Crônica: A partida
Viriato Corrêa
Quem me deu a notícia foi o Ninico da
Totonha, no dia em que lhe pedi o sabiá da mata que ele, pela manhã, apanhara
no alçapão.
— Este não pode ser. Mas eu lhe dou
outro na véspera de sua partida para a vila.
— Que vila? perguntei.
Ninico arregalou os olhos, espantado.
—
Você não vai para a vila, Cazuza?
— Não sei disso.
Seus olhos surpreenderam-se mais.
— Então não sabe que a sua família vai
mudar-se para a vila?! Não se fala noutra coisa.
Lembrei-me da frase de minha mãe no dia
da sabatina de tabuada: "Depois ele aprenderá na vila".
Pareceu-me ter ouvido qualquer coisa
sobre a mudança, mas, preocupado com os brinquedos, não prestei atenção nenhuma
às conversas.
Quando voltei para casa, minha mãe, no
avarandado, amamentava o meu irmãozinho de mês e meio. Falei-lhe imediatamente:
— O Ninico acabou de me dizer que nós
vamos de mudança para a vila. É verdade?
— É verdade.
— Quando?
— Breve.
— Por que é que a gente vai para a
vila? insisti.
Mamãe não respondeu e, como eu de novo
fizesse a pergunta, disse, evidentemente a disfarçar:
— Porque precisas aprender e a escola
da vila é melhor do que a daqui.
E mudou de conversa.
Nunca pude saber, ao certo, o motivo
que levara minha família a deixar o povoado em que meu pai nascera e vira
nascer os seus primeiros filhos. Mas não foi somente porque a escola da vila
fosse melhor que a da povoação.
Ao que percebi nesta frase, naquela,
naquela outra, a causa da mudança foram os negócios comerciais de meu pai. Os
negócios iam mal.
Vovô Lucrécio, pai de minha mãe,
morador da vila, já velho e cansado de trabalhar, oferecera a meu pai a sua
casa de negócios.
Para que a nossa casa no povoado não
passasse a mãos estranhas, tio Olavo se mudaria para ela e ficaria gerindo os
nossos pequenos bens.
Mais de uma vez surpreendi minha gente
de olhos molhados e vermelhos. Todos se doíam de deixar aquele cantinho de
terra, até mesmo minha mãe, que ia para o seu cantinho natal.
Eu não me doía de nada. À proporção que
os dias passavam mais contente ia ficando.
O que me contavam da vila enchia-me a
cabeça de curiosidade. Havia muitas casas de telha, casas de sobrado, igreja,
festas, muita gente e uma grande escola com duas ou três centenas de crianças.
As visitas de despedidas começaram um
mês antes de partirmos.
Abalávamos a família inteira para a
casa de um ou de outro parente, de um ou de outro amigo, e lá ficávamos de
manhã à noite, trocando palavras de carinho.
Passei uma tarde inteirinha em casa de
Chiquitita; outra tarde em casa do Maneco; almocei com o Ioiô, jantei com o
Manduca, com o Quincas, com a Rosa.
Na Pedra Branca, passei dia e meio. Fui
depois do almoço, dormi e só voltei no dia seguinte, ao anoitecer.
Tia Mariquinhas permitiu que os meninos
da minha roda fossem lá brincar comigo. Fartamo-nos de comer frutas, de trepar
nas árvores e nos balanços, de andar nas águas do riacho, remando a jangadinha.
Oito dias antes, os nossos trens
começaram a ser enviados para a vila. A primeira igarité que seguiu, ia
apinhadinha de baús, canastras e samburás.
Não me ficou claramente gravado na
memória o momento da partida. Três dias antes, amanheci, inesperadamente,
ardendo em febre. Na véspera a febre voltou mais forte.
E na manhã em que partimos, a febre era
tanta que fui carregado até o porto nos braços do Jorge Carreiro. Não me
recordo de quase nada.
Lembro-me apenas de que abri os olhos
cansados no momento em que a igarité ia largando.
E vi uma aglomeração de gente na
ribanceira do rio.
Vi o lenço de Tia Mariquinhas,
batendo...
Vi, confusamente, outros lenços
agitando-se...
Vi o Vavá, o Manduca, o Chiquinho...
Vi a Rosa chorando, a gritar pelo meu
nome...
E vi, quase à beira d’água, o velho
Mirigido, de boca escancarada, muito vermelha, a gritar qualquer coisa aos
remadores da igarité.
Viriato Corrêa. Cazuza.
27. ed. São Paulo: Nacional, 1997. p. 16-7.
Entendendo a crônica:
01 – Por que Cazuza fica
surpreso ao saber da mudança para a vila?
Cazuza fica surpreso ao saber da mudança
para a vila porque não tinha conhecimento dessa decisão da família.
02 – Qual é a justificativa
inicial dada pela mãe de Cazuza para a mudança para a vila?
Inicialmente, a mãe de Cazuza diz que a
mudança é necessária porque a escola na vila é melhor e ele precisa aprender.
03 – Quais são as pistas dadas
ao longo da crônica sobre o verdadeiro motivo da mudança da família de Cazuza
para a vila?
Há indícios de
que o motivo da mudança é relacionado aos negócios comerciais do pai de Cazuza,
que não estão indo bem.
04 – Como Cazuza reage à
notícia da mudança?
Cazuza
inicialmente fica surpreso, mas ao longo do tempo ele se mostra cada vez mais
contente com a ideia da mudança para a vila.
05 – Como são descritas as
visitas de despedidas realizadas pela família de Cazuza antes da partida?
As visitas de
despedidas são descritas como momentos em que a família se desloca para casas
de parentes e amigos, trocando palavras de carinho e compartilhando momentos
especiais.
06 – O que acontece com Cazuza
nos dias próximos à partida para a vila?
Nos dias próximos
à partida, Cazuza fica doente, com febre, e precisa ser carregado até o porto
nos braços de Jorge Carreiro.
07 – Quais são as últimas
imagens que Cazuza lembra no momento da partida?
No momento da
partida, Cazuza lembra-se de ver uma aglomeração de pessoas na ribanceira do
rio, lenços sendo agitados, amigos chorando e o velho Mirigido gritando algo
aos remadores da igarité.
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