Crônica: Metamorfose
Leo Cunha – Anjo! – sussurrou a Ângela.
– Fantasma! – cochichou o Fábio.
– Pó – soprou o Paulo.
– Não tem jeito de saber – garantiu o
Celso.
A professora de matemática ouvia
curiosa aquela discussão. Os quatro alunos, num canto da sala, faziam de tudo
para ela não escutar, mas era impossível.
O recreio já tinha acabado, a aula
estava quase começando e nenhum dos quatro conseguia convencer os outros.
Anjo! Fantasma! Pó! Nada disso! Você tá
louco? Que bobagem! Pó! Fantasma! Anjo!
A professora de matemática ficou se
lembrando de quando tinha dez anos, como aqueles alunos. Será que ela discutia
assuntos tão profundos com os colegas? Como as crianças de hoje estavam
mudadas... que metamorfose!
– Não adianta – continuou o Celso. –
Nós vamos discutir o resto da aula... O resto da vida...
– Fantasma, gente! – repetiu o Fábio.
– Deus me livre, nem fala isso que eu
arrepio. Fantasma é alma penada, só serve pra assustar a gente. Atravessa as
paredes, sussurra nos cantos...
– Pois então!
– Pra mim é anjo mesmo – insistiu a
Ângela.
– E pra mim é pó. Tenho certeza.
– Certeza? – reclamou o Celso. – Como é
que vocês podem ter certeza de uma coisa assim?
A professora se fez a mesma pergunta.
Afinal, o que acontece com a gente, depois da vida? Até hoje, com quase 30, ela
ainda não sabia a resposta, e os meninos, ali, debatendo com empolgação...
– Existe muita casa assombrada por aí –
era de novo o Fábio. – Lá na minha terra, vira e mexe aparecem uns fantasmas.
Eu sei porque o vizinho da prima do meu avô já viu...
– Aí não vale! – o Paulo zoou. – O
vizinho do cachorro do tintureiro?
– Tá chamando meu vô de cachorro? – o
Fábio não gostou.
– Não, ele tá chamando seu vô de
tintureiro.
– Tintureiro? Isso é bom ou é ruim?
– Ih, Fábio, não foge do assunto!
– Você é que fugiu do assunto, Ângela.
Fica reclamando aí, mas diga então: você já viu algum anjo antes?
– Isso mesmo – o Paulo concordou. –
Você já viu anjo, você mesma, com os seus olhos, que a terra há de comer?
– A terra não há de comer, como diz
você, nem meus olhos, nem nada meu. Ela que coma adubo.
– Um dia você chega lá – o Paulo
provocou.
– Ah, vocês são muito sabichões. Vou
perguntar pra professora.
– Não, menina! Ela é de matemática,
você acha que ela vai saber?
– Se pelo menos fosse de ciências...
Se pelo menos fosse de ciências, a
professora repetiu calada, sem olhar pros alunos, fingindo que nem tinha
ouvido.
– Aposto que ela ia dizer fantasma.
– Anjo!
– Pó! – Vou perguntar... Professora, eu
sei que a senhora é de matemática, mas é que a gente está com uma dúvida...
– Pois não, Ângela.
– É que... é que eu li num livro da
minha mãe que os anjos estão por toda parte e só não vê quem não quer.
– Não, menina, isso são os gnomos! – o
Fábio provocou. – Eu sei porque tem uma pessoa da minha família que acredita em
gnomo.
– Uma pessoa? Deixa eu adivinhar: é o
vizinho do cachorro do tintureiro do primo do seu avô?
– Engraçadinha, espirituosa... Não,
Ângela, é a minha tia Consuelo. Ela é histérica e acredita em gnomo.
– Sua tia é esotérica! – a professora
emendou, quase sem querer.
– Você conhece a tia Consuelo, fessora?
– Não, Fábio. Eu quis dizer que sua tia
é esotérica, não é histérica. Histérica quer dizer outra coisa.
– Virou aula de português, agora? –
reclamou um caxião da primeira fila.
– Sssshhh! – chiaram ao mesmo tempo a
Ângela, o Paulo, o Celso e a professora.
– Ai, desculpa – murchou o caxião. – Eu
só tô querendo ter aula de matemática. Olha aqui o horário que eu colei no
caderno: terça-feira, depois do recreio, matemática. Ma-te-má-ti-ca. Não é
português não!
A professora sorriu quase impaciente e
pediu pra ele esperar só um pouquinho, daqui a pouco ele ia entender o que
aquela conversa tinha a ver com matemática. Daqui a pouquinhozinho só, viu?
Virou-se pro Fábio e explicou:
– Histérica é uma pessoa muito nervosa,
agitada, impaciente, que grita e reclama de tudo.
– Igual alguém nessa sala – emendou a
Ângela, encarando o caxião, que botou a língua pra ela.
– Olha, turma, tem gente achando que é
Ásten...
– Quem é Ásten?
– Aquele cientista que punha a língua
pra fora.
– Einsten – explicou a professora.
– Pronto, agora é aula de física... –
resmungou o caxião.
A professora sorriu quase impaciente e
pediu pra ele esperar só mais um pouquinho.
– Vamos com calma, turma. Nós fugimos
completamente do assunto. Como é que a conversa saiu dos anjos e foi parar no
Einsten?
– É por causa da minha tia histérica...
quer dizer esotérica. Ela tem um adesivo no carro escrito assim: “Duendes: eu
acredito”.
– E meu pai tem um adesivo escrito
assim: “Duendes: eu atropelo”.
– Ah, não, Paulo, que maldade! Coitados
dos bichinhos!
– Eu só tô falando a verdade.
– Você tem mania de ser dono da verdade
– acusou o Fábio. – Aposto que a professora vai me dar razão. É fantasma!
–
É anjo!
– Já falei que é pó!
– Não tem jeito de saber!
– E então, fessora?
A professora engoliu em seco, não tinha
ideia do que iria dizer. Achou melhor escapar da pergunta.
– Anjo, pó, fantasma... Estou achando
meio cedo pra vocês terem essa conversa.
– Cedo por quê, fessora? – o Fábio não
entendeu. – Foi antes do recreio que aconteceu.
– Aconteceu? Aconteceu o quê? – Agora é
que ela estava perdida mesmo.
Os quatro dispararam a falar, cada um
atropelando o outro:
– É que hoje na aula...
– Antes do recreio...
– Nós vimos alguma coisa estranha atrás
da cortina...
– Era um fantasma. Ele estava atrás da
cortina só pra confundir a gente. Cortina e lençol parecem muito, fessora.
– Não, não, era um anjo. Ele tava
espiando por trás da cortina, mas de vez em quando se mexia e a gente via a
sombra das asinhas.
– Nada disso. Era só poeira da obra lá
fora. Na luz do sol, a gente vê o pó se movendo.
– Por mim, não tem jeito de saber com
certeza...
A professora simplesmente sorriu. Tinha
entendido tudo errado.
Neste exato momento, todos ouviram um
barulhinho diferente. Por trás da cortina, surgiu uma borboleta azul, esvoaçou
pela sala e sumiu janela afora.
O caxião olhou pro relógio de pulso e
calculou:
– Vocês enrolaram tanto que, dos 50
minutos da aula, já passaram 28, só faltam 22.
– Parabéns, Cassiano. – A professora se
levantou, pegando giz e apagador. – Você fez a conta direitinho. Eu não falei
que a conversa tinha tudo a ver com matemática?
CUNHA, Leo. Metamorfose. In: TELLES, et al. Contos
da Escola.
Objetiva: Rio de
Janeiro, 2003.
Fonte da imagem: https://www.google.com/url?sa=i&url=http%3A%2F%2Fbasenacionalcomum.mec.gov.br%2Fimplementacao%2Fpraticas%2Fcaderno-de-praticas%2Feducacao-infantil%2F&psig=AOvVaw2HDVI3f--ykMmE4TqWNYr-&ust=1605743163921000&source=images&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCLCa7eLhiu0CFQAAAAAdAAAAABAE
Entendendo a crônica:
01 – O texto lido pertence
predominantemente ao gênero:
a)
Reportagem.
b)
Correspondência.
c)
Ficção científica.
d)
Descritivo.
e)
Narrativo.
02 – Assinale a alternativa
cujo antônimo da palavra em destaque está corretamente indicado.
a)
“...que metamorfose!” – mudança
notável, transformação.
b)
“...e os meninos, ali, debatendo
com empolgação...– desalento, desânimo.
c)
“Engraçadinha, espirituosa...” –
inteligente, vivaz.
d)
“Atravessa as paredes, sussurra nos
cantos...” – murmura, fala baixo.
e)
“Sua tia é esotérica!” – misteriosa,
estranha.
03 – É exemplo da presença
da linguagem informal no texto, exceto:
a)
“Daqui a um pouquinhozinho só, viu?”.
b)
“E então, fessora?”
c)
“Eu quis dizer que sua tia é esotérica, não
histérica.”
d)
“Tá chamando meu vô de cachorro?”
e)
“Deixa eu adivinhar...”
04 – “Você já viu anjo, você
mesma, com os seus olhos, que a terra há de comer?”. Nessa frase, a personagem:
a)
Demonstra não gostar de Ângela.
b)
Emprega as palavras no seu sentido real.
c)
Profetiza a morte do colega.
d)
Expressa-se por meio de linguagem
figurada.
e)
Está falando com Fábio.
05 – “– Histérica é uma
pessoa muito nervosa, agitada, impaciente, que grita e reclama de tudo”. Para
Ângela, essas características são atribuídas à (ao):
a)
Cassiano.
b)
Tia de Consuelo.
c)
Celso.
d)
Professora.
e)
Tia de Fábio.
06 – Assinale a opção que
apresenta uma passagem do texto em que a professora relaciona a resposta de um
dos alunos com a disciplina de matemática.
a)
“A professora simplesmente sorriu. Tinha
entendido tudo errado.”
b)
“(...) – Você fez a conta
direitinho. (...)”.
c)
“Como é que a conversa saiu dos anjos e foi
parar no Einstein?”
d)
“A professora sorriu quase impaciente e pediu
pra ele esperar um pouquinho.”
e)
“(...) Professora, eu sei que a senhora é de
matemática, mas é que a gente está com uma dúvida...”
07 – No trecho: “– Anjo, pó,
fantasma... Estou achando meio cedo
para vocês terem essa conversa”. O termo grifado é interpretado pela professora
de matemática como:
a)
Ocasião anterior ao recreio.
b)
Tempo durante a aula.
c)
Momento posterior ao recreio.
d)
Fase da vida.
e)
Período do recreio.
08 – Marque a opção que
traduz a ideia de uma possibilidade.
a)
“Se pelo menos fosse de ciências
(...)”
b)
“Olha aqui o horário que eu colei no caderno:
terça-feira, depois do recreio, matemática”.
c)
“– Não, Fábio. Eu quis dizer que sua tia é
esotérica, não é histérica (...)”
d)
“– Para mim é anjo mesmo – insistiu a
Ângela”.
e)
“– Vou perguntar... Professora, eu sei que a
senhora é de matemática, mas é que a gente está com uma dúvida...”.
09 – O “fantasma”, referido
no início do texto, é revelado no desfecho como:
a)
Alma.
b)
Anjo.
c)
Borboleta.
d)
Gnomo.
e)
Pó.
10 – A palavra ou expressão
a que se refere o termo sublinhado está corretamente indicada em:
a)
“Ele tá chamando seu vô de
tintureiro”. (Fábio)
b)
“Nenhum dos quatro conseguia
convencer os outros. (Os quatro alunos)
c)
“A professora de matemática ficou se
lembrando...” (Ângela)
d)
“Para mim, é anjo mesmo...” (A
professora)
e)
“Como diz você, nem meus olhos, nem
nada meu”. (Paulo).
11 – Marque a alternativa
que apresenta um assunto relacionado ao registro da memória.
a)
“Deus me livre, nem me fala isso que eu
arrepio. Fantasma é alma penada, só serve para assustar a gente."
b)
“Nós fugimos completamente do assunto.”
c)
“A terra não há de comer, como diz você, nem
meus olhos, nem nada meu. Ela que coma adubo.”
d)
“– Existe muita casa assombrada por aí – era
de novo o Fábio.”
e)
“A professora de
matemática ficou se lembrando de quando tinha dez anos, como aqueles alunos.”
12 – “Ela é histérica e
acredita em gnomo”. Por serem palavras semelhantes, Paulo confundiu histérica
com esotérica.
Nas frases abaixo, também
ocorrem palavras parecidas. Assinale a alternativa cuja sequência completa
adequadamente tais frases.
1. Os gritos das crianças
__________ pelo pátio do colégio. (suaram/ soaram)
2. Ângela esqueceu-se de
______________ a professora. (comprimentar / cumprimentar)
3. Fábio costuma agir com
muita __________. (discrição/ descrição).
4. A borboleta ____________
na imensidão dos jardins da escola. (imergiu/ emergiu).
5. Na aula de ciências,
estudarão sobre higiene ___________. (bocal / bucal).
a) suaram – comprimentar – discrição –
imergiu – bucal.
b) soaram – comprimentar – descrição –
imergiu – bucal.
c) soaram –
cumprimentar – discrição – emergiu – bucal.
d) soaram – cumprimentar – discrição –
imergiu – bucal
e) soaram – cumprimentar – discrição –
imergiu – bocal.
13 – “A professora de
matemática ficou se lembrando de quando tinha dez anos, como aqueles
alunos. Será que ela discutia assuntos tão profundos com os colegas?”.
No trecho acima, as palavras sublinhadas são empregadas, respectivamente, para:
a)
Caracterizar, determinar e definir.
b)
Determinar, quantificar e descrever.
c)
Nomear, quantificar e caracterizar.
d)
Nomear, caracterizar e indefinir.
e)
Nomear, descrever e indefinir.
14 – “...ela ainda não
sabia a resposta, e os meninos ali, debatendo com empolgação...”.
A posição da sílaba tônica nas palavras acima destacadas é a mesma na
alternativa:
a)
Rubrica – maus – estavam – quintal.
b)
Lua – ruim – rodeado –estudar.
c)
Professora – maus – uma – continuaram
d)
Melancia – uma – computador – abacaxi
e)
Discutia – reclamou – cafezinho – saber.
15 – Assinale a alternativa
que apresenta construção textual no pretérito.
a)
“Fantasma é alma penada, só serve para
assustar a gente”.
b)
“A professora de matemática ouvia
curiosa aquela discussão”.
c)
“Atravessa as paredes, sussurra nos
cantos...”
d)
“– E meu pai tem um adesivo escrito assim:
‘Duendes: eu atropelo’”.
e)
“– Uma pessoa? Deixa eu adivinhar: é o
vizinho do cachorro do tintureiro do primo do meu avô?”
16 – Assinale a alternativa
que apresenta palavras acentuadas pela mesma razão.
a)
Só – lá – até
b)
Ciências – horário – impossível
c)
Você – aí – será
d)
Histérica – matemática – esotérica
e)
Pó – já – avô.