Crônica: Tia Mariquinhas
Viriato Corrêa
Criatura que vive bem clara na minha
lembrança é a tia Mariquinhas, viúva de um parente afastado de minha mãe.
Morava a um quarto de légua do povoado,
na Pedra Branca, o mais lindo sítio que por ali havia.
A Pedra Branca tinha o condão de atrair
as crianças.
Era uma casa pequenina, caiadinha,
muito limpa, num terreiro alvo, bem varrido, com laranjeiras plantadas em
derredor.
Em certas épocas, duzentos metros antes
de avistar-se a casa, sentia-se no ar o cheiro finíssimo do laranjal em flor.
No quintal — mangueiras imensas com sombras frescas e balanços tentadores
amarrados nos galhos.
Mas, a doidice da meninada era o riacho
que ficava atrás da casa. Não vi, no mundo, cantinho mais suave e mais doce e
que tanto bem me fizesse à alma. Eu ali ficava horas inteiras, saboreando, sem
saber, a poesia simples daquele pedaço amável da natureza.
Gravou-se-me na vista, para toda a
vida, o quadro maravilhoso. O riacho, que vinha de longe, torcendo-se pelas
profundezas da mata, ali se alargava preguiçosamente, como que para repousar as
águas cansadas de rolar entre as pedras.
As árvores — velhos ingazeiros e
paineiras que deviam ter séculos de existência — estendiam sobre o leito a
empanada dos galhos floridos. Aqui, acolá — toiças de açaizeiros. Quase que não
se sentia o deslizar da corrente e as águas eram tão claras que se viam a areia
alvíssima e os peixinhos nadando no fundo.
No meio, como ilha surpreendente,
surgia uma laje muito grande e muito branca. Era a pedra que dava nome ao
sítio.
À flor da correnteza, boiavam patos e
marrecos mansos. Pássaros enchiam de música a ramada das árvores.
Tia Mariquinhas era uma senhora de
cabeça branca, magrinha, risonha, que ficava com ares de moça quando sorria,
porque o riso lhe cavava duas covinhas no rosto.
Nunca vi criatura mais alegre e que
mais gostasse de presentear.
Havia de tudo no sítio: araçás,
goiabas, sapotis, jacas, tangerinas, jenipapos, atas, abius, umbus, cambucás,
todo um mundo de gulodices que endoidecem as crianças.
Quando eu lhe entrava em casa ela me
enchia de frutas e não sabia em quantas se virasse para me ser agradável.
Pegava-me pela mão, ia comigo pelos cantos e cantinhos do terreiro e do
quintal, deixava-me subir às mangueiras e laçar periquitos.
Mas, o que mais me tentava era o
riacho. Além dos patos, dos marrecos, dos peixinhos, havia lá uma jangadinha
como que feita de propósito para criaturas do meu tamanho. Tia Mariquinhas
punha-me na jangada e ela própria a remava para a outra margem.
Eu ficava horas esquecidas atirando
pedacinhos de carne e migalhas de angu aos peixes que se agitavam no fundo das
águas.
O sítio de tia Mariquinhas foi o maior
encanto da meninice das minhas calcinhas curtas. Sempre que eu apanhava a minha
gente distraída, escapava correndo para aquele recanto de sombra e frutos, em
que a vida parecia ser mais bela do que em outra parte qualquer.
O que acontecia comigo, acontecia com
os outros meninos. Quando numa casa se notava a ausência de um garotinho,
podia-se imediatamente correr à Pedra Branca, que o garotinho lá estava
esquecido de tudo, preso à tentação dos balanços, das frutas, dos periquitos e
da jangadinha.
Dava-se todos os dias, entre aquelas
laranjeiras floridas, um espetáculo que conservo na cabeça como uma das
lembranças mais gratas de minha infância.
Tia Mariquinhas tinha paixão pelas
galinhas, pelos patos, pelos pombos. E, logo que amanhecia, vinha ela própria
para o terreiro distribuir às aves a ração de milho e farelo.
Era uma cena impressionante.
Primeiro havia um bater de sineta lá
dentro, na casa. Ouvia-se imediatamente aqui fora um rumor de asas no chão, um
rumor de asas nas árvores e nos ares.
E quando a velha aparecia à porta,
sobraçando um samburá de milho quebrado, de toda a parte surgiam multidões de
galinhas, frangos, gaios, pintos, pombos, marrecos e paturis.
— Pi-pi-pi-pi punha-se ela a gritar no meio
do terreiro, atirando punhados de grãos à direita e à esquerda.
O pedaço de céu que ficava por cima do
terreiro cobria-se de asas agitadas. Centenas, milhares de aves desciam para
disputar na areia os grãos de farelo e de milho. Agora, não eram só as aves
domésticas; eram as do mato: toda uma onda incrível de rolas, juritis,
perdizes, jaçanãs, saracuras, graúnas, periquitos, patativas, maracanãs e
corrupiões.
— Pi-pi-pi-pi...
Atirando punhados à direita, punhados à
esquerda, tia Mariquinhas desaparecia no meio daquela nuvem tremulante de asas.
Tico-ticos e pipiras vinham-lhe roubar migalhas das mãos; cambaxirras, xexéus e
pecoapas, sem a menor cerimônia, lhe pousavam nos ombros.
Como se dava aquilo? Tia Mariquinhas
explicava, sorrindo:
— Um dia desceu uma pomba do mato.
Atirei-lhe um punhado de milho. Ela comeu e foi dizer às companheiras. No outro
dia veio outra. Deixei. Mais outra, mais outra, outras mais. Fui deixando. E,
agora, tudo quanto é passarinho destas redondezas vem comer aqui em casa.
Viriato
Corrêa. Cazuza. 27. ed. São Paulo: Nacional, 1997. p. 16-7.
Entendendo a crônica:
01 – Como é descrito o cenário
da casa de Tia Mariquinhas na crônica?
A casa é descrita
como pequena, caiadinha, muito limpa, com laranjeiras ao redor, em um terreiro
alvo e bem varrido.
02 – O que tornava a Pedra
Branca, onde Tia Mariquinhas morava, especial para as crianças?
A Pedra Branca
tinha o condão de atrair as crianças devido ao cheiro finíssimo do laranjal em
flor, mangueiras com sombras frescas, balanços tentadores, e um riacho suave e
doce.
03 – Quais frutas e gulodices
eram encontradas no sítio de Tia Mariquinhas?
Havia araçás,
goiabas, sapotis, jacas, tangerinas, jenipapos, atas, abius, umbus, entre
outras gulodices.
04 – O que mais atraía o
narrador na casa de Tia Mariquinhas, além das frutas e dos balanços?
O riacho era o
que mais atraía o narrador, especialmente a jangadinha na qual Tia Mariquinhas
o colocava para remar.
05 – Como Tia Mariquinhas se
relacionava com as aves em seu terreiro?
Tia Mariquinhas tinha paixão pelas
galinhas, patos, pombos, e distribuía ração de milho e farelo todas as manhãs,
atraindo uma grande quantidade de aves domésticas e do mato.
06 – Descreva a cena
impressionante que ocorria no terreiro quando Tia Mariquinhas alimentava as
aves.
Ao soar uma sineta, todas as aves,
incluindo as do mato, se aglomeravam no terreiro para receber os grãos de milho
e farelo que Tia Mariquinhas distribuía, cobrindo o céu de asas agitadas.
07 – Qual é a explicação dada
por Tia Mariquinhas sobre a presença de tantas aves em seu terreiro?
Tia Mariquinhas
explica que um dia desceu uma pomba do mato, ela atirou um punhado de milho, a
pomba comeu e foi contar às companheiras. Gradualmente, mais pássaros começaram
a visitar e agora todos os passarinhos das redondezas vêm comer em sua casa.
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