Romance: Canaã – Fragmento
Graça Aranha
Fragmento
1
Milkau e Lentz caminham floresta
adentro. Seguem em direção às terras onde viverão. Enquanto caminham,
conversam: Lentz expõe sua visão preconceituosa e racista, Milkau, seu idealismo.
E mudos continuavam a caminhar
pela estrada coberta, os olhos de ambos a desmancharem-se de admiração.
Passado algum tempo, Lentz exprimiu
alto o que ia pensando:
— Não é possível haver civilização
neste país… A terra só por si, com esta violência, esta exuberância, é um
embaraço imenso…
— Ora, interrompeu Milkau, tu sabes bem
como se tem vencido aqui a natureza, como o homem vai triunfando…
— Mas o que se tem feito é quase nada,
e ainda assim é o esforço do europeu. O homem brasileiro não é um fator do
progresso: é um híbrido. E a civilização não se fará jamais nas raças
inferiores. Vê a História…
— Um dos erros dos intérpretes da
História está no preconceito aristocrático com que concebem a ideia de raça.
Ninguém, porém, até hoje soube definir a raça e ainda menos como se distinguem
umas das outras; fazem-se sobre isto jogos de palavras, mas que são como esses
desenhos de nuvens que ali vemos no alto, aparições fantásticas do nada… E,
depois, qual é a raça privilegiada para que só ela seja o teatro e agente da
civilização?
Fragmento
2
Milkau e Lentz, no dia seguinte,
prosseguiam a caminhada. O tema propriedade privada também evidencia a
diferença de ponto de vista dos dois alemães. Milkau questiona:
— Não seria muito mais perfeito que a
terra e as suas coisas fossem propriedade de todos, sem venda, sem posse?
— O que eu vejo é o contrário disto. É
antes a venalidade de tudo, a ambição, que chama a ambição e espraia o instinto
da posse. O que está hoje fora do domínio, amanhã será a presa do homem. Não
acreditas que o próprio ar que escapa à nossa posse será vendido, mais tarde,
nas cidades suspensas, como é hoje a terra? Não será uma nova forma da expansão
da conquista e da propriedade?
— Ou melhor, não vês a propriedade
tornar-se cada dia mais coletiva, numa grande ânsia de aquisição popular,
que se vai alastrando e que um dia, depois de se apossar dos jardins, dos
palácios, dos museus, das estradas, se estenderá a tudo?… O sentimento da posse
morrerá com a desnecessidade, com a supressão da ideia da defesa pessoal, que
nele tinha o seu repouso…
— Pois eu, ponderou Lentz, se me fixar
na ideia de converter-me em colono, desejarei ir alargando o meu terreno,
chamar a mim outros trabalhadores e fundar um novo núcleo, que signifique
fortuna e domínio… Porque só pela riqueza ou pela força nos emanciparemos da
servidão.
— O meu quinhão de terra, explicou
Milkau, será o mesmo que hoje receber; não o ampliarei; não me abandonarei à
ambição, ficarei sempre alegremente reduzido à situação de um homem humilde
entre gente simples. Desde que chegamos, sinto um perfeito encantamento: não é
só a natureza que me seduz aqui, que me festeja, é também a suave contemplação
do homem. […]
GRAÇA ARANHA. Canaã.
São Paulo: Ática, 1997.
Franz Kraus é um dos colonos do
Jequitibá, lugar distante de Porto do Cachoeiro. Alguns anos após a morte
de seu pai, as autoridades da região resolveram ir a sua casa exigir um
inventário — soma dos bens deixados pelo falecido. Leia o trecho sobre o
encontro de Kraus com essas autoridades e atente ao tipo de relação que ali se
estabelece.
Fragmento
3
— Você se chama Franz Kraus? Perguntou
o mulato de cima da montaria, desdobrando uma folha de papel, que tirara do
bolso.
O colono disse que sim.
— Pois, então, tome conhecimento
disto. E desdenhoso entregou o papel ao outro.
Kraus olhou o escrito e, como, apesar
de estar no Brasil havia trinta anos, não sabia ler o português, ficou
embaraçado.
— Não posso ler… Que é?
— Também vocês vivem aqui na terra a
vida inteira e estão sempre na mesma, bradou o mulato. Venho por aqui furando
este mundo, e de casa em casa sempre a mesma coisa: ninguém sabe a nossa
língua… Que raça!
O colono ficou aturdido com aquele tom
insolente. Ia replicar meio encolerizado, quando o mulato continuou:
— Pois fique sabendo que isto é um
mandado de Justiça. É um mandado do juiz municipal para que vosmecê dê a
inventário os bens de seu pai Augusto Kraus. Não era assim o nome dele? A
audiência é amanhã, aqui, ao meio-dia… A Justiça pernoita em sua casa. Prepare
do que comer… e do melhor. E os quartos… São três juízes, o Escrivão e eu, que
sou o Oficial do Juízo, que também se conta.
O colono, ouvindo falar em Justiça,
tirou o chapéu submisso, e ficou como fulminado.
[…]
Na manhã seguinte, a “colônia” estava
ordenada. Kraus, vestido como nos domingos, pôs-se inquieto a andar no
terreiro, espreitando a chegada dos magistrados. As mulheres, também vestidas
com os seus melhores fatos, não se arredavam do trabalho da cozinha.
[…]
—
Mas, senhores, entremos… A casa é nossa em nome da Lei, disse o Juiz de
Direito, encaminhando-se para dentro.
— Mas onde está esse inventariante
imbecil? Perguntou com arrogância o Promotor.
— O sandeu fica todo este tempo a arranjar
os animais e nos deixa aqui ao deus-dará, explicou o Escrivão.
E todos passeavam pela sala com
estrépito, batendo com o chicote nos móveis, ou praguejando, ou rindo das
pobres estampas nas paredes, ou farejando para dentro, de onde vinha um
capitoso cheiro de comida.
[…]
Ouvindo tanto rumor, Kraus correu à
sala atarantado, como se já tivesse cometido o primeiro delito, e pôs-se
como um criado à espera das ordens.
— Traga parati! Ordenou o Escrivão. Mas
que seja do bom.
O colono sumiu-se para logo voltar com
uma garrafa e um cálice.
— Não há mais copos nesta casa?
Perguntou com desprezo o Escrivão.
O colono tornou ao interior e depois
reapareceu, balbuciando desculpas, e pôs em cima da mesa quatro copos.
— Vamos a isto, meus senhores! Propôs o
Promotor.
GRAÇA ARANHA, op.
cit.
Fonte: Livro – Viva
Português 2° – Ensino médio – Língua portuguesa – 1ª edição 1ª impressão – São
Paulo – 2011. Ed. Ática. p. 273-6.
Entendendo o romance:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Fato: traje.
·
Sandeu: idiota, tolo.
·
Estrépito: alarido, algazarra.
·
Capitoso: estonteante.
·
Parati: aguardente, cachaça, pinga.
·
Híbrido: aquele que é fruto do cruzamento de dois progenitores de espécies
ou genótipos diferentes.
·
Venalidade: condição ou qualidade do que pode ser vendido.
·
Espraiar: lançar para todos os lados.
·
Quinhão: o que cabe ou deveria caber a uma pessoa.
·
Furar: percorrer de ponta a ponta; atravessar.
·
Aturdido: atordoado.
·
Encolerizado: com raiva.
02 – No caderno, relacione
as personagens Milkau (1) e Lentz (2) às características abaixo e, em
seguida, identifique o trecho do texto que comprova sua resposta.
Otimista
– idealista – insubmisso – ambicioso – racista – desprendido – realista.
Otimista:
1 – “Ou melhor, não vês a propriedade tornar-se cada dia mais coletiva,
numa grande ânsia de aquisição popular”. Idealista:
1 – “Não seria muito mais perfeito que a terra e as suas coisas fossem
propriedade de todos, sem venda, sem posse?”. Insubmisso: 2 – “Porque só pela riqueza ou pela força nos
emanciparemos da servidão”. Ambicioso: 2
– “desejarei ir alargando o meu terreno [...] e fundar um novo núcleo, que
signifique fortuna e domínio”. Racista:
2 – “O homem brasileiro não é um fator do progresso: é um híbrido. E a
civilização não se fará jamais nas raças inferiores”. Desprendido: 1 – “ficarei sempre alegremente reduzido à situação de
um homem humilde entre gente simples”. Realista:
2 – “que eu vejo é o contrário disto. É antes a venalidade de tudo, a
ambição, que chama a ambição e espraia o instinto da posse”.
03 – Releia este trecho da
fala de Lentz:
“—
Mas o que se tem feito é quase nada, e ainda assim é o esforço do europeu. O
homem brasileiro não é um fator do progresso: é um híbrido. E a civilização não
se fará jamais nas raças inferiores.”
Observe as informações
presentes nas entrelinhas do texto:
I – O pouco que foi
realizado nesta terra é obra do esforço do europeu e o homem brasileiro não é
um fator de pregresso. Conclusão: o
homem brasileiro não é esforçado.
II – O homem brasileiro não
é um fator de pregresso porque é híbrido. Conclusão:
é a mistura de raças que faz com que o homem brasileiro não seja esforçado.
Agora responda: o que torna falha, de acordo com os conhecimentos atuais, a argumentação de Lentz?
A argumentação de
Lentz é falha, de acordo com os conhecimentos científicos atuais, porque usa a
características étnica de um grupo para justificar a ausência de progresso de
um país.
04 – Releia as duas
diferentes visões da relação do homem com a propriedade privada indicadas a
seguir, levando em conta também as informações contidas nas entrelinhas, que
podem ser pressupostas pela organização geral do trecho.
a)
Vamos compreender primeiro o raciocínio de
Milkau: do fragmento 1, releia o trecho das linhas 9 (“Ora, interrompeu
Milkau”) a 13 (“Vê a História...”). Complete então as frases a seguir em seu
caderno. Segundo Milkau:
· A propriedade se tornará coletiva à medida que a ânsia de aquisição popular se alastrar e se apossar dos jardins, palácios, museus, etc.
·
A morte do sentimento de posse se
dará com a supressão da ideia de defesa pessoal.
·
Ou seja, o sentimento de posse só poderá
acabar com a desnecessidade.
·
Conclusão: os conflitos acabarão quando as pessoas não precisarem mais lutar para defender o
que é seu, pois todos terão o necessário.
b)
Agora, vamos acompanhar o raciocínio de
Lentz. Releia o trecho do fragmento 2 das linhas 20 (“— Pois eu, ponderou”) a
24 (“nos emanciparemos da servidão”). Complete as frases em seu caderno.
Segundo Lentz:
·
Sua possibilidade de ter fortuna e domínio
está em alargar seu terreno e contratar outros
trabalhadores, podendo, assim, fundar um novo núcleo.
·
A riqueza e a força são os únicos meios para livrar-se da servidão.
c) Complete
a frase a seguir no caderno: As ideias
de Milkau diferenciam-se das de Lentz, estabelecendo uma oposição clara entre
...............
·
Crença na distribuição dos bens X
ênfase no valor da propriedade privada.
·
Distribuição dos bens individuais adquiridos
X ampliação das riquezas por meio da força.
·
Crença no esforço pessoal X crença na
aquisição cada vez maior de terras.
05 – Releia o fragmento 3.
a) Aponte as situações que tornam claro o abuso de poder das autoridades da cidade.
A chegada das autoridades à casa do colono, as exigências de bebida,
alimento, bom tratamento. A impossibilidade de defesa ou contestação do colono.
b) Por que, nessa relação, fica evidente o despreparo das autoridades para o exercício de seus cargos?
Eles claramente abusam do poder que têm. Usam o cargo para obter
vantagens e não para atender às demandas do estado ou mesmo dos colonos.