

09 – Qual poderia ser a intenção do autor ao dizer que a pombinha contemplava “todas as possibilidades da rosas-dos-ventos”?

      A intenção era dizer que ela olhava para todos os sentidos a procura do pombo.

10 – Na sua opinião, o fato da pombinha não se empolgar com a tarde azul, assim como se empolgou o namorado, significa que ela é menos romântica que ele? Justifique sua resposta.

      Resposta pessoal do aluno.

11 – Qual é o tema principal do texto?

      Fala da convivência de um casal e que um atraso causou desentendimento entre eles.

 

 


terça-feira, 28 de abril de 2020

CRÔNICA: ACHANDO O AMOR - PAULO MENDES CAMPOS - COM GABARITO

Crônica: Achando o amor

                  Paulo Mendes Campos

        Ele tem quinze anos, calça 42, usa cabelos razoavelmente compridos. Estava num bar do Leblon, na companhia de castigados adultos. Estes tomavam uísque; o rapazinho tomava a segunda coca média. Quando os homens feitos já tinham falado sobre mulheres, o time do Flamengo, o custo de vida, reviravolta política dum país africano, desastre espetacular no aterro, música da moda, o silêncio entrou no bar e empapou tudo como gordura. Um silêncio hepático ou pancreático ou esplenético. O silêncio que intoxica os etílicos. Para agravar o oleoso drama, era aquela hora da noite, já um pouco tarde para o jantar doméstico e ainda um pouco cedo para a irresponsabilidade. O encaroçado point of no return dos boêmios.
        Aí o jovem disse que estava juntando dinheiro para comprar um sabiá. Talvez não comprasse um sabiá, mas um curió. Ia para o colégio de ônibus porque sempre estava em cima da hora, mas voltava a pé. Não comia sanduíche no recreio. Sabiá tá caro! Vendedor de passarinho tem muito trambique. Ele chateou tanto um, ali naquela lojinha de Ipanema, pedindo abatimento para pintassilgo, que o homem acabou lhe ensinando onde se compra pintassilgo mais barato na cidade. Tinha em casa azulão, canário, coleiro, bigodinho... Teve bicudo, corrupião, mainá... O triste é que passarinho morre.
        Então os etílicos foram buscar passarinhos no fundão do tempo e começaram também a passarinhar. O bar noturno virou um viveiro de cantores e cores. O Silêncio voltou de novo mais limpo, exorcizado.
        O jovem retomou a palavra: o passarinho que mais o entusiasmou a vida toda não cantava nem era bonito. Até o dicionário dizia que ele era feio. Foi ao dicionário por não saber se o certo era chopim ou chupim.
        O chupim põe os ovos em ninho de tico-tico, e é este que cria os filhotes. Tinha descoberto numa árvore da lagoa Rodrigo de Freitas um ninho de tico-tico com um ovo de chupim. Quando o chupim nasceu, o problema era mantê-lo vivo: arranjou um conta gotas e, todas as tardes, depois das aulas, subia à árvore e descia alimentos líquidos pela goela do filhote. No momento certo, levou o chupim pra casa. O passarinho não ficava preso, pelo menos grande parte do tempo, mas pousado num galho de arbusto decorativo. Saía às vezes para passear com o chupim e a cachorrinha: ele na frente, o chupim andando atrás, a cachorrinha saltitando em torno. Bastava um gesto e um assovio para que o chupim decolasse e viesse pousar em seu ombro. Espetacular! Pouco depois, passou a lançar o passarinho pela janela; ele sumia durante uma ou duas horas, pousando à tarde na amendoeira de defronte; um assovio, e o passarinho entrava pela janela, pousando no ombro do dono. Como um falcão amestrado! Mas era um chupim, um feio e triste chupim!
        Uma tarde, quando o passarinho andava lá por fora, caiu a tempestade. O chupim não voltou. Ele ficou à janela até depois de escurecer; mas o chupim não voltou. Esperou ainda durante uma semana, sabendo que esperava sem motivo.
        Confesso que fiquei triste às pampas, disse o jovem.
        Aí o Silêncio que entrou parecia uma enorme bola de sabão, uma coisa que não vale nada, mas que nos inquieta de leve quando se desfaz.
        O jovem arrematou: É engraçado, eu senti por aquele chupim um negócio esquisito. Eu não tenho vergonha de dizer pra vocês: chorei por causa do meu chupim. Eu sentia uma afeição pelo chupim... uma coisa profunda mesmo... Ora, eu amava aquele chupim... Agora é que tou entendendo: o que eu tinha pelo chupim era amor.
     CAMPOS, Paulo Mendes. Balé do pato e outras crônicas. São Paulo, Ática, 1998. p. 93-5.
Fonte: Linguagem Nova. Faraco & Moura. Editora Ática. 8ª série. p. 12-4.

Entendendo a crônica:

01 – O texto é narrado em primeira pessoa ou em terceira pessoa? Transcreva do primeiro parágrafo o pronome pessoal que justifica sua resposta.
      Terceira pessoa. Ele.

02 – Nesse mesmo parágrafo, o narrador emprega um adjetivo para caracterizar os adultos.
a)   Que adjetivo é esse?
Castigados.

b)   Que conotação pode ter essa palavra no texto?
Ao empregar essa palavra, o narrador possivelmente quis referir-se ao sofrimento das pessoas ou ao fato de já terem tido bastante experiência com fatos tristes na vida.

03 – “... o Silêncio entrou no bar e empapou tudo como gordura.” Por que a palavra silêncio está empregada como inicial maiúscula?
      A maiúscula personifica o silêncio, reforçando ideia da sua presença.

04 – O silêncio que toma conta do bar é caracterizado, no primeiro parágrafo, por adjetivos que se referem a três órgãos do corpo: baço, pâncreas e fígado.
a)   Transcreva do texto o adjetivo correspondente a cada um desses órgãos.
Baço: esplenético. Pâncreas: pancreático. Fígado: hepático.

b)   Por que o narrador faz referência a esses órgãos do corpo e não a outros? Considere que se trata de um grupo de boêmios.
Porque esses são os órgãos geralmente mais afetados pelas bebidas alcoólicas.

05 – Etílico significa “provocado pelo álcool; alcoólico”. No texto, quem são os etílicos?
      São os adultos que tomam bebidas alcoólicas.

06 – “... os etílicos fora buscar passarinhos no fundão do tempo...”. O que o autor quis dizer com essa afirmação?
      Os boêmios começaram a contar suas histórias de passarinho que tinham ocorrido muito tempo atrás.

07 – No segundo parágrafo, o narrador emprega uma frase que antecipa o final da história. Que frase é essa?
      “O triste é que passarinho morre”.

08 – No terceiro parágrafo, utiliza-se uma metáfora para caracterizar a atmosfera do bar depois que começaram as conversas sobre passarinho. Transcreva essa metáfora.
      “Viveiro de cantores e cores”.

09 – O que o narrador quer dizer ao afirmar que o silêncio voltara mais limpo?
      Todos já tinham falado sobre suas histórias com passarinho; não havia mais ambiente tenso, angustiante, em que não se sabe o que dizer.

10 – O narrador compara o silêncio que se instalou pela terceira vez no bar ao efeito provocado por uma enorme bola de sabão que se desfaz. Explique.
      A história contada pelo jovem era uma história comum, sem nenhum valor especial para as pessoas que a ouviam, como a bola de sabão, mas seu final e a confissão da tristeza causaram o silêncio inquietante, a inquietação da bola que se desfaz.

11 – Até chegar à constatação de que seu sentimento pelo chupim era amor, o jovem estabelece uma gradação de sentimentos. Transcreva essa gradação.
      Negócio esquisito / afeição / coisa profunda / amor.

12 – No texto, o silêncio sempre aparece com características de um ser vivo, é tratado como pessoa. Como se chama essa figura de estilo?
      Personificação ou prosopopeia.

13 – O verbo passarinhar pode significar “caçar passarinho”. No texto, esse verbo não foi empregado com esse sentido, mas sim com sentido figurado. Justifique essa afirmativa.
      No texto o verbo pode ter o sentido de contar histórias de passarinho, com a alegria e a algazarra que fazem os passarinhos quando estão em bando.

14 – “O chupim põe os ovos em ninho de tico-tico, e é este que cria os filhotes”.
a)   O comportamento do chupim pode caracterizar que tipo de gente?
Pode caracterizar pessoas que vivem à custa de outras ou que se aproveitam de outras.

b)   Na escola, o que seria um(a) chupim?
Alunos que não fazem trabalho e só assinam; alunos que não estudam e colam, e assim por diante.

     

terça-feira, 10 de setembro de 2019

CRÔNICA: MEU REINO POR UM PENTE- PAULO MENDES CAMPOS - COM GABARITO

Crônica: Meu reino por um pente      
               Paulo Mendes Campos

     Filhos – diz o poeta – melhor não tê-los.
   Já o Professor Aníbal Machado me confiou gravemente que a vida pode ter muito sofrimento, o mundo pode não ter explicação alguma, mas, filhos, era melhor tê-los. A conclusão parece simples, mas não era; Aníbal tinha ido às raízes da vida, e de lá arrancara a certeza imperativa de que a procriação é uma verdade animal, uma coisa que não se discute, fora de alcance do radar filosófico.
        "Eu não sei por que, Paulo, mas fazer filhos é o que há de mais importante."
        Engraçado é que depois dessa conversa fui descobrindo devagar a melancólica impostura daquelas palavras corrosivas do final de Memórias Póstumas: "não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria". Filhos, melhor tê-los, aliás, o mesmo poeta corrige antiteticamente o pessimismo daquele verso, quando pergunta: mas, se não os temos, como sabê-lo? Resumindo: filhos, melhor não tê-los, mas é de todo indispensável tê-los para sabê-lo; logo, melhor tê-los.
        Você vai se rir de mim ao saber que comecei a crônica desse jeito depois de procurar em vão meu bloco de papel. Pois se ria a valer: o desaparecimento de certos objetos tem o dom de conclamar, por um rápido edital, todas as brigadas neuróticas alojadas nas províncias de meu corpo. Sobretudo instrumentos de trabalho. Vai-se-me por água a baixo o comedimento quando não acho minha caneta, meu lápis-tinta, meu papel, minha cola... Quando isso acontece (sempre) até taquicardia costumo ter; vem-me a tentação de demitir-me do emprego, de ir para uma praia deserta, de voltar para Minas Gerais, renunciar... Ridículo? Sim, ridículo, mas nada posso fazer. Creio que seria capaz (talvez seja presunção) de aguentar com relativa indiferença uma hecatombe que destruísse de vez todos os meus pertences.
        O que não suporto é a repetição indefinida do desaparecimento desses objetos sem nenhum valor, mas, sem os quais, a gente não pode seguir adiante, tem de parar, tem de resolver primeiro. Stanislaw Ponte Preta andou espalhando que eu usava ventilador para pentear os cabelos. Calúnia. Sou o maior comprador de pentes do Estado da Guanabara. Compro-os em quantidades industriais pelo menos duas vezes por mês, de todos os tamanhos, de todas as cores. Sou quase amigo de infância do vendedor de pentes que estaciona ali na esquina de Pedro Lessa e Rua México.
        A princípio, pensou que eu estava substabelecendo o comércio dele, comprando para vender mais caro, mas um dia eu lhe contei minha tragédia familiar, e ele sorriu e confessou: "Lá em casa é a mesma coisa". Chego em casa com os meus pentes e os distribuo a mancheias. Dois para você, quatro para você - segundo o temperamento e a distração de cada um. Aviso a todos que vou colocar um no armário do quarto, um no banheiro, um em cada mesa de cabeceira, dois na minha gaveta. Terminada essa operação ostensiva, fico malicioso e furtivo; secretamente, vou escondendo outros pentes por todos os cantos e recantos, debaixo do colchão, no alto de um móvel, atrás do exemplar dos Suspiros Poéticos e Saudades. Em seguida, reúno solenemente toda a família, inclusive o Poppy, tiro do bolso um pente singular, o mais ordinário encontrável na praça, e digo: "Este é o meu pente; este ninguém usa; neste, sob pretexto algum, ninguém toca! Estão todos de acordo? Ou algum dos presentes deseja fazer alguma objeção?" Estão todos de acordo.
        A sinceridade do meu clã nesses momentos é de tal qualidade que, por um dia ou dois, tenho a ilusão de que, afinal, venci, de que descobri o approach certo para a família incerta. Mas, meu São Luís de Camões, ó caminhos da vida, sempre errados! Os dias passam, o vento passa a descabelar-nos, e os meus pentes, os meus pentes também passam. Misteriosamente, inexplicavelmente, eles desaparecem, pouco a pouco, com certa malícia, um a um, dois a dois, até chegar o momento dramático no qual, depois de vasculhar todos os meus esconderijos, fico em cabelos no meio da sala e, como Ricardo III em plena batalha, exclamo patético: "Um pente, um pente, meu reino por um pente!".
        Eu não fui – diz o primeiro; – eu não fui – diz o segundo; – eu não fui – diz o terceiro. Poppy, cuja especialidade é comer meias e sapatos, não diz nada, mas abana o rabo negativamente.
        Não foi ninguém, foi Mr. Nobody, foi o diabo, foi a minha sina.
        A minha mansão tem apenas três quartos e uma sala. Pois é inacreditável a quantidade de objetos que estão desaparecidos aqui dentro. Um dia, quando me mudar, a gente vai achar tudo. E sorrir um para o outro com uma nostalgia imprecisa, e dizer em silêncio que, filhos, e pais, melhor tê-los.
             Paulo Mendes Campos. “Meu reino por um pente”. In: Balé do pato e outras crônicas. São Paulo, Ática, 1998. p. 25-8.
                                                Fonte: Livro- Português – Série – Novo Ensino Médio – Vol. único. Ed. Ática – 2000- p. 30-1.
Entendendo a crônica:
01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Conclamar: Chamar.

·        Edital: Aviso oficial que se coloca em lugares públicos ou se anuncia na imprensa.

·        Estado da Guanabara: Antigo nome do estado do Rio de Janeiro.

·        Singular: Notável, único; particular.

·        Mr. Nobody: Em inglês, “Sr. Ninguém”.

02 – Por que o cronista introduz a discussão sobre ter ou não ter filhos?
      Porque seus filhos somem com os seus objetos pessoais.

03 – O que o cronista pretende dizer quando usa a expressão “vai-se-me por água abaixo o comedimento”?
      Quer dizer que fica nervoso, irritadiço, destemperado.

04 – Você já ouviu as expressões “a mancheias” e “ficar em cabelos”? Pesquise num dicionário seus significados.
      A mancheias: Em grande quantidade.
      Ficar em cabelos: Ficar despenteado, descabelado; ou aturdido, perdido no meio da sala.

05 – Na frase: “A minha mansão tem apenas três quartos e uma sala”, a palavra mansão está empregada no seu sentido real ou subjetivo? Por quê?
      Subjetivo. Usa-se “mansão” em referência à residência de grandes dimensões e luxo requintado.

06 – O que você pensa a respeito da responsabilidade de ser pai/mãe? Por que se pode afirmar que não é fácil educar os filhos? Existe um momento apropriado para a paternidade/maternidade?
      Resposta pessoal do aluno.