Carta: Carta do Pleistoceno
Marina Colasanti
Senhores cientistas,
quem daqui lhes escreve –
daqui não sendo o além exatamente mas uma espécie de ponto de vista – é o
mamute. O mamute aquele que vocês trouxeram recentemente à luz lá pelos lados
da Rússia – à luz ofuscante dos flashes e dos holofotes de TV, é bom que se
diga, porque uma certa luz fraca e opalinada me alcançou sempre através do
gelo. E escrevo porque chegou-me a notícia – como chegam depressa as notícias
nesse tempo vosso! – de que estão tentando me clonar.

Estão planejando tirar um pedaço de
mim, daquilo que vocês chamam de DNA, manipulá-lo de alguma maneira que para
meu cérebro parece assaz complicada, mas que deveria se concluir com a minha
presença implantada num óvulo de elefanta, decorrente gravidez, e posterior
nascimento.
Peço-lhes encarecidamente que não façam
isso. Poderia invocar os direitos do autor pois, embora mínino, qualquer pedaço
de mim me pertence, mas receio não estar coberto por vossas leis autorais.
Apelo então para aqueles sentimentos caridosos que dizeis habitar vosso
coração. E para o bom senso, que infelizmente nem sempre tem esse mesmo
endereço.
Estou, como os meus semelhantes,
extinto desde o Pleistoceno. Boas razões tivemos para sumir, embora ainda não
pudéssemos prever o que vocês aprontariam no planeta. Não sumimos sozinhos.
Outras coisas se foram desde então, outros animais. Aparentemente não fizeram falta.
Nosso erro, talvez, foi ter deixado o retrato nas paredes das cavernas. Sem
querer, alimentamos saudades. E agora nos querem de volta. Mas, nascido outra
vez, o que faria eu?
Único de minha espécie, que função me
dariam vocês depois de me fazerem atravessar à força 200 mil anos? Uma jaula de
zoológico ou um viveiro de laboratório? Serviria para o turismo ou como cobaia?
Seria uma peça de museu viva ou criatura que escapou de algum desses filmes de
que vocês tanto gostam? E quem embolsaria o cachê pelo uso da minha
imagem?
No meu mundo, os homens que me caçavam
com suas armas de pontas de pedra me temiam, quase como a um deus, e à noite,
ao redor do fogo, falavam de mim com reverência. No mundo de vocês eu seria
apenas um monstro que não inspira respeito a ninguém. Um monstro solitário, sem
sequer a possibilidade de apaixonar-me por uma loura e carregá-la para o alto
do Empire State Building. Um monstro condenado à vida.
E como explicar, à elefanta de quem eu
nasceria, nosso estranho parentesco?
O desmonte daquilo que fui já começou,
antes mesmo do sequestro do meu DNA. Plantado no gelo durante séculos como uma
árvore submersa, permaneci, até vossa chegada, com a dignidade de um ser
grandioso. Eu era uma estátua da minha era. Intacto. Soberbo. Logo acabaram com
isso. Sequer tiveram a elegância de serrar inteiro o bloco que me continha.
Serraram apenas o que lhes interessava, a porção que me manteria congelado. Os
dentes deixaram de fora. E assim retangular, como uma embalagem de leite ou uma
caixa de polpa de tomate em que alguém tivesse cravado dois garfos, fui içado
por um guindaste diante dos olhos do mundo. Eu já não era uma estátua, era um
container.
Sei que para vocês eu nem mereço
qualquer explicação, mas digam-me, qual é exatamente sua intenção? Esquecendo o
brilhareco científico, suspeito que queiram trazer o passado de volta, com a
desculpa de estudá-lo diretamente.
Mas se fomos extintos é porque já não
nos encaixávamos nas condições ao redor – a evolução ejeta seus antigos
parceiros. Para realmente trazer-nos de volta seria preciso clonar muito mais
do que o meu DNA, seria preciso duplicar tudo aquilo que nos mantinha
vivos. E uma vez recriado aquele universo, como vocês se encaixariam
nele?
Permitam-me
uma última pergunta: encontrando restos do Homo sapiens dos quais fosse
possível retirar o DNA, tentariam vocês igualmente implantá-lo no ventre de uma
mulher do século XXI?
Marina Colasanti. A
casa das palavras. São Paulo: Ática, 2004. p. 17-19.
Fonte: Livro –
Português: Linguagem, 8ª Série – William Roberto Cereja, Thereza Cochar
Magalhães, 4ª ed. – São Paulo: Atual Editora, 2006. p. 198-199.
Entendendo a carta:
01 – Quem é o remetente da
carta e qual é a sua preocupação?
O remetente da
carta é um mamute extinto, recentemente descoberto por cientistas na Rússia.
Sua principal preocupação é o plano dos cientistas de cloná-lo.
02 – Quais argumentos o mamute
usa para dissuadir os cientistas de cloná-lo?
O mamute apela
para os sentimentos caridosos e o bom senso dos cientistas, questionando qual
seria seu propósito em um mundo moderno e os direitos sobre seu próprio DNA.
Ele também destaca a solidão e o estranhamento que sentiria.
03 – Como o mamute descreve a
sua captura e o tratamento dado a ele pelos cientistas?
O mamute descreve
sua captura como um desmonte de sua dignidade, comparando-se a uma estátua de
sua era que foi transformada em um "container" para transporte. Ele
critica a falta de elegância dos cientistas em serrar apenas a parte que lhes
interessava.
04 – Qual a crítica do mamute
em relação à intenção dos cientistas de trazer o passado de volta?
O mamute critica
a ideia de trazer o passado de volta apenas para estudá-lo diretamente,
argumentando que a extinção de sua espécie ocorreu porque ela não se encaixava
mais nas condições do planeta. Ele questiona como os cientistas se encaixariam
em um mundo recriado do passado.
05 – Qual a comparação que o
mamute faz entre o tratamento que recebia dos homens do seu tempo e o que
receberia no mundo moderno?
O mamute compara
o temor e a reverência que os homens pré-históricos tinham por ele com o
tratamento que receberia no mundo moderno, onde seria visto como um monstro
solitário e sem respeito.
06 – Qual a última pergunta do
mamute aos cientistas e qual o seu propósito?
O mamute pergunta
se os cientistas tentariam clonar um Homo sapiens do Pleistoceno caso
encontrassem seu DNA. O propósito é questionar a ética e os limites da ciência
na manipulação da vida e do tempo.
07 – Qual o tom geral da carta
e qual a sua mensagem principal?
O tom geral da
carta é de indignação, melancolia e questionamento. A mensagem principal é uma
reflexão sobre a arrogância da ciência em tentar controlar a natureza e o
tempo, e sobre a importância de respeitar a dignidade de todas as formas de
vida.