Crônica: Corinthians (2) vs Palestra
(1)
Antônio de Alcântara Machado
O campo ficou vazio.
Prrrrii!
— Aí, Heitor!
A bola foi parar na extrema esquerda.
Melle desembestou com ela.
A arquibancada pôs-se em pé. Conteve a
respiração. Suspirou:
— Aaaah!
Miquelina cravava as unhas no braço
gordo da Iolanda. Em torno do trapézio verde a ânsia de vinte mil pessoas. De
olhos ávidos. De nervos elétricos. De preto. De branco. De azul. De vermelho.
Delírio futebolístico no Parque
Antártica.
Camisas verdes e calções negros
corriam, pulavam, chocavam-se, embaralhavam-se, caíam, contorcionavam-se,
esfalfavam-se, brigavam. Por causa da bola de couro amarelo que não parava, que
não parava um minuto, um segundo. Não parava.
— Neco! Neco!
Parecia um louco. Driblou. Escorregou.
Driblou. Correu. Parou. Chutou.
— Gooool! Gooool!
Miquelina ficou abobada com o olhar
parado. Arquejando. Achando aquilo um desaforo, um absurdo.
Aleguá-guá-guá!
Aleguá-guá-guá! Hurra! Hurra! Corinthians!
Palhetas subiram no ar. Com os gritos.
Entusiasmos rugiam. Pulavam. Dançavam. E as mãos batendo nas bocas:
— Go-o-o-o-o-o-ol!
Miquelina fechou os olhos de ódio.
— Corinthians! Corinthians!
Tapou os ouvidos.
— Já me estou deixando ficar com raiva!
A exaltação decresceu como um trovão.
— O Rocco é que está garantindo o
Palestra. Aí, Rocco! Quebra eles sem dó!
A Iolanda achou graça. Deu risada.
— Você está ficando maluca, Miquelina.
Puxa! Que bruta paixão!
Era mesmo. Gostava do Rocco, pronto.
Deu o fora no Biagio (o jovem e esperançoso esportista Biagio Panaiocchi,
diligente auxiliar da firma desta praça G. Gasparoni & Filhos e denodado
meia-direita do S. C. Corinthians Paulista, campeão do Centenário) só por causa
dele.
— Juiz ladrão, indecente! Larga o
apito, gatuno!
Na Sociedade Beneficente e Recreativa
do Bexiga toda a gente sabia de sua história com o Biagio. Só porque ele era
frequentador dos bailes dominicais da Sociedade não pôs mais os pés lá. E
passou a torcer para O Palestra. E começou a namorar o Rocco.
— O Palestra não dá pro pulo!
— Fecha essa latrina, seu burro!
Miquelina ergueu-se na ponta dos pés.
Ergueu os braços. Ergueu a voz:
— Centra, Matias! Centra, Matias!
Matias centrou. A assistência
silenciou. Imparato emendou. A assistência berrou.
— Palestra! Palestra! Aleguá-guá!
Palestra Aleguá! Aleguá!
O italianinho sem dentes com um soco
furou a palheta Ramenzoni de contentamento. Miquelina nem podia falar. E o menino
de ligas saiu de seu lugar, todo ofegante, todo vermelho, todo triunfante, e
foi dizer para os primos corinthianos na última fileira da arquibancada:
— Conheceram, seus canjas?
O campo ficou vazio.
— Ó... lh'a gasosa!
Moças comiam amendoim torrado sentadas
nas capotas dos automóveis. A sombra avançava no gramado maltratado. Mulatas de
vestidos azuis ganham beliscões. E riam. Torcedores discutiam com gestos.
— Ó... lh'a gasosa!
Um aeroplano passeou sobre o campo.
Miquelina mandou pelo irmão um recado
ao Rocco.
— Diga pra ele quebrar o Biagio que é o
perigo do Corinthians.
Filipino mergulhou na
multidão.
Palmas saudaram os jogadores de cabelos
molhados.
Prrrrii!
— O Rocco disse pra você ficar
sossegada.
Amílcar deu uma cabeçada. A bola foi
bater em Tedesco que saiu correndo com ela. E a linha toda avançou.
— Costura, macacada
Mas o juiz marcou um impedimento.
— Vendido! Bandido! Assassino!
Turumbamba na arquibancada. O refle do
sargento subiu a escada.
— Não pode! Põe pra fora! Não pode!
Turumbamba na geral. A cavalaria
movimentou-se. Miquelina teve medo. O sargento prendeu o palestrino. Miquelina
protestou baixinho:
— Nem torcer a gente pode mais! Nunca
vi!
— Quantos minutos ainda?
— Oito.
Biagio alcançou a bola. Aí, Biagio! Foi
levando, foi levando. Assim, Biagio! Driblou um. Isso! Fugiu de outro. Isso!
Avançava para a vitória. Salame nele, Biagio! Arremeteu. Chute agora! Parou.
Disparou. Parou. Aí! Reparou. Hesitou. Biagio Biagio! Calculou. Agora!
Preparou-se. Olha o Rocco! É agora. Aí! Olha o Rocco! Caiu.
— CA-VA-LO!
Prrrrii!
— Pênalti!
Miquelina pôs a mão no coração. Depois
fechou os olhos. Depois perguntou:
— Quem é que vai bater, Iolanda?
— O Biagio mesmo.
—
Desgraçado.
O medo fez silêncio.
Prrrrii!
Pan!
— Go-o-o-o-ol! Corinthians!
— Quantos minutos ainda?
Pri-pri-pri!
— Acabou, Nossa Senhora!
Acabou.
As árvores da geral derrubaram gente.
— Abr'a porteira! Rá! Fech'a porteira!
Prá! O entusiasmo invadiu o campo e levantou o Biagio nos braços.
— Solt'o rojão! Fiu! Rebent'a bomba!
Pum! CORINTHIANS!
O ruído dos automóveis festejava a
vitória. O campo foi-se esvaziando como um tanque. Miquelina murchou dentro de
sua tristeza.
— Que é — que é? É jacaré? Não é!
Miquelina nem sentia os empurrões.
— Que é — que é? É tubarão? Não é!
Miquelina não sentia nada.
— Então que é? CORINTHIANS!
Miquelina não vivia.
Na Avenida Água Branca os bondes
formando cordão esperavam campainhando o zé-pereira.
— Aqui, Miquelina.
Os três espremeram-se no banco onde já
havia três. E gente no estribo. E gente na coberta. E gente nas plataformas. E
gente do lado da entrevia.
A alegria dos vitoriosos demandou a
cidade. Berrando, assobiando e cantando. O mulato com a mão no guindaste é quem
puxava a ladainha:
— O Palestra levou na testa!
E o pessoal entoava:
— Ora pro nobis!
Ao lado de Miquelina o gordo de lenço
no pescoço desabafou:
— Tudo culpa daquela besta do Rocco!
--- Ouviu, não é Miquelina? Você ouviu?
— Não liga pra esses trouxas,
Miquelina.
--- Como não liga?
— O Palestra levou na testa!
--- Cretinos.
— Ora pro nobis!
--- Só a tiro.
— Diga uma cousa, Iolanda. Você vai
hoje na Sociedade?
— Vou com o meu irmão.
— Então passa por casa que eu também
vou.
— Não!
— Que bruta admiração! Por que não?
— E o Biagio?
— Não é de sua conta.
Os pingentes mexiam com as moças de
braço dado nas calçadas.
Antônio de Alcântara
Machado. Brás, Bexiga e Barra Funda –
Notícias de São
Paulo. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Villa Rica, 1994.
Entendendo a crônica:
01 – Vimos que o título do
texto é “Corinthians (2) vs. Palestra (1)”. Com base em sua leitura do texto,
explique esse título e diga o que significam os números que aparecem entre
parênteses.
O título remete
ao resultado de uma partida de futebol entre o Corinthians e Palestra. Os
números entre parênteses representam o placar final do jogo ao qual o título se
refere.
02 – A paixão pelo futebol é
apenas uma das razões que fazia a personagem Miquelina ser torcedora do
Palestra. Que outras razões são sugeridas no texto?
Miquelina gostava
de um dos jogadores que atuava no Corinthians, mas passou a namorar um jogador
do time adversário (o Rocco, do Palestra). Ao mudar de namorado, mudou também
de time.
03 – As intervenções do
narrador do texto são pontuadas por muitos diálogos. Releia-os atentamente.
Depois responda no caderno:
a)
É sempre possível saber quem são as
personagens que “falam” nesses diálogos?
Não. Em muitos diálogos os locutores não são localizáveis.
b)
Na sua opinião, por que isso acontece?
Resposta pessoal do aluno.
c)
Que efeito de sentido esses diálogos provocam
no leitor?
As falas de Miquelina e as de Iolanda são pontuadas por discursos
relatados alheios, o que cria no texto uma atmosfera de confusão, de
entrecruzamento de vozes, que procura imitar a plateia de uma partida de
futebol.
d)
Nesses diálogos, há também inúmeras
interjeições e expressões típicas da oralidade. Localize alguns exemplos.
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: “pri-pri-pri”; “ora pro nobis”;
“gooool”.
e)
Que recursos próprios da língua escrita o
autor do texto utiliza para tentar imitar a fala das personagens?
As letras maiúsculas contínuas (“CORINTHIANS” ou “CA-VA-LO”) para
imitar o grito; o uso excessivo dos pontos de exclamação em contexto dialogal;
a repetição das vogais das sílabas tônicas das palavras, o que imita o
alongamento vocálico produzido na fala; o uso do hífen e do apóstrofo na grafia
de determinadas palavras.
04 – O que significa a
palavra prrrrii que aparece
em algumas passagens do texto?
Trata-se de uma
onomatopeia (palavra que representa um ruído) para o som produzido pelo apito.
05 – Leia em voz alta este
trecho do texto:
“Biagio
alcançou a bola. Aí, Biagio! Foi levando, foi levando. Assim, Biagio! Driblou
um. Isso! Fugiu de outro. Isso! Avançava para a vitória. Salame nele, Biagio!
Arremeteu. Chute agora! Parou. Disparou. Parou. Aí! Reparou. Hesitou. Biagio
Biagio! Calculou. Agora! Preparou-se. Olha o Rocco! É agora. Aí! Olha o Rocco!
Caiu.
— CA-VA-LO!”
a)
Em sua opinião, os pontos de exclamação são
utilizados com que finalidade?
É um recurso da língua escrita que mostra ao leitor a maneira como o
texto deve ser lido em voz alta.
b)
Uma palavra que se repete nesse trecho é aí. Essa palavra possui um único
sentido ou ela varia de acordo com a ocorrência? Explique.
O sentido da palavra aí
varia conforme a ocorrência.
c)
A sucessão dos verbos no pretérito perfeito
simples é intercalada por palavras, como agora, que traduzem a ideia de
presente, de ação que está ocorrendo no momento em que se fala. Por que, na sua
opinião, o autor faz essa “mistura” de presente com passado?
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Nesse caso, o presente remete
ao momento dialógico da enunciação. O passado é relato do narrador.
d)
Por que a palavra cavalo está escrita com
tosas as letras maiúsculas e com as sílabas separadas?
Porque essa grafia representa o grito.
06 – Procure no dicionário
os significados da palavra pingente, que aparece no última linha do texto. Qual
o sentido que essa palavra tem no texto? Explique.
Pingente, no
texto, significa um passageiro que viaja pendurado num transporte coletivo.