Crônica: Adeus ao Fogão
Walcyr Carrasco
SENTO À MESA COM o estômago dançando rumba, de
tanta fome. Há quarenta minutos, eu, minha cunhada e as duas sobrinhas
esperamos a feijoada descongelar. A carne-seca, o toucinho e o paio imersos no
caldo negro são, finalmente, apresentados. Encho o prato, degusto a primeira
garfada. Puro sabor de asfalto. As duas sobrinhas quase desmaiam de enjoo,
enquanto minha cunhada dá o veredicto:
— Queimou.
Um sentimento de tragédia paira no ar. Como é
sábado, o expediente da doméstica já acabou. As três sabidonas mal sabem fritar
um ovo. Proponho fugir para um restaurante. Concordam, entusiasmadas. Apenas
uma ressalva, da mãe:
— Só que estou sem talão de cheques...
Submeto-me. Saímos em direção ao mais próximo.
Na porta, o namorado da sobrinha mais velha incorpora-se ao cortejo. Chegou
tarde, mas em jejum! Pouco depois, com as
cabeças enfiadas em tigelas de feijão preto, conversamos. Estou surpreso: não
sabem cozinhar nem para emergência?
— Uma vez eu fiz uma sopa num acampamento em
Maresias — conta uma. — Mas de pacotinho!
É uma constatação: as mulheres andam cora
orgulho de ficar longe das panelas. As conquistas femininas implicam quebrar os
grilhões que as prendiam ao forno e fogão. Fico impressionado com o número de
mães executivas que criam seus rebentos à base de salsicha e hambúrguer.
Essa geração acha vantagem confundir berinjela
com abobrinha. As que cozinham melhor são especializadas num único prato.
Conheço uma garota que adora fazer frango no azeite. Afoga peitos e coxas numa
fôrma repleta de óleo e deixa no forno até secar. Se algum convidado tiver
colesterol alto, morre no jantar. Outra se sente o máximo quando coloca um
macarrão com consistência de chiclete na minha frente. Dou uma garfada e meus
dentes ficam presos no prato.
— Gosto assim, bem molinho — explica a gourmet.
Não é à toa que um número crescente de homens
descubra talentos culinários. Engano imaginar que é vocação. Trata-se de pura
sobrevivência. Afinal, a maior parte dos mancebos da mesma geração foi criada
por mães esplendorosas, capazes de passar uma tarde inteira enrolando
brigadeiros para a festinha de aniversário. Quando se casam, enfrentam os
sinais do avanço da luta entre os sexos. Um amigo recém-casado geme:
— Ela só sabe fazer estrogonofe. Nos finais de
semana, dá-lhe estrogonofe. Cada vez que vejo os pedacinhos de carne boiando no
molho tenho vontade de chamar minha mãe. Outro dia pedi para ela fazer um bolo.
Saiu um pedaço de cimento.
Reclamei, chamou-me de machista!
— Sua mulher trabalha?
— Ainda não... Pensamos em ter um filho. Morro
de medo de ter de passar as noites esquentando mamadeira. Ela é incompetente
até para fazer café!
Algumas, mais cruéis, vivem fazendo regime e
submetem o marido a ele. Um rapaz começou a afinar. Quando estava quase
despencando, revelou:
— No jantar, só salada de alface e cenoura
ralada. Ela emagreceu, eu sumi. O pior é que me faz ralar as cenouras, para não
quebrar as unhas. Às vezes acordo no meio da noite sonhando com um filé mignon!
Sei que muitas mulheres ficam
"bravésimas" com esse tipo de crítica.
— Não temos nenhuma obrigação de saber
cozinhar! — insiste qualquer garota pós-moderna.
Em termos de avanço social, seria fundamental
transformar o arroz em mingau e o bife em sola de sapato? Hoje em dia, a figura
da doméstica de forno e fogão, escravizada no emprego, tornou-se cada vez mais
rara. Digam o que disserem as feministas de última hora, dietas à base de pizza
com gosto de papel não são uma forma de felicidade.
No último Natal, quis agir com sutileza. Minha
prima se descabelava porque perdera a empregada de muitos anos. Ofereci-lhe um
livro de receitas. Meses depois me convidou para jantar. O menu: comida
chinesa, entregue em casa.
Surpreendi-me:
—E o
livro?
— Estou lendo! — respondeu alegremente.
— Não é um romance para ler! É para fazer! —
rugi.
Ela me encarou, magoada. Mesmo assim, pretendo continuar com a estratégia. Quando alguma amiga executiva faz aniversário, presenteio com Dona Benta, A Maravilhosa Cozinha de Ofélia e outras preciosidades do gênero. Pode ser até que não dê certo. Mas adoro ver a expressão de susto quando abrem o pacote!
Entendendo o texto
01. Qual é a
situação inicial da crônica "Adeus ao Fogão" de Walcyr Carrasco?
a) Um jantar em
família.
b) Uma festa de
aniversário.
c) Uma
refeição descongelada.
d) Um acampamento em Maresias.
02. O que acontece
com a feijoada preparada pela narradora e sua cunhada?
a) Fica deliciosa.
b) Queima.
c) É elogiada por
todos.
d) É esquecida no fogão.
03. Por que as
mulheres da crônica decidem ir a um restaurante?
a) Porque estão
cansadas de cozinhar.
b) Porque
a feijoada queimou.
c) Porque não têm
talão de cheques.
d) Porque querem experimentar novos pratos.
04. Qual é a crítica
do autor em relação às conquistas femininas na cozinha?
a) As mulheres
deveriam cozinhar mais.
b) As
mulheres estão perdendo suas habilidades culinárias.
c) As mulheres estão
cada vez melhores na cozinha.
d) As mulheres devem se libertar do fardo da culinária.
05. O que as
mulheres da crônica alegam em relação à culinária?
a) Cozinham apenas
para emergências.
b) Não têm
obrigação de saber cozinhar.
c) São especialistas
em diversos pratos.
d) Preferem comida chinesa.
06. O que acontece
com o amigo recém-casado quando sua esposa faz estrogonofe?
a) Ele adora.
b) Ele
chama a mãe.
c) Ele pede para ela
fazer um bolo.
d) Ele se queixa dos pedaços de carne boiando no molho.
07. Por que alguns
homens da geração mencionada na crônica desenvolvem talentos culinários?
a) Por vocação.
b) Por
pura sobrevivência.
c) Porque suas mães
eram chefs.
d) Porque gostam de cozinhar.
08. Como o autor
caracteriza as mulheres que fazem regime na crônica?
a) Cruéis.
b) Saudáveis.
c) Incompetentes.
d) Gourmet.
09. O que a prima da
narradora faz após receber um livro de receitas como presente?
a) Começa a cozinhar
imediatamente.
b) Lê o
livro como se fosse um romance.
c) Convida a
narradora para jantar.
d) Contrata uma nova empregada.
10. Qual é a
estratégia adotada pelo autor para incentivar suas amigas executivas a
cozinharem?
a)
Presenteia com livros de receitas.
b) Convida para
jantar em sua casa.
c) Contrata uma chef
particular.
d) Critica
publicamente a falta de habilidade culinária.
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