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domingo, 17 de dezembro de 2023

CONTO: BOA DE GARFO - LUIZ VILELA - COM GABARITO

 Conto: Boa de garfo

             Luiz Vilela

     “Bom-dia” foi, naturalmente, a primeira coisa que meu pai disse ao homem.
      A segunda, só podia ser aquela “E essa fera aí?”
      A fera, que estava junto ao homem, era um cachorro fila, rajado, de um tamanho que eu nunca tinha vista na vida; um cachorro enorme. A gente ficava frio só de olhar para ele – aquela cabeçona com as beiçorras dependuradas.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEicrUA0ZYCyYLg8TIPZLNIVW0wQuWa7sbLxrIdjF6ouB1OErpD2BBoKWpcfquMHQbhpXzqlI-gncIiJ76OKHt1uvHmM8DSgs0vPb8ciHGEYpbr5wmWa6mt_DxXgJuCnahmEGNfO9y9aj6oc1X3pmwoGkPO51UldCy2Bj8ZVZRpqDYP72TXB-xL0pcpc47o/s320/Fila-Brasileiro2.jpg


      Mas o homem disse que não precisávamos ter medo, não tinha perigo.
       “O senhor tem certeza que não morde?” Perguntou meu pai.
       “É ela”, disse o homem, com um sorriso meio envergonhado.
       “Ela ou ele, a mordida dói do mesmo jeito”, disse meu pai.
       “O senhor pode ficar tranquilo”, disse o homem: “Ela, quando não gosta de uma pessoa, vai logo avançando”.
       “É?”, disse meu pai, “Quer dizer se ela não tivesse gostado de mim, ela já tinha avançado...”
       “Tranquilamente”, disse o homem.
       “Tranquilamente”, repetiu meu pai.
       “Mas eu sabia que ela não ia avançar”, disse o homem: “Eu sei o tipo de gente que ela não gosta: Bêbado, por exemplo, ela não pode nem sentir o cheiro”.
       “Ainda bem que eu não bebo”, disse meu pai com alívio.
      “O senhor pode ficar tranquilo”, tornou a dizer o homem, “ela é mansinha...”
       Acho que meu pai não ficou tão tranquilo, mas precisava continuar a conversa e convidou o homem a sentar-se numa das cadeiras do alpendre: o homem sentou-se. Depois meu pai sentou-se. Eu continuei em pé, no canto, olhando. A cachorra foi ficar ao lado do homem e sentou-se nas pernas de trás.
       O homem era miúdo, franzino. Era mulato, e tinha um bigodinho ralo e achinesado. Sua roupa estava com remendos, mas muito limpa – o que era bom sinal. Meu pai dizia “Se o sujeito não tem cuidado nem com a própria roupa, como eu posso esperar que ele tenha cuidado com o serviço? Meu pai devia ter gostado daquilo.
      O de que meu pai visivelmente não estava gostando era aquele animalzão parado ali, na frente, de olhos fixos nele. Mas a cachorra não parecia estar vigiando-o: parecia ser apenas curiosidade – como se ela também estivesse interessada na conversa. Mesmo assim, meu pai falou:
      “Escuta, será que ela não gostaria de dar umas voltinhas por aí enquanto a gente conversa? Tem muito passarinho ai: ela não gosta de pegar?”
       “Gostar, até que ela gosta, mas...”. o homem pareceu sem jeito de dizer:” é que não se afasta de mim por nada desse mundo; ela é muito apegada...” Olhou então para a cachorra e fez um carinho na cabeça dela: a cachorra retribuiu com um latido que fez tremer o ar no alpendre.       “Ela é muito afetuosa...”
      “É”, disse meu pai, um tanto quanto assustado, “eu estou vendo...”
Tentando esquecer a cachorra – o que não era muito fácil – meu pai prosseguiu a conversa:
     “Bom, como o senhor já sabe, meu negócio é hortaliça; comecei há pouco tempo e estou precisando de uma pessoa com bastante prática.”
O homem sacudiu a cabeça. A cachorra, quieta, olhava para meu pai.
     “Eu tive boas informações sobre o senhor, fiquei sabendo de seu trabalho... Agora nós precisamos conversar, ver se a gente combina; são várias coisas...”
      Ao falar assim, meu pai olhou para a cachorra; não sei se foi intencional, querendo dizer que a cachorra era uma das “coisas”, mas estava claro que ela o preocupava. Quando ele mandou o recado para o homem vir ao nosso sitio, ele não sabia que o homem viria acompanhado daquele cachorrão – o mais certo seria dizer o cachorrão acompanhando aquele homem - e, era evidente agora que a cachorra tinha de ser levada em conta na combinação deles.
      Houve uma pausa.
      O homem tirou do bolso da camisa um cigarro de palha, já começado, e acendeu em densas baforadas; Depois ficou olhando para fora, a espera de que meu pai prosseguisse.
      “Bem”, meu pai prosseguiu: “por quanto o senhor viria?”
      “Quanto de chão tem aqui?”
       “É o que o senhor está vendo, mais o pedaço atrás da casa, que vai até o córrego. É pouca coisa”, disse meu pai, com astúcia.
       “É, o senhor tem um sitio bem ajeitado...” o homem disse balançando a cabeça devagar; ele não era menos vivo. “O senhor planta o quê? Couve, alface, repolho...”
       “E os tomates. A maior área é a de tomate; está lá atrás, no fundo”.
       “Tomate é que é mais encrencado.”
       “É; eu tenho tido azar com os meus. Soube que o senhor é muito bom para mexer com tomate.”
       “A gente entende alguma coisa.”
       “Bom, a casa: a casa é aquela que está ali, no fundo, o senhor deve ter visto...”
        “Eu vi; parece uma casinha até boa.”
        “É, ela é muito boa”, disse meu pai, animado com o andamento da conversa; “é uma casa nova”.
        “O senhor sabe que dá até pra morar uma família ali?”
        “Dá, perfeitamente”, disse me pai. “Mas o senhor é solteiro...”
        “Sou, pela graça de Deus.”
        Meu pai riu:
        “É, às vezes ser solteiro é mesmo uma graça...”
        O homem riu também.
        Então os dois ficaram sérios de novo para prosseguirem a conversa.
        “A boia”, perguntou o homem: “como que é?”
        “A boia é por conta do empregado”, disse meu pai.
        “Sei”, o homem balançou a cabeça concordando.
        Houve uma pausa.
        “Então”, perguntou meu pai: “por quanto o senhor viria?”.
        O homem olhou para o cigarro e limpou com o dedo a cinza na ponta; pareceu refletir. Então olhou para meu pai:
        “Por quinhentos eu viria.”
        “Quinhentos?”, meu pai quase caiu da cadeira.
        Um outro empregado, em que ele estava também interessado e que aparecera lá em casa poucos dias atrás, pedira trezentos e cinquenta, e parecia tão bom quanto aquele, senão melhor – pelo menos, era bem mais forte.
      “O senhor está querendo demais”, disse meu pai; “o senhor vê que a área é pequena, a variedade dos produtos pouca, a casa boa...”
      “Quanto a isso não há dúvida”, disse o homem.
      “Eu soube que o senhor trabalha bem”, continuou meu pai; “tive muito boas informações. Mas por esse preço, sinceramente... o senhor há de reconhecer que é demais...”.
       “Eu reconheço”, disse o homem.
       “Então?”
     “A questão é que...”, o homem se mexeu na cadeira, meio incomodado. “Eu vou dizer pro senhor: cobrar caro pelo meu serviço, eu até que não cobro não. E vou dizer por quê: porque meu gasto é pequeno. Beber, eu não bebo; não sou enredado em saia; de vício, eu só tenho mesmo o cigarrinho. O senhor vê que é pouca coisa. A questão é que... A questão é a Bebé.”
       “Bebé? Quem é a Bebé?”
       “A cachorra”.
       “Ah, a cachorra; quer dizer que ela chama Bebé...”
       “Bom, o nome mesmo não e esse; Bebé é apelido”.
       “E qual é o nome?”
       “Elizabete.”
      “Elizabete?...”, meu pai arregalou os olhos. “É um nome bastante original para cachorro... Confesso que eu nunca tinha visto uma cachorra com esse nome...”
       “Era o nome da madrinha”, disse o homem.
       “Madrinha da...”
       “Minha madrinha”
      “Ah”, disse meu pai. “Ela deve ter ficado muito contente; sua madrinha...”
       “Não, ela não chegou a conhecer a cachorra não; ela morreu antes, que Deus a tenha”, e o homem ergueu respeitosamente o chapéu. “Foi ela que me criou, minha madrinha. Era uma Santa mulher. Devo muita gratidão a ela. E então falei que quando nascesse meu primeiro filho, se fosse mulher, eu ia batizar com o nome dela. Mas eu não casei; e aí, como eu gostava tanto dessa cachorra como de um filho, resolvi por o nome nela.”
       “Compreendo”, disse meu pai.
       “Muita gente acha que isso é abuso. Eu não acho. Segui meu coração, e, pra mim, tudo o que vem do coração é certo”.
O homem olhou para a cachorra, depois para o cigarro, depois, novamente para meu pai.
      “Mas, como eu ia dizendo pro senhor, a questão é a cachorra: ela come muito.”
      “Quantos quilos ela come por dia?”
      “Quilos? Não sei, mas ela é boa de garfo.”
      “Boa de garfo? O senhor quer dizer que... que ela come muito; ou...”
      “É; ela come pra danar.”
      “O senhor pode dar ração pra ela.”
      “Ração? Ela não come: ela só come carne.”
      “O senhor dá carne pra ela todo dia?”
      “Dou; quer dizer, dava, quando eu estava no emprego, quando eu tinha dinheiro. Agora... O senhor vê que ela está magra...”
       “É”, disse meu pai, olhando para a cachorra, que continuava olhando para ele: “gorda ela não está mesmo não”.
       “Pois é...”
       “E como o senhor tem feito?”
       “Tem feito?”
       “O que o senhor tem dado para ela?”
       “Tenho dado abacate.”
       “Abacate? Ela come?”
       “Come. Mas tem que ser do liso; do cascudo ela não come não. Essa cachorra tem umas coisas que... eu vou dizer pro senhor: ela tem umas coisas em que ela é igualzinha a gente...”
       “Realmente”, disse meu pai. “Até hoje eu nunca tinha ouvido falar que cachorro come abacate.”
       “Não sei se é qualquer cachorro; essa come. Ela é compreensiva; eu expliquei pra ela que não tinha mais carne, e aí ela aceitou comer abacate. Foi a sorte, sorte minha e dela, porque lá no rancho de meu irmão, onde eu estou agora, tem um pé de abacate, e ele fica tão carregado, que eu posso dar abacate pra ela o dia inteiro. Mas, não sei, acho que abacate não é comida de cachorro...”
       “É o que eu sempre pensei”, disse meu pai.
       “Acho que ela já anda com saudade duma boa carninha...”
       “Por que o senhor não arranja um cachorro menor?”
      “Um cachorro menor?... Eu vou explicar pro senhor: essa aí, quando eu peguei ela pra criar, era desse tamaninho; eu não sabia que ela ia ficar tão grande. Eu achei ela abandonada numa estrada e fiquei com dó; não sabia quem tinha abandonado, que raça que era, nem nada. Depois é que fui vendo; o bicho foi só crescendo, não parava mais de crescer, era aquela coisa. Quando vi, já era tarde. Quer dizer, eu já estava gostando dela. Aí...”
       Meu pai sacudiu a cabeça.
      “E ela não parou de   crescer ainda não”, continuou o homem. “O    senhor que pensa: ela é criança ainda, ela só tem um ano”.
       “Ela é bem crescidinha para a idade, hem?”
       “É... Mas também só tem tamanho essa danadona”, e o homem fez outro carinho na cabeça da cachorra.
      “O senhor algum dia já pensou no tanto que o senhor já gastou de carne com ela?”
       “Não, não pensei não, mas deve ter sido um despropósito.”
       “E se o senhor, em vez de dar carne para ela, tivesse comido essa carne?”
        “Eu?”
       “É; se, em vez de dar pra ela, o senhor tivesse comido essa carne?...”
        “É verdade”, o homem baixou o olhar, parecendo refletir; então olhou novamente para meu pai: “Mas e ela, quê que ela ia comer?”
         Meu pai não soube o que responder.
        “E depois”, disse o homem, “eu não tenho problema: eu como pouco. Pra mim, tendo arroz, feijão e farinha de mandioca, não precisa de mais nada; de vez em quando um ovinho frito. Ela é que é comilona. Come por três de mim essa cachorra. É por isso que eu peço esse ordenado. O senhor sabe que a carne não está brincadeira.”
       “É, mas esse preço... O senhor não vai encontrar emprego fácil não...”
       "Eu sei”, disse o homem baixando a cabeça, “eu sei disso; mas...” e olhou para o lado, para a cachorra.
       “O senhor não podia deixar a cachorra com alguém?”, perguntou meu pai. “Com seu irmão, por exemplo...”
        O homem fez uma expressão desolada:
       “Só se fosse pra ela ficar comendo abacate todo dia...”
       “É...”
       “Mas também não ia adiantar: ela não fia longe de mim; uma vez ela ficou uma semana e quase morreu de tristeza.”
       Meu pai passou a mão pelos cabelos:
      “Se o senhor aceitasse por menos... Quinhentos é demais para mim; eu estou começando, luto com muita dificuldade... O senhor vê aí, quanta coisa ainda há por fazer...”
      “É verdade”, disse o homem, de cabeça baixa, “isso eu não nego...” depois olhou para meu pai: “Mas também vou dizer uma coisa pro senhor: a Bebé sabe ajudar, não é só comer não; pra campear gado não tem cachorro igual no mundo.”
      “Mas eu não tenho gado”, disse meu pai, já meio irritado.
      “Às vezes o senhor ainda pode ter.”
      “Não, não penso em ter gado não”.
      “Se o senhor tivesse, o senhor ia ver o tanto que ela boa pra campear.”
      “Pode ser, mas eu nunca pensei em ter gado, nem estou pensando nisso.”
       Meu pai olhou para a cachorra, quieta no mesmo lugar e sempre de olhos nele. Diabo, ele deve ter pensado, se não fosse aquela cachorra, tudo já estaria resolvido...
       Nessa hora minha mãe o chamou lá de dentro; ele pediu licença e foi. Eu fui junto.
      “Eu estava escutando a conversa”, disse minha mãe. “Quê que você ainda espera? Será que você está pensando em pegar esse sujeito? Onde você está com a cabeça? O outro pediu trezentos e cinquenta: são cento e cinquenta cruzeiros de diferença; quanta coisa a gente não pode fazer com esse dinheiro, a gente que vive no aperto? E, além do mais, o outro homem é muito mais forte; quê que esse tampinha aí aguenta?”
      Ele é mais competente”
     “Mais competente... Você tem hora que me dá uma raiva... Você acredita em tudo o que os outros falam... Você está acreditando nessa conversa mole? E ele ainda vem com essa história de cachorro...”
      “Essa raça come mito mesmo”
      “Que coma, que coma até uma tonelada: você acha que é para isso que ele quer o dinheiro: Ele está te levando na conversa, fazendo você de bobo. E, depois, já pensou agente com um cachorro desses por perto? Ele é capaz de comer até a gente.”
      “É ela”, disse meu pai, imitando o homem, enquanto abria a garrafa térmica para tomar uma xícara de café.
      “Despache ele logo”, disse minha mãe, “senão ele vai ficar aí até tarde, ensebando, e você ainda precisa consertar o moinho. Eu vou à cidade agora, fazer as compras”.
      Meu pai e eu voltamos ao alpendre. O homem e a cachorra estavam lá, na mesma posição, e olharam ao mesmo tempo para nós.
      Meu pai sentou-se, franziu a testa, passou a mão na cabeça:
      Quer dizer que o senhor só viria mesmo por quinhentos...”
      “É”, disse o homem; “infelizmente... É como expliquei pro senhor...”
     Minha mãe então veio e passou pelo alpendre: cumprimentou secamente o homem e olhou de um jeito nada amistoso para meu pai. Quando ela ficava com raiva, andava reta e dura como uma tábua. Lá fora, ela caminhou até o carro, entrou e, sem dar tiau, arrancou numa zangada nuvem de poeira. Nós ficamos olhando, até o carro desaparecer na curva, por trás do milharal.
     Eu já conhecia bem meu pai para saber que, quando o carro desapareceu, ele teve uma sensação de alívio. Ficou então olhando para a cachorra, e num tom em que não falara até aquela hora, disse:
      “Ela não desprega os olhos de mim...”
      “Ela gostou do senhor”, disse o homem.
      “Será?...” disse meu pai.
      Para ver, ele se curvou um pouco para frente e estralou os dedos: num segundo, com uma rapidez incrível, a cachorra estava sobre ele, as patas no seu peito, a língua lambendo-lhe o rosto, ele sumindo o quanto podia na cadeira.
     “Cá, Bebé, cá”, o homem chamou, e a cachorra obedeceu. “Eu não falei? Ela gostou do senhor...”
      “É”, disse meu pai branco de susto.
      “Ela é muito carinhosa”
      “Eu vi”, disse meu pai.
      A cachorra olhava para ele – os olhos brilhantes, o rabo abanando fortemente -, querendo se aproximar e só esperando que meu pai estralasse outra vez os dedos, o que, evidentemente, ele não fez.
       “Sua cachorrinha é pesada...”
       “É...”
       “Que dirá quando ela está bem alimentada...”
       “Ah, o senhor precisa ver:aí ela fica uma beleza; fica parecendo uma leoa.”
       “Eu imagino”, disse meu pai.
       "Fica parecendo uma daquelas leoas de circo.”
       “Eu imagino...”
       Estávamos agora os três olhando para a cachorra, que continuava alegre, abanando o rabo, os olhos brilhantes.
      “Uma pergunta”, disse meu pai, sério de novo, e o homem olhou com atenção para ele: “o senhor não acha que ela poderia pisar nos canteiros?”
     “Canteiros?... Não, ela é bem-comportada; é só a gente falar, que ela obedece. O senhor pode ficar tranquilo.”
      “Outra coisa: e se ela gostar de tomate?”
      “Tomate?, o homem ficou olhando meio confuso para meu pai; depois, vendo que ele ria, riu também: “O senhor está é brincando, né?
      “Não sei. Ela não gosta de abacate? Quem me dirá que ela não goste também de tomate?...”
      "Não, de tomate ela não gosta não, o senhor pode ficar tranquilo...” o homem disse, rindo contente.
      “O senhor me garante?”
      “Garanto, o senhor pode ficar tranquilo...”
      “Bom, disse meu pai, “nesse caso, então, o senhor pode vir”.
      “Sim senhor”, disse o homem. “Quando?”
      “Amanhã mesmo, se o senhor puder.”
      “Eu posso; amanhã o senhor pode me esperar, que eu venho”.
      “Combinado”, disse meu pai.
       Ficaram um momento em silêncio, o homem olhando com ternura para a cachorra, e meu pai olhando para os dois.
       O homem então se levantou:
       “Vamos Bebé?”
       Olhou para meu pai:
       “O senhor pode ficar tranquilo; o senhor não vai se arrepender.”
       “Assim espero”, disse meu pai.
       O homem despediu-se dele, depois despediu-se de mim, chamando-me de “mocinho”. E então foi andando para a estrada, a cachorra a seu lado. Pareciam ter um gingado alegre no andar. Eu disse isso para meu pai.
      “É”, ele concordou, “eles são alegres, todos dois”.
      “Estão...”
      “Você acha que ele me fez de bobo?”, meu pai me perguntou.
      “Não”, eu disse.
      “Eu também acho que não”, disse meu pai; “tenho certeza”.
      “Eu também tenho certeza”, eu disse.
      “Sua mãe é que não vai gostar.”
      “Ih!... Ela vai ficar uma fera com o senhor...”
       "Se vai...”, disse me pai, rindo. “Eu não quero nem saber...”
       Ele me pôs a mão no ombro:
      “Vamos lá, consertar o moinho?”
     “Vamos”, eu disse.          

Entendendo o texto

     01. O que despertou a preocupação do pai em relação à cachorra durante a conversa com o homem?

         a) O tamanho da cachorra.

         b) O comportamento agressivo da cachorra.

         c) O custo elevado para alimentar a cachorra.

   02. Qual era o nome verdadeiro da cachorra e por que recebeu o apelido "Bebé"?

         a) O nome verdadeiro era Elizabete, e recebeu o apelido por ser o nome da madrinha do homem.

         b) O nome verdadeiro era Bebé, e recebeu o apelido por ser carinhosa.

         c) O nome verdadeiro era Bebé, e recebeu o apelido por ser o nome da madrinha do homem.

      03. Por que o homem considerou o pedido de quinhentos cruzeiros justificado?

        a) Porque era o valor médio de salário para aquele tipo de trabalho.

        b) Porque ele tinha poucos gastos pessoais e não bebia.

        c) Porque sua cachorra era muito competente no trabalho.

    04. Qual era a principal preocupação da mãe em relação à contratação do homem?

        a) A competência do homem para o trabalho.

        b) O comportamento da cachorra.

        c) O valor pedido pelo homem.

  05. O que motivou o pai a concordar com a contratação do homem?

        a) A habilidade do homem para campear gado.

       b) O comportamento alegre do homem e da cachorra.

       c) A garantia do homem de que a cachorra não pisaria nos canteiros.

   06. Por que o pai mencionou a possibilidade de a cachorra gostar de tomate durante a conversa?

        a) Para testar a veracidade das afirmações do homem.

        b) Porque ele sabia que a cachorra gostava de tomate.

       c) Para provocar uma reação do homem.

    07. Como a mãe reagiu quando voltou do mercado?

         a) Ficou satisfeita com a contratação do homem.

         b) Ficou irritada com o pai por aceitar o homem.

        c) Ficou surpresa com a notícia.

    08. O que motivou o pai a concordar com a contratação do homem?

        a) A habilidade do homem para campear gado.

        b) O comportamento alegre do homem e da cachorra.

        c) A garantia do homem de que a cachorra não pisaria nos canteiros.

    09. Qual era a principal dúvida do pai em relação à cachorra durante a conversa?

       a) Se a cachorra se daria bem com outros animais.

       b) Se a cachorra gostaria de tomate.

       c) Se a cachorra poderia pisar nos canteiros.

  10. Como o homem justificou o valor pedido de quinhentos cruzeiros?

       a) Ele precisava de dinheiro para alimentar a cachorra.

       b) Ele tinha poucos gastos pessoais e não bebia.

       c) Ele possuía habilidades especiais para o trabalho.

 

                                           

 

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

CONTO: SOFIA - LUIZ VILELA - COM GABARITO

 CONTO: SOFIA

                Luiz Vilela

          Já tinham brincado muito, e agora estavam reunidos ao pé do poste, pensando numa nova coisa para fazer.

          Ainda era cedo, a noite apenas começara.

          - Vamos mexer com a Sofia? - propôs um.

          Sofia era a dona do mercadinho - a vítima predileta deles. Pintavam o sete com ela. Sofia assustava-se com nada, e isso os deliciava. Viviam assombrando-a: vozes estranhas chamando lá fora, e ninguém (estavam no telhado), caveira de mamão verde com vela acesa dentro, capas, máscaras horrorosas, o caixote de lixo que sumia, o ferro de abaixar a porta que sumia, ratos, sapos, lagartixas aparecendo de repente, minha nossa! quase desmaiava, dessa vez eu chamo o guarda, mas nunca chamava o guarda, e tudo o que fazia era ameaçar os meninos, agitando o braço gordo:

        - Eu vai contar bra seu pai, menino! Eu vai contar bra seu pai!

        Eles riam, alegres, distantes do braço dela.

        - Raledine baculé, pé de turco tem chulé!

        - Moleques! Sembrefonhas!

        - Sofia guer gombra galinha de raça? Cadê os urubus que ocê comprou hem Sofia? Cadê as galinhas de raça?

        Caíam na risada.


(VILELA, Luiz. Contos da infância e da adolescência. Ática: São Paulo, 1996. p.15-6).

Fonte: Livro - Práticas de Linguagem.Vol.4. Editora Scipione: São Paulo, 2000.p.94-6).

Teoria & Prática

1. Observe as falas de Sofia:

    "- Eu vai contar bra seu pai, menino! Eu vai contar bra seu pai!"

    "- Moleques! Sembregonhas!"

Como elas ficariam se fossem registradas no padrão formal da língua portuguesa?

- Eu vou contar para seu pai, menino! Eu vou contar para seu pai!

- Moleques! Sem-vergonhas!

2. Em sua opinião, qual é a nacionalidade de Sofia?

    Embora não fique explícito, provavelmente  Sofia era de origem síria, armênia ou libanesa. Na brincadeira dos meninos, ela é chamada de "turca". Pois aqui em nosso país, os imigrantes de origem árabe são erroneamente designados "turcos".

3. A linguagem utilizada pelo personagem Sofia é coerente com sua provável nacionalidade?

O autor procura reproduzir o modo de falar dos imigrantes "turcos".

4. Qual foi a intenção do autor ao reproduzir as falas de Sofia daquele modo, e não no padrão formal?

Porque tem a função estilística importante, sendo através dela é possível caracterizar o personagem.

5. Além da linguagem utilizada pelos personagens, que  outros elementos do texto revelam coerência?

As atitudes dos meninos (provocações e brincadeiras para assustar Sofia) são típicas de garotos, sendo, portanto, coerentes com os personagens.



















sábado, 22 de junho de 2019

CONTO: UM PEIXE - LUIZ VILELA - COM QUESTÕES GABARITADAS

Conto: Um Peixe
         Luiz Vilela

        Virou a capanga de cabeça para baixo, e os peixes espalharam-se pela pia. Ele ficou olhando, e foi então que notou que a traíra ainda estava viva. Era o maior peixe de todos ali, mas não chegava a ser grande: pouco mais de um palmo. Ela estava mexendo, suas guelras mexiam-se devagar, quando todos os outros peixes já estavam mortos. Como que ela podia durar tanto tempo assim fora d'água? ...
        Teve então uma ideia: abrir a torneira, para ver o que acontecia. Tirou para fora os outros peixes: lambaris, chorões, piaus; dentro do tanque deixou só a traíra. E então abriu a torneira: a água espalhou-se e, quando cobriu a traíra, ela deu uma rabanada e disparou, ele levou um susto – ela estava muito mais viva do que ele pensara, muito mais viva. Ele riu, ficou alegre e divertido, olhando a traíra, que agora tinha parado num canto, o rabo oscilando de leve, a água continuando a jorrar da torneira. Quando o tanque se encheu, ele fechou-a.
        – E agora? – disse para o peixe. – Quê que eu faço com você? ...
        Enfiou o dedo na água: a traíra deu uma corrida, assustada, e ele tirou o dedo depressa.
        – Você tá com fome? ... E as minhocas que você me roubou no rio? Eu sei que era você; devagarzinho, sem a gente sentir... Agora está aí, né? ... Tá vendo o resultado? ... 
        O peixe, quieto num canto, parecia escutar. Podia dar alguma coisa para ele comer. Talvez pão. Foi olhar na lata: havia acabado. Que mais? Se a mãe estivesse em casa, ela teria dado uma ideia – a mãe era boa para dar ideias. Mas ele estava sozinho. Não conseguia lembrar de outra coisa. O jeito era ir comprar um pão na padaria. Mas sujo assim de barro, a roupa molhada, imunda.
        – Dane-se – disse, e foi.
        Era domingo à noite, o quarteirão movimentado, rapazes no footing, bares cheios. Enquanto ele andava, foi pensando no que acontecera. No começo fora só curiosidade; mas depois foi bacana, ficou alegre quando viu a traíra bem viva de novo, correndo pela água, esperta. Mas o que faria com ela agora? Matá-la, não ia; não, não faria isso. Se ela já estivesse morta, seria diferente; mas ela estava viva, e ele não queria matá-la. Mas o que faria com ela? Poderia criá-la; por que não? Havia o tanquinho do quintal, tanquinho que a mãe uma vez mandara fazer para criar patos. Estava entupido de terra, mas ele poderia desentupi-lo, arranjar tudo; ficaria cem por cento. É, é isso o que faria. Deixaria a traíra numa lata d'água até o dia seguinte e, de manhã, logo que se levantasse, iria mexer com isso.
        Enquanto era atendido na padaria, ficou olhando para o movimento, os ruídos, o vozerio do bar em frente. E então pensou na traíra, sua trairinha, deslizando silenciosamente no tanque da pia, na casa escura. Era até meio besta como ele estava alegre com aquilo. E logo um peixe feio como traíra, isso é que era o mais engraçado.
        Toda manhã – ia pensando, de volta para casa – ele desceria ao quintal, levando pedacinhos de pão para ela. Além disso, arrancaria minhocas, e de vez em quando pegaria alguns insetos. Uma coisa que podia fazer também era pescar depois outra traíra e trazer para fazer companhia a ela; um peixe sozinho num tanque era algo muito solitário.
        A empregada já havia chegado e estava no portão, olhando o movimento.
        – Que peixada bonita você pegou...
        – Você viu?
        – Uma beleza... Tem até uma trairinha.
        – Ela foi difícil de pegar, quase que ela escapole; ela não estava bem fisgada.
        – Traíra é duro de morrer, hem?
        – Duro de morrer? ...
        Ele parou.
         – Uai, essa que você pegou estava vivinha na hora que eu cheguei, e você ainda esqueceu o tanque cheio d'água... Quando eu cheguei, ela estava toda folgada, nadando. Você não está acreditando? Juro. Ela estava toda folgada, nadando.
        – E aí?
        – Aí? Uai, aí eu escorri a água para ela morrer; mas você pensa que ela morreu? Morreu nada! Traíra é duro de morrer, nunca vi um peixe assim. Eu soquei a ponta da faca naquelas coisas que faz o peixe nadar, sabe? Pois acredita que ela ainda ficou mexendo? Aí eu peguei o cabo da faca e esmaguei a cabeça dele, e foi aí que ele morreu. Mas custou, ô peixinho duro de morrer! Quê que você está me olhando?
        – Por nada.
        – Você não está acreditando? Juro; pode ir lá na cozinha ver: ela está lá do jeitinho que eu deixei.
        Ele foi caminhando para dentro.
        – Vou ficar aqui mais um pouco – disse a empregada. – depois vou arrumar os peixes, viu?
        – Sei.
        Acendeu a luz da sala. Deixou o pão em cima da mesa e sentou-se. Só então notou como estava cansado.

  Luiz Vilela. O violino e outros contos. 7. ed. São Paulo: Ática, 2007. p. 36-38.
Entendendo o conto:
01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:
·    Capanga: bolsa pequena, de tecido, couro ou plástico, usada a tiracolo.
·        Footing: passeio a pé, com o objetivo de arrumar namorado(a).
·  Guelra: estrutura do órgão respiratório da maioria dos animais aquáticos.
·        Rabanada: movimento brusco com o rabo.
·        Vozerio: som de muitas vozes juntas.

02 – Qual é o foco narrativo do conto? Justifique com elementos do texto.
      O texto é narrado em terceira pessoa. Os verbos e pronomes na terceira pessoa justificam essa resposta.

03 – Quais são as características do narrador dessa história?
      É um narrador em terceira pessoa, que não participa da história, mas sabe de tudo sobre as personagens, incluindo o que estão pensando.

04 – Releia o trecho a seguir: “[...] Como que ela podia durar tanto tempo assim fora d’água? ...”. De quem é essa voz?
      É a voz do narrador onisciente, que conhece até mesmo os pensamentos das personagens.

05 – O conto é um gênero de narrativa no qual se desenvolve um único conflito envolvendo o(s) protagonista(s). Nesse conto, assistimos a um conflito interior, que se passa no íntimo do protagonista.
a)   Qual é esse conflito?
O conflito é o que fazer com o peixe que não havia morrido.

b)   Que fato provoca tal conflito?
O fato de a traíra ainda estar viva quando a personagem principal despeja os peixes na pia.

06 – O conflito interior do protagonista se inicia e vai se desenvolvendo até a decisão final.
a)   Qual é a decisão do protagonista a respeito do peixe?
A decisão é criar a traíra no tanquinho do quintal.

b)   Quais são as etapas desde o conflito até a tomada de decisão?
No começo, a personagem principal fica apenas curiosa, mas depois se anima com a ideia de o peixe estar vivo. Resolve sair para comprar comida para o peixe e decide limpar o tanquinho para ele cria-lo.

07 – Reproduza o trecho que corresponde ao clímax desse conto e explique por que você considera esse o momento de maior tensão da história.
      O clímax se dá no momento em que a empregada diz “—Traíra é duro de morrer, hem?”; porque, então, a personagem principal vê desmoronar seu sonho de criar a traíra como um peixe de estimação.

08 – A escolha do foco narrativo em terceira pessoa permite que exista um diálogo, como o que se dá entre a personagem principal e a empregada, carregado de tensão. Se esse conto fosse narrado em primeira pessoa, isso seria possível? Por quê?
      Não. Se o narrador fosse o menino, ele diria o que pensou ao ouvir a empregada, e todo o clima de tensão desapareceria.

09 – Considerando o que foi estudado neste capítulo sobre os determinantes do substantivo, podemos dizer que, no início da narrativa, a traíra era realmente “um peixe” para a personagem principal, mas, no final, o menino já poderia se referir a ela como “o peixe”. Por quê?
      No início da narrativa, o uso do artigo um mostra que o peixe é desconhecido, um peixe qualquer, igual a outros que o menino já viu. No fim, o artigo o individualiza esse peixe: não se trata mais de qualquer peixe, mas daquele ao qual a personagem se afeiçoou.

10 – Nos primeiros parágrafos, o narrador descreve a cena em que a personagem principal volta de uma pescaria. Logo em seguida, esse mesmo narrador oferece ao leitor uma informação que vai alterar a situação inicial da história.
a)   Que informação é essa?
Trata-se da informação de que a traíra estava viva.

b)   Por que essa informação vai alterar o rumo da trama?
Porque, a partir deste momento, a traíra mostra-se realmente viva. E o que fazer com ela é a questão que se segue.

11 – A personagem começa a gostar do peixe. Como isso aparece no texto?
      A personagem começa a conversar com o peixe.

12 – Releia: “[...] E então pensou na traíra, sua trairinha, deslizando silenciosamente no tanque da pia, na casa escura.”
a)   O que o diminutivo trairinha revela sobre os sentimentos da personagem?
O diminutivo mostra que a personagem já estava se afeiçoando à traíra.

b)   Como a personagem encara essa relação com a traíra?
O menino acha curioso se interessar pela traíra, afeiçoar-se a um peixe que nem bonito era.

13 – Releia:
        “– Traíra é duro de morrer, hem?
        – Duro de morrer? ...
        Ele parou.
         – Uai, essa que você pegou estava vivinha na hora que eu cheguei, e você ainda esqueceu o tanque cheio d'água... Quando eu cheguei, ela estava toda folgada, nadando. Você não está acreditando? Juro. Ela estava toda folgada, nadando.”

a)   Em vez de dizer tudo o que a personagem sentiu ao ouvir a empregada, o narrador limitou-se a uma frase curta e seca: “Ele parou”. Que efeito esse recurso provoca no leitor?
Frases curtas e secas são mais diretas. Neste caso, a frase cria um suspense, deixando o leitor na expectativa do que poderia ter de fato acontecido ao peixe.

b)   O que a personagem pode ter pensado naquele momento?
Resposta pessoal do aluno.

c)   Explique o uso do diminutivo vivinha nesse trecho.
O diminutivo, nesse trecho, intensifica a ideia de vivacidade e vitalidade; vivinha quer dizer “muito viva, bem viva”.

14 – Há no texto perguntas não indicadas por travessão. Observe:
        “[...]No começo fora só curiosidade; mas depois foi bacana, ficou alegre quando viu a traíra bem viva de novo, correndo pela água, esperta. Mas o que faria com ela agora? Matá-la, não ia; não, não faria isso. Se ela já estivesse morta, seria diferente; mas ela estava viva, e ele não queria matá-la. Mas o que faria com ela? Poderia criá-la; por que não?”

a)   Essas perguntas estão relacionadas à voz de qual personagem?
À voz da personagem principal, o menino.

b)   Que informações essas perguntas revelam ao leitor?
Essas perguntas permitem que o leitor conheça as dúvidas, os sentimentos e pensamentos da personagem principal.




segunda-feira, 19 de novembro de 2018

CONTO: EU ESTAVA ALI DEITADO - LUIZ VILELA - COM QUESTÕES GABARITADAS

Conto: EU ESTAVA ALI DEITADO
               
   LUIZ VILELA

        Eu estava ali deitado olhando através da vidraça as roseiras no jardim fustigadas pelo vento que zunia lá fora e nas venezianas do meu quarto e de repente cessava e tudo ficava tão quieto tão triste e de repente recomeçava e as roseiras frágeis e assustadas irrompiam na vidraça e eu estava ali o tempo todo olhando estava em minha cama com a minha blusa de lã as mãos enfiadas nos bolsos os braços colados ao corpo as pernas juntas estava de sapatos Mamãe não gostava que eu deitasse de sapatos deixe de preguiça menino! mas dessa vez eu estava deitado de sapatos e ela viu e não falou nada ela sentou-se na beirada da cama e pousou a mão em meu joelho e falou você não quer mesmo almoçar?
        Eu falei que não quer comer nada? eu falei que não nem uma carninha assada daquelas que você gosta? com uma cebolinha de folha lá da horta um limãozinho uma pimentinha? ela sorriu e deu uma palmadinha no meu joelho e eu também sorri mas falei que não estava com a menor fome nem uma coisinha meu filho? uma coisinha só? eu falei que não e então ela ficou me olhando e então ela saiu do quarto eu estava de sapatos e ela não falou nada ela não falaria nada meus sapatos engraxados bonitos brilhantes
        Ele não quer comer nada? escutei papai perguntando e mamãe decerto só balançou a cabeça porque não escutei ela responder e agora eles estavam comendo em silêncio os dois sozinhos lá na mesa em silêncio o barulho dos garfos a casa quieta e fria e triste o vento zunindo lá fora e nas venezianas de meu quarto.
        — Você precisa compreender isso, Carlos
        — Não posso, Miriam
        — Não daria certo
        — Não daria certo?
        — Nossos temperamentos não combinam
        — Não é verdade
        — Assim será melhor para nós dois
        Não Miriam não é verdade Miriam não é certo Miriam não pode Miriam não pode não pode! ó meu Deus não pode.
        Papai estava parado à porta pensei que você estava dormindo ele falou eu sorri que vento hem! ele falou e eu olhei para a vidraça e lá estavam as roseiras frágeis e assustadas, fustigadas pelo vento esse mês de junho é terrível ele falou ele estava parado no meio do quarto estava de paletó e gravata de pulôver esfregava as mãos eu vou lá no Jorge você não quer ir também? ele ficou olhando pra mim esperando não papai dar uma volta? não obrigado você vai virar sorvete aí dentro ele brincou e eu ri e ele riu e então ficou sério de novo esfregava as mãos fiquei com pena dele eu sabia que ele queria me dizer alguma coisa sabia quase o que ele queria me dizer mamãe devia ter dito a ele Artur chama o Carlos para dar uma volta e ele dissera isso mas agora era diferente era ele mesmo que queria me dizer alguma coisa e estava atrapalhado ficava atrapalhado quando queria conversar essas coisas com um filho e então esfregava as mãos não era por causa do frio Carlos eu sei o que você está sentindo ele falou Eu sei como é muito aborrecido mesmo mas há coisas piores sabe? eu olhei para ele e então ele abaixou a cabeça e de novo estava atrapalhado e de novo eu fiquei com pena dele eu sei que você gosta muito dela eu sei eu sei que isso é muito aborrecido mas ele olhou pra mim não se preocupe papai eu falei não precisa se preocupar não é nada eu sei mas você não almoçou eu estava sem fome pois é e então nós dois ficamos calados ele tirou o relógio do bolso e olhou as horas você não quer ir mesmo no Jorge? ele perguntou e eu falei que não então ele saiu do quarto escutei ele abrindo o portão e depois os passos dele na calçada o vento zunia lá fora eu estava olhando para os meus sapatos ela gostava deles assim engraxados bonitos brilhantes você é tão cuidadoso Carlos como gosto de você não pode calcular o tanto que eu gosto de você se te acontecesse alguma coisa se te acontecesse alguma coisa eu não sei o que eu faria mas não vai acontecer nada bem vai? Não vai não pode se te acontecesse alguma coisa acho que eu morreria eu gosto demais de você demais, demais.
        Fechei os olhos e contei até quinhentos e recordei os nomes de todas as capitais do Brasil e da Europa e recordei os nomes das dezenas de rios e dezenas de montanhas e deitei de bruços e deitei do lado direito deitei do lado esquerdo e deitei de bruços outra vez e pus o travesseiro em cima da cabeça e pus o travesseiro de baixo da cabeça e apertei a cabeça contra a parede e apertei mais ainda a cabeça contra a parede que ela doeu e então virei de costas outra vez e enfiei as mãos nos bolsos colei os braços ao corpo juntei as pernas abri os olhos e estava de novo olhando através da vidraça as roseiras frágeis e assustadas fustigadas pelo vento que zunia lá fora e nas venezianas de meu quarto.
                                                        (De no bar. Rio, Bloch, 1968.)
Glossário:
Fustigado = açoitado, castigado, maltratado.
Irromper = entrar com ímpeto, com violência, invadir subitamente.
Veneziana = persiana, janela com lâminas que formam frestas e escurecem o ambiente.
Zunir = movimentar-se produzindo ruído agudo, zumbir.

Entendendo o conto:
01 – O conto que você leu está centrado em uma personagem.
a)   Quem? Onde ela se encontra?
Carlos está deitado na cama, em seu quarto.

b)   Além do espaço ocupado por ela, que outros espaços são mencionados? O que o leitor sabe sobre eles?
O jardim, onde o vento zune fustigando roseiras “frágeis e assustadas”, e o cômodo onde os pais de Carlos almoçam.

c)   Quais são as ações realizadas por essa personagem ao longo da narrativa?
Carlos apenas se revira na cama, olha para os próprios sapatos ou para a vidraça e troca poucas palavras com os pais.

d)   Para você, qual a duração cronológica aproximada das ações?
Resposta pessoal do aluno.

02 – O sentimento predominante no texto é o de tristeza.
a)   Qual é o motivo do abatimento de Carlos?
Míriam, a namorada (ou noiva) de Carlos, decidiu separar-se dele.

b)   Carlos relembra dois momentos distintos que vivenciou com Míriam. Essas lembranças o ajudam a compreender sua situação atual? Explique.
Não, elas apenas justificam seu inconformismo, pois revelam uma contradição. A primeira lembrança mostra uma Míriam decidida e fria, que justifica vagamente a separação. A segunda, provavelmente mais antiga, mostra uma Míriam apaixonada (“se te acontecesse alguma coisa acho que eu morreria [...]”).

03 – Carlos não está em sintonia com as pessoas que o cercam, mas está em sintonia com o espaço, que, de certa forma, reproduz seu estado de espírito.
a)   Como está a casa de Carlos?
Quieta, fria e triste.

b)   Como está o tempo na tarde retratada?
Faz frio e venta.

04 – No conto predomina o espaço físico ou psicológico? Explique sua resposta.
      Predomina o espaço psicológico: os pensamentos, as emoções e as lembranças de Carlos são o núcleo do texto.

05 – A personagem principal do conto, presa em sua dor, desenvolve pensamentos obsessivos. Qual é a estratégia utilizada no texto para mostrar ao leitor que Carlos não consegue se libertar de certas ideias e imagens?
      A repetição intencional de algumas expressões, que mostra o pensamento de Carlos voltando sempre aos mesmos pontos.

06 – No último parágrafo do conto, o narrador-personagem relata os artifícios que utiliza para tentar desviar seu pensamento da separação.
a)   Quais são esses artifícios?
Ele conta até quinhentos, rememora nomes de capitais, rios, montanhas, pressiona a cabeça contra a parede.

b)   Eles se mostram úteis?
Não.

c)   Tentar esquecer uma decepção amorosa e não conseguir é uma experiência comum, com a qual praticamente todos os leitores conseguem se identificar. Que outras situações retratadas no texto podem remeter o leitor a vivências conhecidas?
A falta de apetite causada por tristeza; a mãe se preocupa, querendo que o filho coma; a dificuldade do pai em falar com o filho sobre sentimentos.