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quinta-feira, 12 de outubro de 2023

POEMA: BODARRADA - LUIZ GAMA - COM GABARITO

 Poema: Bodarrada

              Luiz Gama

Quem sou eu?

Quem sou eu? que importa quem?
Sou um trovador proscrito,
Que trago na fronte escrito
Esta palavra — "Ninguém!" —

         A. E. Zaluar — "Dores e Flores"

 

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj3U8BvQ0e4aWt3CdmvHJZ65wRnAyPP7it1LYcMou0uOuGsfx2jE6uadoX3FwlrGbJWWZLT4xh1lJxf7Oq6A1QFcqTvPNMPunXd6QFx5kouz_JMhwbg0h1rmruZegHtxMvj5ru3BwoojOHDFkmhISkhU9kFTsQtzlZBaExSVK8yuqsKa3zcS6oBATZ51qs/s1600/lUIIS.jpg

Amo o pobre, deixo o rico,
Vivo como o Tico-tico;
Não me envolvo em torvelinho,
Vivo só no meu cantinho:
Da grandeza sempre longe,
Como vive o pobre monge.
Tenho mui poucos amigos,
Porém bons, que são antigos,
Fujo sempre à hipocrisia,
À sandice, à fidalguia;
Das manadas de Barões?
Anjo Bento, antes trovões.
Faço versos, não sou vate,
Digo muito disparate,
Mas só rendo obediência
À virtude, à inteligência:
Eis aqui o Getulino
Que no pletro anda mofino.
Sei que é louco e que é pateta
Quem se mete a ser poeta;
Que no século das luzes,
Os birbantes mais lapuzes,
Compram negros e comendas,
Têm brasões, não — das Kalendas,
E, com tretas e com furtos
Vão subindo a passos curtos;
Fazem grossa pepineira,
Só pela arte do Vieira,
E com jeito e proteções,
Galgam altas posições!
Mas eu sempre vigiando
Nessa súcia vou malhando
De tratante, bem ou mal
Com semblante festival.
Dou de rijo no pedante
De pílulas fabricante,
Que blasona arte divina,
Com sulfatos de quinina,
Trabusanas, xaropadas,
E mil outras patacoadas,
Que, sem pingo de rubor,
Diz a todos, que é DOUTOR!
Não tolero o magistrado,
Que do brio descuidado,
Vende a lei, trai a justiça
— Faz a todos injustiça —
Com rigor deprime o pobre
Presta abrigo ao rico, ao nobre,
E só acha horrendo crime
No mendigo, que deprime.
— Neste dou com dupla força,
Té que a manha perca ou torça.
Fujo às léguas do lojista,
Do beato e do sacrista —
Crocodilos disfarçados,
Que se fazem muito honrados,
Mas que, tendo ocasião,
São mais feros que o Leão.
Fujo ao cego lisonjeiro,
Que, qual ramo de salgueiro,
Maleável, sem firmeza,
Vive à lei da natureza;
Que, conforme sopra o vento,
Dá mil voltas num momento.
O que sou, e como penso,
Aqui vai com todo o senso,
Posto que já veja irados
Muitos lorpas enfunados,
Vomitando maldições,
Contra as minhas reflexões.
Eu bem sei que sou qual Grilo,
De maçante e mau estilo;
E que os homens poderosos
Desta arenga receosos
Hão de chamar-me Tarelo,
Bode, negro, Mongibelo;
Porém eu que não me abalo,
Vou tangendo o meu badalo
Com repique impertinente,
Pondo a trote muita gente.
Se negro sou, ou sou bode
Pouco importa. O que isto pode?
Bodes há de toda a casta,
Pois que a espécie é muito vasta...
Há cinzentos, há rajados,
Baios, pampas e malhados
Bodes negros, bodes brancos,
E, sejamos todos francos,
Uns plebeus, e outros nobres,
Bodes ricos, bodes pobres,
Bodes sábios, importantes,
E também alguns tratantes...
Aqui, nesta boa terra,
Marram todos, tudo berra;
Nobres Condes e Duquesas,
Ricas Damas e Marquesas,
Deputados, senadores,
Gentis-homens, veadores;
Belas Damas emproadas,
De nobreza empantufadas;
Repimpados principotes,
Orgulhosos fidalgotes,
Frades, Bispos, Cardeais,
Fanfarrões imperiais,
Gentes pobres, nobres gentes
Em todos há meus parentes.
Entre a brava militança
Fulge e brilha alta bodança;
Guardas, cabos, furriéis,
Brigadeiros, Coronéis,
Destemidos Marechais,
Rutilantes Generais,
Capitães de mar-e-guerra,
— Tudo marra, tudo berra —
Na suprema eternidade,
Onde habita a Divindade,
Bodes há santificados,
Que por nós são adorados.
Entre o coro dos Anjinhos
Também há muitos bodinhos. —
O amante de Syiringa
Tinha pelo e má catinga;
O deus Mendes, pelas contas,
Na cabeça tinha pontas;
Jove quando foi menino,
Chupitou leite caprino;
E, segundo o antigo mito,
Também Fauno foi cabrito.
Nos domínios de Plutão,
Guarda um bode o Alcorão;
Nos ludus e nas modinhas
São cantadas as bodinhas:
Pois se todos têm rabicho,
Para que tanto capricho?
Haja paz, haja alegria,
Folgue e brinque a bodaria;
Cesse pois a matinada,
Porque tudo é bodarrada!

(In: SILVA, Júlio Romão da (Org.). Luiz Gama e suas poesias satíricas. 2 ed. Rio de Janeiro: Cátedra; Brasília: INL, 1981, p. 177-181)

Entendendo o poema:

01 – Dê o significado das palavras abaixo:

  Enfumados, emproadas: vaidosos, orgulhosos.

·        Casta: raça, geração, qualidade, classe social.

·        Marrar: arremeter com a cornada; bater com a cabeça.

·        Empantufadas: empavonada, ensoberbada.

·        Repimpados: abarrotados, fartos, refestelados.

·        Principotes: príncipe de meia-tigela.

·        Fauno: homens com pés de cabra e chifres que habita nos bosques e toca flauta.

·        Lundus: dança cantada de origem africana.

·        Matinada: madrugada, estrondo, ruído, algazarra.

02 – Leia com atenção o poema “Bodarrada”, de Luiz Gama, e explique o que você entendeu.

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão – Neste poema, o autor, Luiz Gama, expressa sua identidade como um negro consciente de sua posição na sociedade. Ele se descreve como um trovador proscrito, alguém marginalizado, que vive de forma simples e honesta, longe da hipocrisia e da busca por poder e riqueza. O poema critica a sociedade da época, incluindo a compra de negros por brancos, a corrupção no sistema judicial e a falsa moralidade de algumas pessoas. O autor também enfatiza a importância da virtude e da inteligência em oposição à ostentação e ao comportamento hipócrita.

03 – Como é construído o discurso do poema? Quais os recursos estilísticos que o autor utilizou?

      O discurso do poema é construído de forma crítica e satírica. O autor utiliza recursos estilísticos como a ironia, o sarcasmo e a sátira para transmitir sua mensagem. Ele usa metáforas e comparações para criticar a sociedade da época e destacar a falsidade e a corrupção presentes nela. Além disso, o autor faz uso de personificações, como a descrição dos nobres como "crocodilos disfarçados," para enfatizar a hipocrisia e a falsa moralidade.

04 – Do ponto de vista do eu lírico, como ele vê algumas pessoas da sociedade da época?

      O eu lírico do poema vê algumas pessoas da sociedade da época como hipócritas, falsas e corruptas. Ele critica aqueles que compram negros como escravos, os magistrados que traem a justiça em favor dos ricos e nobres, os lisonjeiros que mudam de opinião conforme convém e os religiosos que escondem sua verdadeira natureza por trás de uma fachada de virtude. O eu lírico valoriza a honestidade, a inteligência e a virtude, e critica aqueles que se comportam de maneira contrária a esses princípios.

05 – Encontre e destaque os versos em que o eu lírico critica a compra de negros pelos brancos.

      O eu lírico critica a compra de negros pelos brancos nos versos: "Compram negros e comendas, / Têm brasões, não — das Kalendas."

06 – Na atualidade, como o negro é tratado? Vamos refletir sobre os discursos velados e sobre o que está por trás de algumas falas.

      Na atualidade, a questão racial ainda é um tema relevante e complexo em muitas partes do mundo. Embora tenham ocorrido avanços significativos em termos de igualdade racial e luta contra a discriminação, ainda existem desafios persistentes. O tratamento dos negros pode variar amplamente dependendo do contexto e da região, mas há evidências de que muitos enfrentam discriminação sistêmica, desigualdades econômicas e sociais, e estereótipos negativos.

      Muitas vezes, o racismo e a discriminação podem se manifestar de forma velada, por meio de discursos sutis, estereótipos enraizados e preconceitos implícitos. É importante estar atento a esses discursos velados e trabalhar para combatê-los, promovendo a igualdade racial e a justiça social.

07 – O tema diversidade é assunto tratado com muita seriedade em todos os espaços e vários segmentos da sociedade. E você, o que sabe sobre este tema?

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: A diversidade é um tema fundamental na sociedade contemporânea. Ela se refere à variedade de características, identidades, culturas, crenças e perspectivas que existem entre os indivíduos e grupos. É importante reconhecer e valorizar a diversidade em todas as suas formas, incluindo a diversidade racial, étnica, de gênero, orientação sexual, religião, idade, habilidades, entre outras.

      A promoção da diversidade é essencial para construir uma sociedade mais justa e inclusiva, onde todas as pessoas tenham igualdade de oportunidades e sejam respeitadas em suas diferenças. Isso envolve o combate ao preconceito, à discriminação e à exclusão, bem como a promoção da equidade em todas as áreas da vida, incluindo o trabalho, a educação e a representação na mídia e na política.

08 – O poema “Bodarrada” foi escrito em um momento histórico em que o negro ainda era escravizado pelo branco. Luiz Gama era um negro consciente de seu papel na sociedade e usava a escrita para defender seus direitos e o de seus pares. Quais os valores éticos que podemos observar nesse poema?

      No poema "Bodarrada," podemos observar valores éticos como a defesa da justiça, da honestidade e da virtude. O autor critica a hipocrisia, a corrupção, a compra de escravos e a injustiça, destacando a importância de ser verdadeiro, inteligente e virtuoso em oposição a comportamentos enganosos e imorais. Luiz Gama utiliza sua escrita para questionar as normas sociais da época que perpetuavam a escravidão e a desigualdade racial, defendendo valores éticos que promovem a igualdade e a justiça para todos.

 

domingo, 19 de junho de 2022

POEMA: SAUDADES DO ESCRAVO - LUIZ GAMA - COM GABARITO

 Poema: SAUDADES DO ESCRAVO

            Luiz Gama

Escravo – não, não morri

Nos ferros da escravidão;

Lá nos palmares vivi,

Tenho livre o coração!

Nas minhas carnes rasgadas,

Nas faces ensanguentadas

Sinto as torturas de cá;

Deste corpo desgraçado

Meu espírito soltado

Não partiu – ficou-me lá!...

 

Naquelas quentes areias

Naquela terra de fogo,

Onde livre de cadeias

Eu corria em desafogo...

Lá nos confins do horizonte...

Lá nas alturas do céu...

De sobre a mata florida

Esta minh’alma perdida

Não veio – só parti eu.

 

A liberdade que eu tive

Por escravo não perdi-a;

Minh’alma que lá só vive

Tornou-me a face sombria,

O zunir do fero açoite

Por estas sombras da noite

Não chega, não, aos palmares!

Lá tenho terras e flores...

Nuvens e céus... os meus lares!

 

[...]

 

Escravo – não, ainda vivo,

Inda espero a morte ali;

Sou livre embora cativo,

Sou livre, inda não morri!

Meu coração bate ainda

Nesse bater que não finda;

Sou homem – Deus o dirá!

Deste corpo desgraçado

Meu espírito soltado

Não partiu – ficou-me lá!

São Paulo, 1850.

GAMA, Luiz. Primeiras trovas burlescas e outros poemas. Edição preparada por Lígia Fonseca Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 162-164. Fragmento.

Fonte: Língua portuguesa 2 – Projeto ECO – Ensino médio – Editora Positivo – 1ª edição – Curitiba – 2010. p. 90.

Entendendo o poema:

01 – Quem é o eu lírico do poema? Justifique com base no texto.

      É um homem negro, um escravo que vive cativo, mas sente sua alma livre.

02 – No poema, é possível notar uma oposição entre um “lá” e um “cá”, num diálogo intertextual com a Canção do exílio de Gonçalves Dias. No poema gonçalvino, o “lá” era representado pelo Brasil e o “cá” representado por Portugal. Identifique os lugares representados pelo “lá” e pelo “cá” no poema de Luiz Gama.

      O “lá” é o lugar da liberdade: o quilombo dos Palmares (Lá nos palmares vivi). Já o “cá” é o lugar da escravidão, a senzala (Nas faces ensanguentadas / Sinto as torturas de cá).

03 – O eu lírico apresenta idealismo em seu poema, ao separar o corpo da alma, com privilégio da alma sobre o corpo. Qual a importância desse idealismo no contexto de escravidão do poema?

      Esse idealismo é responsável por reiterar a liberdade: embora o corpo do eu lírico possa estar escravo, sua alma é livre, como ele expressa no trecho: “A liberdade que eu tive / Por escravo não perdi-a: / Minh’alma que lá só vive”. Ou seja, ainda que cativo, a alma do escravo não se rende e se recusa a abandonar a esperança de liberdade, vagando pelo “lá” onde era livre.

04 – Considerando suas respostas aos itens anteriores, é possível ou não afirmar que se trata de um poema de resistência? Justifique.

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Sim, trata-se um poema de resistência. A própria citação do Quilombo dos Palmares corrobora essa leitura, já que esse foi um lugar de união e luta conjunta dos escravos contra a realidade escravista. Afora isso, o eu lírico não apresenta uma postura de resignação em relação à escravidão, mas luta pela liberdade, alimentando-se da memória dos tempos em que viveu livre, recusando-se a aprisionar sua alma.