Crônica: Os Diferentes Estilos – Fragmento
Paulo Mendes Campos
Parodiando Raymond Queneau, que toma um
livro inteiro para descrever de todos os modos possíveis um episódio corriqueiro,
acontecido em um ônibus de Paris, narra-se aqui, em diversas modalidades de
estilo, um fato comum da vida carioca, a saber: o corpo de um homem de quarenta
anos presumíveis é encontrado de madrugada pelo vigia de uma construção, à
margem da Lagoa Rodrigo de Freitas, não existindo sinais de morte violenta.
Estilo interjetivo – Um cadáver! Encontrado em plena madrugada! Em pleno bairro de Ipanema! Um homem desconhecido! Coitado! Menos de quarenta anos! Um que morreu quando a cidade acordava! Que pena!
Estilo
colorido – Na hora cor-de-rosa
da aurora, à margem da cinzenta Lagoa Rodrigo de Freitas, um vigia de cor preta
encontrou o cadáver de um homem branco, cabelos louros, olhos azuis,
trajando calça amarela, casaco pardo, sapato marrom, gravata branca com
bolinhas azuis. Para este o destino foi negro.
[...]
Estilo
reacionário – Os moradores da
Lagoa Rodrigo de Freitas tiveram na manhã de hoje o profundo desagrado de deparar
com o cadáver de um vagabundo que foi logo escolher para morrer
(de bêbado) um dos bairros mais elegantes desta cidade, como
se já não bastasse para enfear aquele local uma sórdida favela
que nos envergonha aos olhos dos americanos que nos visitam ou que nos dão a
honra de residir no Rio.
Estilo
então – Então o vigia de
uma construção em Ipanema, não tendo sono, saiu então para passeio de
madrugada. Encontrou então o cadáver de um homem. Resolveu então procurar um
guarda. Então o guarda veio e tomou então as providências necessárias. Aí então
eu resolvi te contar isto.
[...]
Estilo
preciosista – No crepúsculo
matutino de hoje, quando fulgia solitária e longínqua a Estrela-d’Alva, o
atalaia de uma construção civil, que perambulava insone pela orla Sinuosa
e murmurante de uma lagoa serena, deparou com a atra e lúrida visão de um
ignoto e gélido ser humano, já eternamente sem o hausto que vivifica.
[...]
Estilo
sem jeito – Eu queria ter o dom
da palavra, o gênio de um Rui ou o estro de um Castro Alves, para descrever o
que se passou na manhã de hoje. Mas não sei escrever, porque nem todas as
pessoas que têm sentimento são capazes de expressar esse sentimento. Mas eu
gostaria de deixar, ainda que sem brilho literário, tudo aquilo que senti. Não
sei se cabe aqui a palavra sensibilidade. Talvez não caiba. Talvez seja
uma tragédia. Não sei escrever mas o leitor poderá perfeitamente imaginar
o que foi isso. Triste, muito triste. Ah. se eu soubesse escrever.
Estilo
feminino – Imagine você,
Tutsi, que ontem eu fui ao Sacha's, legalíssimo, e dormi tarde. Com o Tony.
Pois logo hoje, minha filha, que eu estava exausta e tinha hora marcada no
cabeleireiro, e estava também querendo dar uma passada na costureira, acho
mesmo que vou fazer aquele plissadinho, como o da Teresa, o Roberto resolveu me
telefonar quando eu estava no melhor do sono. Mas o que era mesmo que eu queria
te contar? Ah, menina, quando eu olhei da janela, vi uma coisa horrível, um
homem morto lá na beira da Lagoa. Estou tão nervosa! Logo eu que
tenho horror de gente morta!
Estilo
lúdico ou infantil – Na madrugada
de hoje por cima, o corpo de um homem por baixo foi encontrado por cima pelo
vigia de uma construção por baixo. A vítima por baixo não trazia identificação
por cima. Tinha aparentemente por cima a idade de quarenta anos por baixo.
[...]
Estilo didático – Podemos encarar a morte do desconhecido encontrado
morto à margem da Lagoa em três aspectos: a) policial; b) humano; e) teológico.
Policial: o homem em sociedade; humano: o homem em si mesmo; teológico: o homem
em Deus. Polícia e homem: fenômeno; alma e Deus: epifenômeno. Muito
simples, como os senhores veem.
Paulo Mendes Campos. Os diferentes estilos. In: Para gostar de ler:
crônicas. São Paulo. Ática, 1979. v. 4. p. 39-42.
Fonte: livro Língua e
Literatura – Faraco & Moura – vol. 1 – 2º grau – Edição reformulada 9ª
edição – Editora Ática – São Paulo – SP. p. 139-140.
Entendendo a crônica:
01
– Qual a principal característica do experimento literário realizado por Paulo
Mendes Campos nesse fragmento?
O autor utiliza a
mesma cena como ponto de partida para explorar diferentes estilos de escrita,
demonstrando a riqueza e a diversidade da linguagem e como ela pode influenciar
a percepção do leitor sobre um mesmo fato.
02
– Como os diferentes estilos alteram a percepção do leitor sobre a cena do
crime?
Cada estilo
atribui uma carga emocional e interpretativa diferente à cena, desde a
objetividade do estilo policial até a subjetividade do estilo feminino. Isso
demonstra como a linguagem pode moldar a forma como percebemos a realidade.
03
– Qual a função da repetição da mesma cena em diferentes estilos?
A repetição da
cena serve para destacar a versatilidade da linguagem e a capacidade do autor
de criar diferentes atmosferas e perspectivas a partir de um mesmo fato.
04
– Qual o papel do humor na construção dos diferentes estilos?
O humor é
utilizado de forma estratégica em alguns estilos, como no estilo lúdico ou
infantil, para criar um contraste com a seriedade do tema e provocar o leitor.
05
– Como a linguagem influencia a forma como percebemos a morte no fragmento?
A linguagem
utilizada em cada estilo influencia a forma como percebemos a morte, desde uma
abordagem mais objetiva e fria até uma abordagem mais subjetiva e emotiva.
06
– Qual a crítica implícita à linguagem presente em alguns estilos?
Alguns estilos,
como o reacionário e o preciosista, são utilizados para satirizar determinados
usos da linguagem, como o discurso ideológico ou a linguagem rebuscada e
artificial.
07
– Qual a importância da experimentação formal na literatura?
A experimentação
formal, como a realizada por Paulo Mendes Campos nesse fragmento, permite que o
autor explore novas possibilidades expressivas e desafie as convenções da
linguagem literária, renovando a forma como contamos histórias.