sábado, 13 de janeiro de 2024

CRÔNICA: ADEUS AO FOGÃO - WALCYR CARRASCO - COM GABARITO

 Crônica: Adeus ao Fogão

                Walcyr Carrasco

SENTO À MESA COM o estômago dançando rumba, de tanta fome. Há quarenta minutos, eu, minha cunhada e as duas sobrinhas esperamos a feijoada descongelar. A carne-seca, o toucinho e o paio imersos no caldo negro são, finalmente, apresentados. Encho o prato, degusto a primeira garfada. Puro sabor de asfalto. As duas sobrinhas quase desmaiam de enjoo, enquanto minha cunhada dá o veredicto:

— Queimou.

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgl0lNwM5AKnnmj83SWHcXVpERy4pGUnNQYm-1yssEwLdK3vKtqXShsW3mod8vs9YbTuI6fbvhzAEKjpgpUDKt9rSWZr-vaSZi6195DkoBFBjTCeWCZgcy5dd2lNJAWhb5E_ZguTopbgxo0XEMVPmK-AR5lYbckKhqJ0WfuBgg52e9HipILVdkpMI2JT7w/s320/CADERNO.jpg 


Um sentimento de tragédia paira no ar. Como é sábado, o expediente da doméstica já acabou. As três sabidonas mal sabem fritar um ovo. Proponho fugir para um restaurante. Concordam, entusiasmadas. Apenas uma ressalva, da mãe:

— Só que estou sem talão de cheques...

Submeto-me. Saímos em direção ao mais próximo. Na porta, o namorado da sobrinha mais velha incorpora-se ao cortejo. Chegou

tarde, mas em jejum! Pouco depois, com as cabeças enfiadas em tigelas de feijão preto, conversamos. Estou surpreso: não sabem cozinhar nem para emergência?

— Uma vez eu fiz uma sopa num acampamento em Maresias — conta uma. — Mas de pacotinho!

É uma constatação: as mulheres andam cora orgulho de ficar longe das panelas. As conquistas femininas implicam quebrar os grilhões que as prendiam ao forno e fogão. Fico impressionado com o número de mães executivas que criam seus rebentos à base de salsicha e hambúrguer.

Essa geração acha vantagem confundir berinjela com abobrinha. As que cozinham melhor são especializadas num único prato. Conheço uma garota que adora fazer frango no azeite. Afoga peitos e coxas numa fôrma repleta de óleo e deixa no forno até secar. Se algum convidado tiver colesterol alto, morre no jantar. Outra se sente o máximo quando coloca um macarrão com consistência de chiclete na minha frente. Dou uma garfada e meus dentes ficam presos no prato.

— Gosto assim, bem molinho — explica a gourmet.

Não é à toa que um número crescente de homens descubra talentos culinários. Engano imaginar que é vocação. Trata-se de pura sobrevivência. Afinal, a maior parte dos mancebos da mesma geração foi criada por mães esplendorosas, capazes de passar uma tarde inteira enrolando brigadeiros para a festinha de aniversário. Quando se casam, enfrentam os sinais do avanço da luta entre os sexos. Um amigo recém-casado geme: 

— Ela só sabe fazer estrogonofe. Nos finais de semana, dá-lhe estrogonofe. Cada vez que vejo os pedacinhos de carne boiando no molho tenho vontade de chamar minha mãe. Outro dia pedi para ela fazer um bolo. Saiu um pedaço de cimento.

Reclamei, chamou-me de machista!

— Sua mulher trabalha?

— Ainda não... Pensamos em ter um filho. Morro de medo de ter de passar as noites esquentando mamadeira. Ela é incompetente até para fazer café!

Algumas, mais cruéis, vivem fazendo regime e submetem o marido a ele. Um rapaz começou a afinar. Quando estava quase despencando, revelou:

— No jantar, só salada de alface e cenoura ralada. Ela emagreceu, eu sumi. O pior é que me faz ralar as cenouras, para não quebrar as unhas. Às vezes acordo no meio da noite sonhando com um filé mignon!

Sei que muitas mulheres ficam "bravésimas" com esse tipo de crítica. 

— Não temos nenhuma obrigação de saber cozinhar! — insiste qualquer garota pós-moderna.

Em termos de avanço social, seria fundamental transformar o arroz em mingau e o bife em sola de sapato? Hoje em dia, a figura da doméstica de forno e fogão, escravizada no emprego, tornou-se cada vez mais rara. Digam o que disserem as feministas de última hora, dietas à base de pizza com gosto de papel não são uma forma de felicidade.

No último Natal, quis agir com sutileza. Minha prima se descabelava porque perdera a empregada de muitos anos. Ofereci-lhe um livro de receitas. Meses depois me convidou para jantar. O menu: comida chinesa, entregue em casa.

Surpreendi-me:

 —E o livro?

— Estou lendo! — respondeu alegremente.

— Não é um romance para ler! É para fazer! — rugi.

Ela me encarou, magoada. Mesmo assim, pretendo continuar com a estratégia. Quando alguma amiga executiva faz aniversário, presenteio com Dona Benta, A Maravilhosa Cozinha de Ofélia e outras preciosidades do gênero. Pode ser até que não dê certo. Mas adoro ver a expressão de susto quando abrem o pacote!

Entendendo o texto

01. Qual é a situação inicial da crônica "Adeus ao Fogão" de Walcyr Carrasco?

a) Um jantar em família.

b) Uma festa de aniversário.

c) Uma refeição descongelada.

d) Um acampamento em Maresias.

02. O que acontece com a feijoada preparada pela narradora e sua cunhada?

a) Fica deliciosa.

b) Queima.

c) É elogiada por todos.

d) É esquecida no fogão.

03. Por que as mulheres da crônica decidem ir a um restaurante?

a) Porque estão cansadas de cozinhar.

b) Porque a feijoada queimou.

c) Porque não têm talão de cheques.

d) Porque querem experimentar novos pratos.

04. Qual é a crítica do autor em relação às conquistas femininas na cozinha?

a) As mulheres deveriam cozinhar mais.

b) As mulheres estão perdendo suas habilidades culinárias.

c) As mulheres estão cada vez melhores na cozinha.

d) As mulheres devem se libertar do fardo da culinária.

05. O que as mulheres da crônica alegam em relação à culinária?

a) Cozinham apenas para emergências.

b) Não têm obrigação de saber cozinhar.

c) São especialistas em diversos pratos.

d) Preferem comida chinesa.

06. O que acontece com o amigo recém-casado quando sua esposa faz estrogonofe?

a) Ele adora.

b) Ele chama a mãe.

c) Ele pede para ela fazer um bolo.

d) Ele se queixa dos pedaços de carne boiando no molho.

07. Por que alguns homens da geração mencionada na crônica desenvolvem talentos culinários?

a) Por vocação.

b) Por pura sobrevivência.

c) Porque suas mães eram chefs.

d) Porque gostam de cozinhar.

08. Como o autor caracteriza as mulheres que fazem regime na crônica?

a) Cruéis.

b) Saudáveis.

c) Incompetentes.

d) Gourmet.

09. O que a prima da narradora faz após receber um livro de receitas como presente?

a) Começa a cozinhar imediatamente.

b) Lê o livro como se fosse um romance.

c) Convida a narradora para jantar.

d) Contrata uma nova empregada.

10. Qual é a estratégia adotada pelo autor para incentivar suas amigas executivas a cozinharem?

a) Presenteia com livros de receitas.

b) Convida para jantar em sua casa.

c) Contrata uma chef particular.

d) Critica publicamente a falta de habilidade culinária.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário