Entrevista: Que mistério tem Clarice?
(Texto-montagem)
Renato Cordeiro Gomes
Não gosto de dar entrevistas: as
perguntas me constrangem, custo a responder, e, ainda por cima, sei que o
entrevistador vai deformar fatalmente minhas palavras.
Assim, para não correr esse risco e não
haver constrangimento, não aconteceu nenhuma entrevista, apesar do bate-papo
descontraído e, por fim, amigo, numa sala acolhedora, no Leme, onde moram
Clarice e seus mistérios.
Houve não-perguntas, mas há respostas
(?). Revelação! Diante da máquina de escrever, ELA fala:
Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjEcCzORaUpfkWM2OYNL0l7VsMYv9SveI9vTMkHFo4CuXG-ApdkRQQIRIvS4yUDqDCHzrwROba_zbUJpMc-HYyvEZ2GgYXjiCY6r3j3eu4ko_ja914U_SZC8tkp0x7MYjazA6U_5FnTM4J1reeaQjV6InqqkFX-v0_td4AV1rmbXexziIzfbKRUPESGoxc/s320/Ruins_of_Chechelnyk_synagogue.jpg
Explicação
de uma vez por todas
Recebo de vez em quando carta
perguntando-me se sou russa ou brasileira, e me rodeiam de mitos.
Vou esclarecer de uma vez por todas:
não há simplesmente mistério que justifique mitos, lamento muito. E a história
é a seguinte: nasci na Ucrânia, terra de meus pais. Nasci numa aldeia chamada
Tchetchelnik, que não figura no mapa de tão pequena e insignificante. Quando
minha mãe estava grávida de mim, meus pais já estavam se encaminhando para os
Estados Unidos ou Brasil, ainda não haviam decidido: pararam em Tchetchelnik
para eu nascer, e prosseguiram viagem. Cheguei ao Brasil com apenas dois meses
de idade.
Sou brasileira naturalizada, quando,
por uma questão de meses, poderia ser brasileira nata.
Fiz da língua portuguesa a minha vida
interior, o meu pensamento mais íntimo, usei-a para palavras de amor. Comecei a
escrever pequenos contos logo que me alfabetizaram, e escrevi-os em português,
é claro. Criei-me em Recife, e acho que viver no Nordeste ou Norte do Brasil é
viver mais intensamente e de perto a verdadeira vida brasileira que lá, no
interior, não recebe influência de costumes de outros países. Minhas crendices
foram aprendidas em Pernambuco, as comidas que mais gosto são pernambucanas. E
através de empregadas, aprendi o rico folclore de lá.
Somente na puberdade vim para o Rio com
minha família: era a cidade grande e cosmopolita que, no entanto, em breve se
tornava para mim brasileira-carioca.
Quanto a meus rr enrolados, estilo
francês, quando falo, e que me dão um ar de estrangeira, trata-se apenas de um
defeito de dicção: simplesmente não consigo falar de outro jeito. Defeito esse
que meu amigo Dr. Pedro Bloch disse ser facílimo de corrigir e que ele faria
isso para mim. Mas sou preguiçosa, sei de antemão que não faria os exercícios
em casa. E além do mais meus rr não me fazem mal algum. Outro mistério,
portanto, elucidado.
O que não será jamais elucidado é o meu
destino. Se minha família tivesse optado pelos Estados Unidos, eu teria sido
escritora? Em inglês, naturalmente, se fosse. Teria casado provavelmente com um
americano e teria filhos americanos. E minha vida seria inteiramente outra.
Escreveria sobre o quê? O que é que amaria? Seria de que Partido? Que gênero de
amigos teria? Mistério.
A gente nasce para alguma coisa, da
qual vamos tomando consciência à medida que cumprimos nossa existência, num ato
de doação. Para que você nasceu, Clarice?
As
três experiências
Há três coisas para as quais eu nasci e
para as quais eu dou minha vida. Nasci para amar os outros, nasci para
escrever, e nasci para criar meus filhos. O "amar os outros" é tão
vasto que inclui até perdão para mim mesma, com o que sobra. As três coisas são
tão importantes que minha vida é curta para tanto. Tenho que me apressar, o
tempo urge. Não posso perder um minuto do tempo que faz minha vida. Amar os
outros é a única salvação individual que conheço: ninguém estará perdido se der
amor e às vezes receber amor em troca.
E nasci para escrever. A palavra é o
meu domínio sobre o mundo. Eu tive desde a infância várias vocações que me
chamavam ardentemente. Uma das vocações era escrever. E não sei por que, foi
esta que eu segui. Talvez porque para as outras vocações eu precisaria de um
longo aprendizado, enquanto que para escrever o aprendizado é a própria vida se
vivendo em nós e ao redor de nós. É que não sei estudar. E, para escrever, o
único estudo é mesmo escrever. Adestrei-me desde os sete anos de idade para que
um dia eu tivesse a língua em meu poder. E, no entanto, cada vez que vou
escrever, é como se fosse a primeira vez. Cada livro meu é uma estreia penosa e
feliz. Essa capacidade de me renovar toda à medida que o tempo passa é o que eu
chamo de viver e escrever.
Quanto a meus filhos, o nascimento
deles não foi casual. Eu quis ser mãe. Meus dois filhos foram gerados
voluntariamente. Os dois meninos estão aqui, ao meu lado. Eu me orgulho deles,
eu me renovo neles, eu acompanho seus sofrimentos e angústias, eu lhes dou o
que é possível dar. Se eu não fosse mãe, seria sozinha no mundo. Mas tenho uma
descendência, e para eles no futuro eu preparo meu nome dia a dia. Sei que um
dia abrirão as asas para o voo necessário, e eu ficarei sozinha. É fatal,
porque a gente não cria os filhos para a gente, nós criamos para eles mesmos.
Quando eu ficar sozinha, estarei seguindo o destino de todas as mulheres.
Sempre me restará amar. Escrever é
alguma coisa extremamente forte, mas que pode me trair e me abandonar: posso um
dia sentir que já escrevi o que é o meu lote neste mundo e que eu devo aprender
também a parar. Em escrever eu não tenho nenhuma garantia.
Ao passo que amar eu posso até a hora
de morrer. Amar não acaba. É como se o mundo estivesse à minha espera. E eu vou
de encontro ao que me espera.
Sou uma pessoa muito ocupada: tomo
conta do mundo. Lucidamente apenas falo de algumas das milhares de coisas e
pessoas de quem eu tomo conta. Também não se trata de um emprego, pois dinheiro
não ganho com isso. Fico apenas sabendo como é o mundo.
Mas por que você toma conta do mundo,
se isto lhe dá trabalho?
É que nasci assim, incumbida. E sou
responsável por tudo o que existe, inclusive pelas guerras e pelos crimes de
lesa-corpo e lesa-alma. Sou inclusive responsável pelo Deus que está em
constante cósmica evolução para melhor.
O
saber e o não-saber
Eu sei de muito pouco. Mas tenho a meu
favor tudo o que não sei e – por ser um campo virgem – está livre de
preconceitos. Tudo o que não sei é a minha parte maior e melhor: é a minha
largueza. É com ela que eu compreenderia tudo. Tudo o que não sei é que
constitui a minha verdade.
O
mistério da criação artística
Quando comecei a escrever, que desejava
atingir? Queria escrever alguma coisa que fosse tranquila e sem modas, alguma
coisa como a lembrança de um alto monumento que parece mais alto porque é
lembrança. Mas queria, de passagem, ter realmente tocado no monumento.
Sinceramente não sei o que simbolizava para mim a palavra monumento. E terminei
escrevendo coisas inteiramente diferentes.
Dois
modos
Como se eu procurasse não aproveitar a
vida imediata mas sim a mais profunda, o que me dá dois modos de ser: em vida,
observo muito, sou ativa nas observações, tenho o senso do ridículo, do bom
humor, da ironia, e tomo um partido. Escrevendo, tenho observações por assim
dizer passivas, tão interiores que se escrevem ao mesmo tempo em que são
sentidas, quase sem o que se chama de processo.
E por isso que no escrever eu não
escolho, não posso me multiplicar em mil, me sinto fatal a despeito de mim.
A criação artística é um mistério que
me escapa, felizmente.
Aceitando
o risco
Minhas intuições se tornam mais claras
ao esforço de transpô-las em palavras. É neste sentido, pois, que escrever me é
uma necessidade. De um lado, porque escrever é um modo de não mentir o
sentimento (a transfiguração involuntária da imaginação é apenas um modo de
chegar); de outro lado, escrevo pela incapacidade de entender se não usar o
processo de escrever. Escrever é compreender melhor. Se às vezes tomo sem
querer um ar hermético, é que não só o principal é não mentir o sentimento como
porque tenho incapacidade de transpô-lo de um modo claro sem que mentisse – e mentir
o pensamento seria tirar a única alegria de escrever. Assim, tantas vezes tomo
um ar involuntariamente hermético, o que acho bem chato nos outros. Depois da
coisa escrita, poderia eu friamente torná-la menos hermética, mais explicativa?
Mas é que respeito um certo tom peculiar ao mistério natural da criação não
substituível (esse mistério) por clareza outra nenhuma. Também porque acredito
que a coisa se esclarece sozinha com o tempo: assim como num copo d'água, uma
vez depositado no fundo o que quer que seja, a água fica clara. Se jamais a
água ficar limpa, pior para mim. Aceito o risco. Aceitei risco bem maior, como
todo o mundo que vive. E se aceito o risco não é por liberdade arbitrária ou
inconsciência ou arrogância: a cada dia que acordo, por hábito até, aceito o
risco. Sempre tive um profundo senso de aventura, e a palavra profundo está aí
querendo dizer inerente. Este senso de aventura é o que me dá o que tenho de
aproximação mais isenta e real em relação a viver e, de cambulhada, escrever.
Nem tudo o que escrevo resulta numa
realização, resulta mais numa tentativa. O que também é um prazer. Pois nem
tudo eu quero pegar. Às vezes quero apenas tocar. Depois o que toco às vezes
floresce e os outros podem pegar com as duas mãos.
Às vezes tenho a impressão de que
escrevo por simples curiosidade intensa. É que, ao escrever, eu me dou as mais
inesperadas surpresas. É na hora de escrever que muitas vezes fico consciente
de coisas, das quais, sendo inconsciente, eu antes não sabia que sabia.
Literatura
e justiça
Minha tolerância em relação a mim, como
pessoa que escreve, é perdoar eu não saber como me expressar de um modo
"literário" (isto é, transformando na veemência da arte) da
"coisa social". Desde que me conheço o fato social teve em mim
importância maior do que qualquer outro: em Recife os mocambos foram a primeira
verdade para mim. Muito antes de sentir "arte", senti a beleza
profunda da luta. O problema de justiça é em mim um sentimento tão óbvio e tão
básico que não consigo me surpreender com ele - e, sem me surpreender, não
consigo escrever. E também porque para mim escrever é procurar. O sentimento de
justiça nunca foi procura em mim, nunca chegou a ser descoberto, e o que me
espanta é que ele não seja igualmente óbvio em todos. Na verdade sinto-me
engajada. Tudo o que escrevo está ligado, pelo menos dentro de mim, à realidade
em que vivemos.
Autocrítica
Esta autocrítica tem que ser
complacente, porque se fosse aguda demais isso talvez me fizesse nunca mais
escrever. Mas eu queria escrever, algum dia talvez. Embora sentindo que, se
voltasse a escrever, seria de um modo diferente do meu antigo: diferente em
quê? Não me interessa. Minha autocrítica a certas coisas que escrevo, não
importa no caso se boas ou más, – falta a elas chegar àquele ponto em que a dor
se mistura à profunda alegria, e a alegria chega a ser dolorosa – pois esse
ponto é o aguilhão da vida.
E quantas vezes conseguimos o encontro
máximo de um ser com outro ser, quando com espanto dizemos: "Ah!". Às
vezes esse encontro consigo próprio se consegue através do encontro de um ser
com outro ser.
Não, eu não teria vergonha de dizer tão
claramente o que eu quereria para o futuro: quereria o máximo, e o máximo deve
ser atingido e dito com a matemática perfeição da música ouvida e transposta
para o profundo arrebatamento que sentimos. Não transposta, pois é a mesma
coisa. Deve, eu sei que deve haver um modo em mim de chegar a isso.
Às vezes sinto que esse modo eu o
conseguiria através simplesmente de meu modo de ver mais evoluído. Uma vez
sendo, no entanto, que se fosse conseguido seria através da misericórdia. Não
da misericórdia transformada em gentileza da alma. Mas da profunda misericórdia
transformada em ação, mesmo que seja a ação das palavras. E assim como
"Deus escreve direito por linhas tortas", através de nossos erros
correria o grande amor que seria a misericórdia.
Aproximação
gradativa
Se eu tivesse que dar um título à minha
vida seria: à procura da própria coisa.
Mistério
Sou tão misteriosa que não me entendo.
Não, positivamente não me entendo. Bem, mas o fato é que, mesmo não me
entendendo, vou lentamente me encaminhando – e também para o quê, não sei. De
um modo geral, para mais amor por tudo... Sinto que me encaminho para o mais
humano.
Os mistérios: estes. De Clarice.
Seleta de Clarice
Lispector, 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976.
Fonte: Letra e Vida.
Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos –
Módulo 3 – CENP – São Paulo – 2005. p. 291-294.
Entendendo a entrevista:
01 – Por que Clarice não gosta
de dar entrevistas?
Clarice não gosta
de dar entrevistas porque as perguntas a constrangem, ela tem dificuldade em
responder e acredita que o entrevistador fatalmente deformará suas palavras.
02 – Qual a verdadeira
nacionalidade de Clarice e como ela se sente em relação a isso?
Clarice nasceu na
Ucrânia, mas chegou ao Brasil com apenas dois meses de idade. Ela se considera
brasileira naturalizada e fez da língua portuguesa sua vida interior, usando-a
para seu pensamento mais íntimo e para escrever.
03 – De onde Clarice absorveu
grande parte de sua identidade cultural brasileira?
Clarice se criou
em Recife, e acredita que viver no Nordeste ou Norte do Brasil é vivenciar a
verdadeira vida brasileira. Ela aprendeu suas crendices e gostos culinários em
Pernambuco e, através de empregadas, absorveu o rico folclore local.
04 – Como Clarice explica seus
"rr enrolados" que a fazem soar como estrangeira?
Ela explica que é
apenas um defeito de dicção e que não consegue falar de outro jeito. Ela também
menciona que um amigo, Dr. Pedro Bloch, disse que seria fácil de corrigir, mas
ela é preguiçosa para fazer os exercícios.
05 – Quais são as três
experiências para as quais Clarice afirma ter nascido?
Clarice afirma
ter nascido para amar os outros, para escrever e para criar seus filhos.
06 – De que forma Clarice
descreve a criação artística e o processo de escrita?
Clarice vê a
criação artística como um mistério que lhe escapa. Ela descreve a escrita como
uma necessidade para não mentir o sentimento e para compreender melhor as
coisas, além de ser uma fonte de "inesperadas surpresas" onde ela se
torna consciente de coisas que antes não sabia que sabia.
07 – Qual é o sentimento de
Clarice em relação à justiça social e como isso se relaciona com sua escrita?
Para Clarice, o
problema da justiça é um sentimento "óbvio e básico" que a
"engaja". Embora não consiga escrever sobre isso de forma
"literária" (transformando-o em veemência artística), ela afirma que
tudo o que escreve está ligado à realidade em que vivemos.