Mostrando postagens com marcador HORÁCIO QUIROGA. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador HORÁCIO QUIROGA. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 5 de julho de 2018

CONTO: O TRAVESSEIRO DE PENA - HORACIO QUIROGA - COM GABARITO

Conto: O Travesseiro de Pena
                                              Horácio Quiroga

        Sua lua-de-mel foi um longo arrepio. Loura, angelical e tímida, o temperamento rude de seu marido enregelou seus sonhos infantis de noiva. Amava-o muito, entretanto, às vezes com um leve estremecimento quando, voltando à noite juntos pela rua, lançava um olhar furtivo à alta estatura de Jordán, silencioso já há uma hora. Ele, por sua vez, a amava profundamente, sem revelar seu amor.
        Durante três meses — casaram-se em abril — viveram uma felicidade toda especial.
        Ela sem dúvida desejaria menos rigidez naquele austero céu de amor, uma ternura mais atrevida e expansiva, mas o impassível semblante do marido sempre a continha.
        A casa em que viviam influía um pouco em seus tremores. A brancura do pátio silencioso — frisos, colunas e estátuas de mármore — produzia uma outonal impressão de palácio encantado. Dentro, o brilho glacial do gesso, sem o mais leve arranhão nas altas paredes, acentuava aquela sensação de frio desagradável. Ao passar de um cômodo a outro, os passos ecoavam por toda a casa, como se um longo abandono tivesse acentuado sua ressonância.
        Nesse espantoso ninho de amor, Alicia passou todo o outono. Entretanto, acabou por lançar um véu sobre seus antigos sonhos e vivia entorpecida na casa hostil, sem querer pensar em coisa alguma até que chegasse o marido.
        Não era estranho que emagrecesse. Contraiu uma leve gripe que se arrastou insidiosa por dias e dias; Alicia não se recuperava. Finalmente, uma tarde pôde ir ao jardim apoiada no braço do marido. Olhava indiferente de um lado para outro. De repente, com profunda ternura, Jordán passou-lhe a mão na cabeça, e Alicia imediatamente começou a soluçar, envolvendo-lhe o pescoço com os braços. Chorou longamente todo o seu medo silencioso, redobrando o pranto à menor tentativa de carícia. Então os soluços foram rareando e ela ficou ainda por algum tempo escondida em seu colo, sem se mexer ou falar.

        Foi esse o último dia que Alicia passou de pé. No dia seguinte amanheceu desfalecida. O médico de Jordán examinou-a com todo o cuidado, ordenando-lhe calma e descanso absolutos.
        -- Não sei — disse a Jordán na porta da casa, com a voz ainda baixa. _ Ela sofre de uma grande debilidade que não consigo explicar, e sem vômitos, nada... Se amanhã acordar como hoje, me chame imediatamente.
        No dia seguinte, Alicia continuava a piorar. Nova consulta. Constatou-se uma anemia de evolução agudíssima, completamente inexplicável. Alicia não sofreu outros desmaios, mas estava visivelmente a caminho da morte. Durante todo o dia o quarto esteve com as luzes acesas e em total silêncio. Passavam-se horas sem que se ouvisse qualquer ruído. Alicia dormitava. Jordán praticamente vivia na sala. Também com todas as luzes acesas. Andava sem parar de um extremo a outro, com incansável obstinação. O tapete abafava seus passos. De vez em quando, entrava no quarto e continuava seu mudo vaivém ao lado da cama. Olhando para a mulher sempre que caminhava na sua direção.
        Logo Alicia começou a ter alucinações, confusas e nebulosas no início, e que logo desceram ao nível do chão. A jovem, olhos esbugalhados, só fazia olhar para o tapete dos dois lados da cabeceira da cama. Uma noite, parou de repente com o olhar fixo. Imediatamente abriu a boca para gritar e suas narinas e lábios se cobriram de suor.
        -- Jordán! Jordán! — gritou, tensa de espanto, sem parar de olhar para o tapete.
        Jordán correu para o quarto e, ao vê-lo, Alícia deu um grito de horror.
        -- Sou eu, Alícia, sou eu!
        Alícia olhou-o aturdida, olhou para o tapete, olhou de novo para ele e, depois de um longo momento de perplexa comparação, acalmou-se. Sorriu e tomou entre as suas à mão do marido, acariciando-a tremendo.
        Entre suas alucinações mais frequentes havia um macaco, apoiado no tapete sobre os dedos, que mantinha os olhos fixos nela.
        Os médicos voltaram inutilmente. Ali estava, diante deles, uma vida que se acabava, definhando dia a dia, hora a hora, sem que se soubesse como.
        Na última consulta, Alicia jazia em estupor enquanto eles lhe tomavam o pulso, passando uns aos outros o punho inerte. Observaram-na por muito tempo em silêncio e se dirigiram à sala de jantar.
        -- Xi... — ergueu os ombros o médico, desanimado. É um caso sério... quase nada a fazer...
        -- Era só o que me faltava! — grunhiu Jordán. E tamborilou bruscamente sobre a mesa.
        Alicia foi se extinguindo em seu delírio de anemia, agravado à tarde, mas que sempre cedia nas primeiras horas. Durante o dia sua enfermidade não avançava, mas todas as manhãs amanhecia lívida, quase em síncope. Parecia que durante a noite se lhe esvaía a vida em novas ondas de sangue. Tinha sempre ao despertar a sensação de estar derrubada na cama com um milhão de quilos por cima. A partir do terceiro dia esse desmoronamento não mais a abandonou. Mal conseguia mover a cabeça. Não quis que tocassem na cama, nem que lhe arrumassem o travesseiro. Seus terrores crepusculares avançaram em forma de monstros que se arrastavam até a cama e subiam com dificuldade pela colcha.
        Logo perdeu a razão. Nos dois dias finais delirou sem parar, a meia voz. As luzes continuavam funebremente acesas no quarto e na sala. No silêncio agonizante da casa, nada se ouvia além do delírio monótono que saía da cama e do ruído abafado dos eternos passos de Jordán.
        Finalmente morreu. A criada, que entrou depois para desfazer a cama, já vazia, olhou surpresa para o travesseiro.
        -- Senhor! — chamou Jordán em voz baixa. – No travesseiro há manchas que parecem de sangue. 
        Jordán aproximou-se rapidamente e se inclinou por sua vez. De fato, sobre a fronha, em ambos os lados do buraco deixado pela cabeça de Alicia, viam-se manchinhas escuras.
        -- Parecem picadas — murmurou a criada depois de um instante de imóvel observação.
        -- Levante-o perto da luz — disse-lhe Jordán.
        A criada levantou-o, mas logo o deixou cair e ficou olhando para aquilo, lívida e tremendo. Sem saber por quê, Jordán sentiu que seus pelos se eriçavam.
        -- O que há? — murmurou com voz rouca.
        -- Está muito pesado — balbuciou a criada, sem parar de tremer. Jordán levantou-o; estava pesadíssimo. Saíram com ele e, sobre a mesa de jantar, Jordán cortou fronha e capa de um só golpe. As penas superiores voaram e a criada deu um grito de horror com a boca muito aberta, levando à cabeça as mãos crispadas: no fundo, entre as penas, movendo lentamente as patas peludas, havia um animal monstruoso, uma bola viva e viscosa. Estava tão inchado que mal se distinguia sua boca.
        Noite após noite, desde que Alicia caíra de cama, aplicara secretamente sua boca, sua tromba, melhor dizendo — às têmporas da moça, chupando-lhe o sangue. A picada era quase imperceptível. A remoção diária do travesseiro sem dúvida impedira seu crescimento, mas desde que a jovem deixou de se mover, a sucção foi vertiginosa. Em cinco dias, em cinco noites, esvaziara Alícia.
        Esses parasitas das aves, diminutos em seu habitat natural, chegam a adquirir, em determinadas condições, proporções enormes. O sangue humano lhes parece ser especialmente favorável, e não é raro encontrá-los em travesseiros de penas.

Retirado do livro “Os Melhores Contos de Medo, Horror e Morte”.
Editora Nova Fronteira. 2005. pg. 87, 88, 89 e 90.
Entendendo o conto:
01 – Explique o que você entende por:
a)   “Sua lua-de-mel foi um longo calafrio.”
O “jeito duro” do marido – muito quieto, não demonstra seu afeto – assustou a jovem.

b)   “[...] suas sonhadas criancices de noiva [...]”.
O sonho do casamento é o de viver momentos de expansão / demonstração de afeto, de paixão, pelo menos na lua-de-mel.

02 – Como você descreveria Jordán e Alícia? Retire dos três primeiros parágrafos do texto trechos que justifiquem sua resposta.
      Alícia: “Loura, angelical e tímida”.
      Jordán: Jeito duro, calado, não demonstra seus sentimentos: “Jordán, mudo fazia uma hora. Ele, por sua vez, a amava profundamente, sem demonstrar”; “impassível semblante”.

03 – Explique estas duas expressões:
a)   “A casa em que viviam influía muito em seus temores.”
b)   “Casa hostil.”
      As duas expressões indicam que a casa era muito “fria” em razão do branco intenso, presente não só no pátio como também dentro de casa, das altas paredes, do eco dos passos por toda a casa.

04 – Nesse trecho inicial do conto, aparecem palavras que nos remetem à sensação de frio. Quais são elas?
      Calafrio, gelou, tremor, glacial, frio.

05 – O que as palavras citadas na sua resposta à questão 4 revelam sobre o comportamento das personagens e o ambiente em que se passa a história?
      Seu “jeito duro” causa certa impressão de frieza; além disso, as reações de Alícia – calafrio, tremor, temores – indicam certo medo e desconforto da personagem em relação à personalidade do marido.

06 – Na sua opinião, o que significam as expressões:
a)   “Rígido céu de amor”?
b)   “Estranho ninho de amor”?
      Nos adjetivos rígido e estranho está concentrada uma carga emotiva que indica a dificuldade/estranheza da jovem em se adaptar a uma casa hostil e a um marido que não é carinhoso como ela esperava.

07 – Por quais etapas passou a doença de Alícia, desde os primeiros sintomas?
      Emagrece, sofre um ligeiro ataque de gripe, constata-se uma anemia agudíssima e inexplicável, tem alucinações, perde a consciência (o “conhecimento”) e morre.

08 – Quando sua doença começa a ser um mistério?
        Quando o médico constata a anemia e não sabe sua origem.

09 – Quais pistas as criaturas de suas alucinações dão a respeito da origem da doença?
      Primeiro Alícia menciona um antropoide, depois, são mencionados monstros; esses seres assustadores remetem ao “animal monstruoso” que sugava o sangue de Alícia.

10 – O conto: “O travesseiro de plumas” apresenta a seguinte organização, característica dos contos de mistério:
a)   Equilíbrio inicial: Apresentação da situação e das personagens;
Começa em “Sua lua-de-mel...” e termina em “... até que seu marido voltasse.”

b)   Conflito: Ação misteriosa que desequilibra a situação inicial;
De “Não estranhava...” até “... eternos passos de Jordán.”

c)   Clímax: Ponto máximo da evolução do conflito;
“Alícia, enfim morreu.”

d)   Desfecho: Solução do conflito.
De “A empregada, quando entrou para desfazer a cama [...]” até o final.

Localize no texto o início e o fim de cada parte acima e transcreva-os no caderno.
11 – Onde aparece pela primeira vez uma pista para a solução do mistério?
      No título. Afinal ele é dado pelo autor ao texto, é uma espécie de síntese de seu significado.

12 – No desfecho do conto, encontre estas informações sobre o mistério e transcreva-as no caderno:
a)   Pistas;
Manchas de sangue no travesseiro que pesava extraordinariamente.

b)   Resolução;
O animal monstruoso é encontrado dentro do travesseiro.

c)   Explicação.
O animal é um parasita das aves que se alimenta de sangue.

13 – Essa história é fictícia, porém, em determinado parágrafo, o narrador dá a entender que tal situação poderia acontecer na vida real. Procure esse parágrafo e explique por que a justificativa do narrador sobre o mistério parece aceitável na realidade.
      No último parágrafo. Porque dá a entender que o parasita da história de fato existe, o que a torna ainda mais assustadora.


sábado, 23 de junho de 2018

RESENHA: CONTAS DA SELVA - HORÁCIO QUIROGA - COM QUESTÕES GABARITADAS

Resenha: Quiroga escreve para crianças de forma inusitada 
                          Michel Laub

        A ficção infanto-juvenil costuma ser avaliada com certa condescendência, mais comprometida com a formação do cidadão que com a do leitor. 
        Não é difícil perceber os resultados desse paternalismo: histórias politicamente corretas, com temas que tentam aproximar a literatura da "realidade cotidiana" ou despertar a consciência para a diversidade social, étnica e religiosa do mundo, frequentemente ganham elogios e adoções em escolas na mesma medida em que sua estética insossa é ignorada. 
        Diante de um cenário assim, é promissor o lançamento de uma coletânea como "Contos da Selva" (1918), do uruguaio Horacio Quiroga (1878-1937). Anunciado como infanto-juvenil, mas talvez mais próximo das narrativas para crianças, o livro chama atenção por abdicar de um caráter utilitário, que emprestaria às suas histórias uma pregação ecológica ou um sentido moral. 
        Quiroga obtém esse resultado, quase sempre, experimentando com as convenções da fábula e do causo. No primeiro caso, em textos como "O Papagaio Pelado", cujo protagonista se vinga de uma onça que o atacou indicando seu paradeiro a um caçador, tem-se os bichos que falam e agem como humanos, mas não a lição edificante no desfecho. No segundo, a verossimilhança e coerência narrativa do causo são abandonadas em textos como "As Meias dos Flamingos", talvez a mais inusitada de todas, em que pássaros entram fantasiados num baile de cobras e passam o resto da vida pagando pelo erro. 
        Resta saber se ambas as soluções, cuja originalidade é louvável, mas externa à fruição estética das histórias, são suficientes para garantir o valor literário de "Contos da Selva". A resposta é difícil, até porque há contos que fogem à regra aqui descrita, como "A Abelhinha Malandra", fábula tradicional e previsível, ou "A Tartaruga Gigante", sem a densidade que transforma o relato em literatura. 
        Por outro lado, há qualidades inegáveis na prosa de Quiroga: o classicismo elegante, que ficaria bem num texto contemporâneo, e a generosidade descritiva, que torna acessível o mundo então pouco explorado de bichos e plantas das províncias argentinas -lugares onde o autor viveu muitos anos. 
        Somada a isso, a capacidade de comover em construções simples como "A Gama Cega", sobre um veado salvo por um caçador, ou "História de Dois Filhotes de Quati e de Dois Filhotes de Homem", que mostra uma convivência terna entre as espécies, dão ao livro um balanço positivo. Não para transformá-lo num clássico, mas o bastante para ser lido com interesse quase um século depois de sua publicação. 

Disponível em: 

Entendendo a Resenha:
01 – A respeito da resenha, responda: 
a)   Qual é a obra resenhada? 
O livro Contos da Selva.

b)   Quem é o autor dessa obra? 
O uruguaiano Horacio Quiroga.

c)   A que público ela se destina?
A obra é dirigida ao público infanto-juvenil, mas o autor da resenha a considera mais voltada para o infantil.

d)   Quem é o autor da resenha? 
Michel Laub.

02 – Segundo o autor da resenha, a ficção infanto-juvenil tem sido avaliada por um único ângulo. 
a)   Qual é o principal critério de avaliação da ficção infanto-juvenil?
O critério didático, moralizador.

b)   Segundo esse critério, como seria um bom livro infanto-juvenil? 
Seria aquele composto de "histórias politicamente corretas, com temas que tentam aproximar a literatura da 'realidade cotidiana' ou despertar a consciência para a diversidade social, étnica e religiosa do mundo".

c)   O autor da resenha considera esse um bom critério? Por quê? 
Não. Ele considera que há muita condescendência e paternalismo nesse critério; o autor o considera limitador.

03 – A obra resenhada pode ser considerada um exemplo do que comumente se avalia como boa ficção infanto-juvenil? Explique sua resposta. 
      Não, pelo contrário, a obra resenhada abre mão da pregação ecológica ou de apresentar um sentido moral.

04 – Além de comentar o conteúdo normalmente presente na ficção infanto-juvenil, o autor da resenha também avalia a estética que predomina nesses livros. Qual é a opinião dele sobre isso? 
      Segundo o autor, a ficção infanto-juvenil em geral uma "estética insossa".

05 – No quarto parágrafo, o resenhista afirma que o escritor obtém certo resultado "experimentando com as convenções da fábula e do causo". 
a)   O que é convencional no gênero fábula? E no gênero causo? 
Convenções da fábula: animais que falam, desfecho moralizante, narrativa curta.
Convenções do causo: presença de humor, transmissão oral, criação popular, possibilidade de estar baseado no fato real.

b)   Se um autor "faz experimentos" com essas convenções, o que, na prática, ele deve estar fazendo?" 
O escritor provavelmente está mexendo no que é característico daquele gênero, alterando um pouco sua estrutura, mas não a ponto de o gênero deixar de ser reconhecido.

06 – A que o autor se refere ao empregar as expressões indicadas a seguir? 
a)   "No primeiro caso" e "No segundo" (quarto parágrafo) 
Ao experimentar com as convenções da fábula;
Ao experimentar com as convenções do causo.

b)   "ambas as soluções" (quinto parágrafo) 
A experimentação com as convenções da fábula e com as do causo.

07 – No quinto parágrafo, o autor afirma que as soluções são originais, mas que essa originalidade é "externa à fruição estética das histórias". Qual das alternativas a seguir explica o que se deve entender por isso?
I. Que os textos (apesar do conteúdo surpreendente) não foram escritos de modo a chamar a atenção pela beleza de sua forma. 

II. Que as criações originais que o contista pensou para as histórias tiveram de ser explicadas fora do texto. 
08 – O autor da resenha afirma que o livro não tem qualidades para ser considerado um clássico. Que livros clássicos para o público infanto-juvenil você conhece? 
      Alguns clássicos infanto-juvenis: A volta ao mundo em 80 dias, de Júlio Verne; Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll; As aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain; Caninos brancos, de Jack London; Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, entre outros.

09 – Escolha a declaração que reflete, de modo geral, a avaliação do autor. 
I. Não recomenda a obra, apontando exclusivamente seus pontos fracos. 
II. Recomenda a obra, apontando apenas seus pontos fortes. 
III. Recomenda a obra, apontando seus pontos fortes e fracos.