CRÔNICA: DE QUEM SÃO OS MENINOS DE RUA?
Marina Colasanti
Eu, na rua, com pressa, e o menino segurou no meu braço, falou qualquer
coisa que não entendi. Fui logo dizendo que não tinha, certa de que ele estava
pedindo dinheiro. Não estava. Queria saber a hora.
Talvez não fosse um Menino
De Família, mas também não era um Menino De Rua. É assim que a gente divide. Menino
De Família é aquele bem-vestido com tênis da moda e camiseta de marca, que usa
relógio e a mãe dá outro se o dele for roubado por um Menino De Rua. Menino De
Rua é aquele que quando a gente passa perto segura a bolsa com força porque
pensa que ele é pivete, trombadinha, ladrão.
Ouvindo essas expressões tem-se a
impressão de que as coisas se passam muito naturalmente, uns nascendo De Família,
outros nascendo De Rua. Como se a rua, e não uma família, não um pai e uma mãe,
ou mesmo apenas uma mãe os tivesse gerado, sendo eles filhos diretos dos
paralelepípedos e das calçadas, diferentes, portanto, das outras crianças, e
excluídos das preocupações que temos com elas. É por isso, talvez, que, se
vemos uma criança bem-vestida chorando sozinha num shopping center ou num
supermercado, logo nos acercamos protetores, perguntando se está perdida, ou
precisando de alguma coisa. Mas
se vemos uma criança maltrapilha chorando num sinal com uma caixa de chicletes
na mão, engrenamos a primeira no carro e nos afastamos pensando vagamente no
seu abandono.
Na verdade, não existem meninos De
Rua. Existem meninos NA rua. E toda vez que um menino está NA rua é porque
alguém o botou lá. Os meninos não vão sozinhos aos lugares. Assim como são
postos no mundo, durante muitos anos também são postos onde quer que estejam.
Resta ver quem os põe na rua. E por quê.
No Brasil temos 36 milhões de
crianças carentes. Na China existem 35 milhões de crianças superprotegidas. São
filhos únicos resultantes da campanha Cada Casal um Filho, criada pelo governo
em 1979 para evitar o crescimento populacional. O filho único, por receber
afeto "em demasia", torna-se egoísta, preguiçoso, dependente, e seu
rendimento é inferior ao de uma criança com irmãos. Para contornar o problema,
já existem na China 30 mil escolas especiais. Mas os educadores admitem que
"ainda não foram desenvolvidos métodos eficazes para eliminar as
deficiências dos filhos únicos".
O Brasil está mais adiantado.
Nossos educadores sabem perfeitamente o que seria necessário para eliminar as
deficiências das crianças carentes. Mas aqui também os "métodos ainda não
foram desenvolvidos".
Quando eu era criança, ouvi
contar muitas vezes a história de João e Maria, dois irmãos filhos de pobres
lenhadores, em cuja casa a fome chegou a um ponto em que, não havendo mais
comida nenhuma, foram levados pelo pai ao bosque, e ali abandonados. Não creio
que os 7 milhões de crianças brasileiras abandonadas conheçam a história de
João e Maria. Se conhecessem talvez nem vissem a semelhança. Pois João e Maria
tinham uma casa de verdade, um casal de pais, roupas e sapatos. João e Maria
tinham começado a vida como Meninos De Família, e pelas mãos do pai foram
levados ao abandono.
Quem leva nossas crianças ao
abandono? Quando dizemos "crianças abandonadas" subentendemos que
foram abandonadas pela família, pelos pais. E, embora penalizados,
circunscrevemos o problema ao âmbito familiar, de uma família gigantesca e
generalizada, à qual não pertencemos e com a qual não queremos nos meter.
Apaziguamos assim nossa consciência, enquanto tratamos, isso sim, de cuidar
amorosamente de nossos próprios filhos, aqueles que "nos pertencem".
Mas, embora uma criança possa ser
abandonada pelos pais, ou duas ou dez crianças possam ser abandonadas pela
família, 7 milhões de crianças só podem ser abandonadas pela coletividade. Até
recentemente, tínhamos o direito de atribuir esse abandono ao governo, e
responsabilizá-Io. Mas, em tempos de Nova República*, quando queremos que os
cidadãos sejam o governo, já não podemos apenas passar adiante a
responsabilidade. A hora chegou, portanto, de irmos ao bosque, buscar as
crianças brasileiras que ali foram deixadas.
(COLASANTI, Marina. A casa das palavras. São Paulo:
Ática, 2002.)
Fonte: Livro – Tecendo
Linguagens – Língua Portuguesa – 7º ano – Ensino Fundamental – IBEP p. 254/255.
POR DENTRO DO TEXTO:
01 – Que fato narrado no
primeiro parágrafo desencadeou a reflexão desenvolvida ao longo do texto?
O fato de o
narrador-personagem ter sido abordado por um menino na rua. Inicialmente, ele
nem o ouviu direito e achou que o menino pedia algo. No entanto, o garoto só
queria saber as horas.
02 – No texto, a categoria
meninos é dividida em dois grandes grupos.
a)
Quais são esses grupos?
“Menino de Família” e “Menino de Rua”.
b)
Como eles são diferenciados no texto?
Eles são diferenciados pela forma como, em geral, são vistos: o
“Menino de Família” é bem-vestido, tem mãe; o “Menino de Rua” geralmente rouba
o relógio do “Menino de Família” e é visto como uma ameaça; um trombadinha,
pivete, ladrão.
c)
Em sua opinião, o texto pode ser considerado
preconceituoso por estabelecer essa divisão?
Resposta pessoal.
d)
O menino a quem a autora se refere no início
da crônica se encaixa em qual dos dois grupos? Justifique sua resposta
transcrevendo um trecho do texto.
O menino não se encaixa em qualquer um dos grupos, como pode ser
confirmado no trecho “Talvez não fosse um Menino de Família, mas também não era
um Menino de Rua.”
03 – A crônica descreve a
diferença no comportamento das pessoas diante de uma criança bem-vestida
chorando e de uma criança maltrapilha fazendo o mesmo.
a)
Qual é essa diferença?
O texto descreve que uma criança bem-vestida chorando costuma
receber atenção, proteção, enquanto uma maltrapilha costuma ser ignorada.
b)
Em sua opinião, por que acontece essa
diferença de comportamento?
Resposta pessoal do aluno.
c)
O que, provavelmente, a autora quis dizer ao
usar a expressão “filhos diretos dos paralelepípedos e das crianças?
Provavelmente, ela quis dizer que as crianças são consideradas
filhas da rua, como se ninguém as tivesse gerado, como se não tivessem família.
04 – O texto estabelece um
paralelo entre as 36 milhões de crianças carentes do Brasil e as 35 milhões de
crianças superprotegidas da China, associando alguns problemas a cada uma
dessas realidades.
a) Pesquise na internet ou em livros de
História a respeito da política de natalidade da China, que pode contextualizar
a informação apresentada pela autora.
Os alunos
devem compreender melhor a política do filho único, implantada na China na
década de 1970, como forma de controlar o crescimento populacional.
b) Quais problemas são associados aos
filhos únicos da China?
Segundo o
texto, muitos filhos únicos na China, por receber afeto “em demasia”, tornam-se
egoístas, preguiçosos, dependentes, e seu rendimento é inferior ao de uma
criança com irmãos. Deve-se trabalhar com os alunos que não se trata de uma
regra e que certamente não se pode generalizar tal afirmação.
c)Levante uma hipótese: o que pode ter
gerado, no Brasil, 36 milhões de crianças carentes? Pesquise na internet se
houve mudança nesse número.
Resposta
pessoal do aluno.
05 – Agora é sua vez de
produzir um texto. Para isso, releia a crônica e tome nota sobre:
situação-problema, questão controversa, dados sobre crianças em situação de
rua, responsabilidade pelo problema e conclusão. Produza então um resumo,
usando essas anotações.
A autora relata
que um menino segurou em seu braço e a assustou, o que a motivou a refletir
sobre a ideia de menino de rua e menino de família e a forma preconceituosa
como pessoas lidam com esse problema. A autora apresenta dados da época que
denunciavam em torno de 7 milhões de crianças abandonadas, procurando mostrar
que a responsabilidade não é apenas da família, mas de toda a sociedade.
06 – Para você, qual foi a
mensagem mais importante do texto em relação à proteção da infância? Explique.
Resposta pessoal do aluno.
07 – Em sua opinião, por que
foi utilizada a letra inicial maiúscula nos termos destacados no trecho a
seguir?
“Talvez não fosse um Menino de Família, mas também não era
um Menino de Rua.
Resposta pessoal
do aluno.
08 – Releia: “Na verdade,
não existem Meninos de Rua. Existem
meninos Na rua. E toda vez que um
menino está Na rua é porque alguém o
botou lá. [...]”.
Qual é a diferença de sentido entre os
termos destacados? Qual é o efeito de sentido gerado pelo uso desses termos, no
excerto?
Enquanto “de Rua”
caracteriza “meninos” em uma situação permanente, “Na rua” dá a ideia de um
estado momentâneo.
09 – No penúltimo parágrafo,
há uma pergunta que estimula a reflexão do leitor. Releia: “Quem leva nossas
crianças ao abandono?”
a)
Qual é a resposta sugerida para essa
pergunta, no próprio texto?
Que todos nós, como indivíduos que formam a coletividade, somos
responsáveis pelo abandono dessas crianças.
b)
Você concorda com esse posicionamento?
Resposta pessoal do aluno.