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domingo, 22 de maio de 2022

ROMANCE: CANAÃ - FRAGMENTO - GRAÇA ARANHA - COM GABARITO

 Romance: Canaã – Fragmento  

                  Graça Aranha

Fragmento 1

        Milkau e Lentz caminham floresta adentro. Seguem em direção às terras onde viverão. Enquanto caminham, conversam: Lentz expõe sua visão preconceituosa e racista, Milkau, seu idealismo.

        E mudos continuavam a caminhar pela estrada coberta, os olhos de ambos a desmancharem-se de admiração.

        Passado algum tempo, Lentz exprimiu alto o que ia pensando:

        — Não é possível haver civilização neste país… A terra só por si, com esta violência, esta exuberância, é um embaraço imenso…

        — Ora, interrompeu Milkau, tu sabes bem como se tem vencido aqui a natureza, como o homem vai triunfando…

        — Mas o que se tem feito é quase nada, e ainda assim é o esforço do europeu. O homem brasileiro não é um fator do progresso: é um híbrido. E a civilização não se fará jamais nas raças inferiores. Vê a História…

        — Um dos erros dos intérpretes da História está no preconceito aristocrático com que concebem a ideia de raça. Ninguém, porém, até hoje soube definir a raça e ainda menos como se distinguem umas das outras; fazem-se sobre isto jogos de palavras, mas que são como esses desenhos de nuvens que ali vemos no alto, aparições fantásticas do nada… E, depois, qual é a raça privilegiada para que só ela seja o teatro e agente da civilização?

Fragmento 2

        Milkau e Lentz, no dia seguinte, prosseguiam a caminhada. O tema propriedade privada também evidencia a diferença de ponto de vista dos dois alemães. Milkau questiona:

        — Não seria muito mais perfeito que a terra e as suas coisas fossem propriedade de todos, sem venda, sem posse?

        — O que eu vejo é o contrário disto. É antes a venalidade de tudo, a ambição, que chama a ambição e espraia o instinto da posse. O que está hoje fora do domínio, amanhã será a presa do homem. Não acreditas que o próprio ar que escapa à nossa posse será vendido, mais tarde, nas cidades suspensas, como é hoje a terra? Não será uma nova forma da expansão da conquista e da propriedade?

        — Ou melhor, não vês a propriedade tornar-se cada dia mais coletiva, numa grande ânsia de aquisição popular, que se vai alastrando e que um dia, depois de se apossar dos jardins, dos palácios, dos museus, das estradas, se estenderá a tudo?… O sentimento da posse morrerá com a desnecessidade, com a supressão da ideia da defesa pessoal, que nele tinha o seu repouso…

        — Pois eu, ponderou Lentz, se me fixar na ideia de converter-me em colono, desejarei ir alargando o meu terreno, chamar a mim outros trabalhadores e fundar um novo núcleo, que signifique fortuna e domínio… Porque só pela riqueza ou pela força nos emanciparemos da servidão.

        — O meu quinhão de terra, explicou Milkau, será o mesmo que hoje receber; não o ampliarei; não me abandonarei à ambição, ficarei sempre alegremente reduzido à situação de um homem humilde entre gente simples. Desde que chegamos, sinto um perfeito encantamento: não é só a natureza que me seduz aqui, que me festeja, é também a suave contemplação do homem. […]

GRAÇA ARANHA. Canaã. São Paulo: Ática, 1997.

        Franz Kraus é um dos colonos do Jequitibá, lugar distante de Porto do Cachoeiro. Alguns anos após a morte de seu pai, as autoridades da região resolveram ir a sua casa exigir um inventário — soma dos bens deixados pelo falecido. Leia o trecho sobre o encontro de Kraus com essas autoridades e atente ao tipo de relação que ali se estabelece.

Fragmento 3

        — Você se chama Franz Kraus? Perguntou o mulato de cima da montaria, desdobrando uma folha de papel, que tirara do bolso.

        O colono disse que sim.

        — Pois, então, tome conhecimento disto. E desdenhoso entregou o papel ao outro.

        Kraus olhou o escrito e, como, apesar de estar no Brasil havia trinta anos, não sabia ler o português, ficou embaraçado.

        — Não posso ler… Que é?

        — Também vocês vivem aqui na terra a vida inteira e estão sempre na mesma, bradou o mulato. Venho por aqui furando este mundo, e de casa em casa sempre a mesma coisa: ninguém sabe a nossa língua… Que raça!

        O colono ficou aturdido com aquele tom insolente. Ia replicar meio encolerizado, quando o mulato continuou:

        — Pois fique sabendo que isto é um mandado de Justiça. É um mandado do juiz municipal para que vosmecê dê a inventário os bens de seu pai Augusto Kraus. Não era assim o nome dele? A audiência é amanhã, aqui, ao meio-dia… A Justiça pernoita em sua casa. Prepare do que comer… e do melhor. E os quartos… São três juízes, o Escrivão e eu, que sou o Oficial do Juízo, que também se conta.

        O colono, ouvindo falar em Justiça, tirou o chapéu submisso, e ficou como fulminado.

        […]

        Na manhã seguinte, a “colônia” estava ordenada. Kraus, vestido como nos domingos, pôs-se inquieto a andar no terreiro, espreitando a chegada dos magistrados. As mulheres, também vestidas com os seus melhores fatos, não se arredavam do trabalho da cozinha.

        […]

        — Mas, senhores, entremos… A casa é nossa em nome da Lei, disse o Juiz de Direito, encaminhando-se para dentro.

        — Mas onde está esse inventariante imbecil? Perguntou com arrogância o Promotor.

        — O sandeu fica todo este tempo a arranjar os animais e nos deixa aqui ao deus-dará, explicou o Escrivão.

        E todos passeavam pela sala com estrépito, batendo com o chicote nos móveis, ou praguejando, ou rindo das pobres estampas nas paredes, ou farejando para dentro, de onde vinha um capitoso cheiro de comida.

        […]

        Ouvindo tanto rumor, Kraus correu à sala atarantado, como se já tivesse cometido o primeiro delito, e pôs-se como um criado à espera das ordens.

        — Traga parati! Ordenou o Escrivão. Mas que seja do bom.

        O colono sumiu-se para logo voltar com uma garrafa e um cálice.

        — Não há mais copos nesta casa? Perguntou com desprezo o Escrivão.

        O colono tornou ao interior e depois reapareceu, balbuciando desculpas, e pôs em cima da mesa quatro copos.

        — Vamos a isto, meus senhores! Propôs o Promotor.

GRAÇA ARANHA, op. cit.

Fonte: Livro – Viva Português 2° – Ensino médio – Língua portuguesa – 1ª edição 1ª impressão – São Paulo – 2011. Ed. Ática. p. 273-6.

Entendendo o romance:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Fato: traje.

·        Sandeu: idiota, tolo.

·        Estrépito: alarido, algazarra.

·        Capitoso: estonteante.

·        Parati: aguardente, cachaça, pinga.

·        Híbrido: aquele que é fruto do cruzamento de dois progenitores de espécies ou genótipos diferentes.

·        Venalidade: condição ou qualidade do que pode ser vendido.

·        Espraiar: lançar para todos os lados.

·        Quinhão: o que cabe ou deveria caber a uma pessoa.

·        Furar: percorrer de ponta a ponta; atravessar.

·        Aturdido: atordoado.

·        Encolerizado: com raiva.

02 – No caderno, relacione as personagens Milkau (1) e Lentz (2) às características abaixo e, em seguida, identifique o trecho do texto que comprova sua resposta.

        Otimista – idealista – insubmisso – ambicioso – racista – desprendido – realista.

      Otimista: 1 – “Ou melhor, não vês a propriedade tornar-se cada dia mais coletiva, numa grande ânsia de aquisição popular”. Idealista: 1 – “Não seria muito mais perfeito que a terra e as suas coisas fossem propriedade de todos, sem venda, sem posse?”. Insubmisso: 2 – “Porque só pela riqueza ou pela força nos emanciparemos da servidão”. Ambicioso: 2 – “desejarei ir alargando o meu terreno [...] e fundar um novo núcleo, que signifique fortuna e domínio”. Racista: 2 – “O homem brasileiro não é um fator do progresso: é um híbrido. E a civilização não se fará jamais nas raças inferiores”. Desprendido: 1 – “ficarei sempre alegremente reduzido à situação de um homem humilde entre gente simples”. Realista: 2 – “que eu vejo é o contrário disto. É antes a venalidade de tudo, a ambição, que chama a ambição e espraia o instinto da posse”.

03 – Releia este trecho da fala de Lentz:

        “— Mas o que se tem feito é quase nada, e ainda assim é o esforço do europeu. O homem brasileiro não é um fator do progresso: é um híbrido. E a civilização não se fará jamais nas raças inferiores.”

Observe as informações presentes nas entrelinhas do texto:

I – O pouco que foi realizado nesta terra é obra do esforço do europeu e o homem brasileiro não é um fator de pregresso. Conclusão: o homem brasileiro não é esforçado.

II – O homem brasileiro não é um fator de pregresso porque é híbrido. Conclusão: é a mistura de raças que faz com que o homem brasileiro não seja esforçado.

Agora responda: o que torna falha, de acordo com os conhecimentos atuais, a argumentação de Lentz?

      A argumentação de Lentz é falha, de acordo com os conhecimentos científicos atuais, porque usa a características étnica de um grupo para justificar a ausência de progresso de um país.

04 – Releia as duas diferentes visões da relação do homem com a propriedade privada indicadas a seguir, levando em conta também as informações contidas nas entrelinhas, que podem ser pressupostas pela organização geral do trecho.

a)   Vamos compreender primeiro o raciocínio de Milkau: do fragmento 1, releia o trecho das linhas 9 (“Ora, interrompeu Milkau”) a 13 (“Vê a História...”). Complete então as frases a seguir em seu caderno. Segundo Milkau:

·        A propriedade se tornará coletiva à medida que a ânsia de aquisição popular se alastrar e se apossar dos jardins, palácios, museus, etc.

·        A morte do sentimento de posse se dará com a supressão da ideia de defesa pessoal.

·        Ou seja, o sentimento de posse só poderá acabar com a desnecessidade.

·        Conclusão: os conflitos acabarão quando as pessoas não precisarem mais lutar para defender o que é seu, pois todos terão o necessário.

b)   Agora, vamos acompanhar o raciocínio de Lentz. Releia o trecho do fragmento 2 das linhas 20 (“— Pois eu, ponderou”) a 24 (“nos emanciparemos da servidão”). Complete as frases em seu caderno. Segundo Lentz:

·        Sua possibilidade de ter fortuna e domínio está em alargar seu terreno e contratar outros trabalhadores, podendo, assim, fundar um novo núcleo.

·        A riqueza e a força são os únicos meios para livrar-se da servidão.

c)   Complete a frase a seguir no caderno: As ideias de Milkau diferenciam-se das de Lentz, estabelecendo uma oposição clara entre ...............

·        Crença na distribuição dos bens X ênfase no valor da propriedade privada.

·        Distribuição dos bens individuais adquiridos X ampliação das riquezas por meio da força.

·        Crença no esforço pessoal X crença na aquisição cada vez maior de terras.

05 – Releia o fragmento 3.

a)   Aponte as situações que tornam claro o abuso de poder das autoridades da cidade.

A chegada das autoridades à casa do colono, as exigências de bebida, alimento, bom tratamento. A impossibilidade de defesa ou contestação do colono.

b)   Por que, nessa relação, fica evidente o despreparo das autoridades para o exercício de seus cargos?

Eles claramente abusam do poder que têm. Usam o cargo para obter vantagens e não para atender às demandas do estado ou mesmo dos colonos.