Crônica: Galinha ao molho pardo – Fragmento
Fernando Sabino
Ao chegar da escola, dei com a novidade: uma galinha no quintal. O quintal de nossa casa era grande, mas não tinha galinheiro, como quase toda casa de Belo Horizonte naquele tempo. Tinha era uma porção de árvores: um pé de manga sapatinho, outro de manga coração-de-boi, um pé de gabiroba, um pé de goiaba branca, outro de goiaba vermelha, um pé de abacate e até um pé de fruta-do-conde. No fundo, junto do muro, um bambuzal.
De um lado, o barracão com o quarto da Alzira cozinheira e
um quartinho de despejo. Do outro lado, uma caixa de madeira grande como um
canteiro, cheia de areia que papai botou lá para nós brincarmos. Eu brincava de
fazer túnel, de guerra com soldadinhos de chumbo, trincheira e tudo. Deixei de
brincar ali quando começaram a aparecer na areia uns montinhos fedorentos de
cocô de gato. Os gatos quase nunca apareciam, a não ser de noite, quando a
gente estava dormindo. De dia se escondiam pelos telhados. Tinham medo de
Hindemburgo, que era mesmo de meter medo, um pastor alemão deste tamanho. Não
sabiam que Hindemburgo é que tinha medo deles. cachorro com medo de gato: coisa
que nunca se viu. Quando via um gato, Hindemburgo metia o rabo entre as pernas
e fugia correndo.
Pois foi no fundo do quintal que eu vi
a galinha, toda folgada, ciscando na caixa de areia. Havia sido comprada por
minha mãe para o almoço de domingo: Dr. Junqueira ia almoçar em casa e ela
resolveu fazer galinha ao molho pardo.
Eu já tinha visto a Alzira matar
galinha, uma coisa terrível. […]
Como se fosse a coisa mais natural
deste mundo, a Alzira me contou o que ia acontecer com a nova galinha.
Revoltado, resolvi salvá-la.
Eu sabia que o Dr. Junqueira era
importante, meu pai dependia dele para uns negócios. Pois no que dependesse de
mim, no domingo ele ia poder comer tudo, menos galinha ao molho pardo.
Era uma galinha branca e gorda, que não
me deu muito trabalho para pegar. Foi só correr atrás dela um pouco, ficou logo
cansada. Agachou-se no canto do muro, me olhou de lado como as galinhas olham e
se deixou apanhar.
Não sei se percebeu que eu não ia lhe
fazer mal. Pelo contrário, eu pretendia salvar a sua vida. O certo é que em poucos
minutos ficou minha amiga, não fugiu mais de mim.
– O seu nome é Fernanda – falei então.
e joguei um pouquinho de água na cabecinha dela: – Eu te batizo em nome do Pai,
do Filho e do Espírito Santo, amém.
Assim que escureceu, Ela se empoleirou
muito fagueira num galho da goiabeira, enfiou a cabeça debaixo da asa e dormiu.
Então eu entendi por que dizem que quem vai para a cama cedo dorme com as
galinhas.
No dia seguinte era sábado, não tinha
aula. Passei o tempo inteiro brincando com ela. levei horas lhe ensinando a
responder sim e não com a cabeça.
-- Você sabe o que eles estão querendo
fazer com você, Fernanda?
Ela mexia a cabecinha para os lados,
dizendo que não.
-- Pois nem queira saber. Cuidado com a
Alzira, aquela magrela de pernas compridas. É a nossa cozinheira. Ruim que só
ela. Não deixa a Alzira nem chegar perto de você.
Ela mexia com a cabecinha para cima e
para baixo, dizendo que sim.
-- Estão querendo matar você para
comer. Com molho pardo.
Os olhinhos dela piscaram de susto. O
corpo estremeceu e ali mesmo, na hora, ela botou um ovo. De puro medo.
-- Mas eu não vou deixar – procurei tranquilizá-la,
apanhando o ovo com cuidado, para enterrar na areia depois e ver se nascia
pinto.
E acrescentei:
-- Hoje não precisa de ter medo, que o
perigo todo vai ser amanhã.
Eu sabia que para fazer a galinha ao
molho pardo tinham de matar quase na hora, por causa do sangue, que era
aproveitado para preparar o molho.
-- Vou esconder você num lugar que
ninguém é capaz de descobrir.
Junto do tanque de lavar roupa
costumava ficar uma bacia grande de enxaguar. A Maria lavadeira só ia voltar na
segunda-feira. Antes disso ninguém ia mexer naquela bacia. Assim que escureceu,
escondi a Fernanda debaixo dela. Fiquei com pena de deixar a coitada ali
sozinha:
-- Você se importa de ficar ai debaixo
até passar o perigo?
Ela fez com a cabeça que não.
-- Então fica bem quietinha e não canta
nem cacareja nem nada. Principalmente se ouvir alguém andando aqui fora.
Ela fez com a cabeça que sim.
-- Amanhã, assim que puder eu volto.
Dorme bem, Fernanda.
Naquela noite, para que ninguém
desconfiasse, jantei mais cedo e fui dormir com as galinhas.
[…]
SABINO, Fernando. O
menino no espelho. Rio De janeiro: Record, 2003, p. 14-19.
Fonte: Maxi: Séries
Finais. Caderno 2. Língua Portuguesa – 6º ano. 1.ed. São Paulo: Somos Sistemas
de Ensino, 2021. Ensino Fundamental 2. p. 88-90.
Entendendo a crônica:
01 – Qual é a razão da
presença da galinha no quintal da casa do narrador?
A galinha tinha
sido comprada para o almoço de domingo, cujo prato seria “galinha ao molho
pardo”, no qual haveria a presença do Dr. Junqueira.
02 – O narrador descreve o
quintal de sua casa de infância. O que você destacaria dessa descrição, que lhe
parece muito diferente dos quintais de hoje?
Resposta pessoal
do aluno.
03 – Já inteirado com a
galinha, o narrador resolveu batizá-la, dando-lhe um nome. Qual é a relação
entre o nome dado à galinha e o narrador?
O nome dado à
galinha foi Fernanda. A relação existente entre os dois fatos é que o narrador
se chama Fernando (versão masculina do nome da galinha).
04 – Como o menino descreve a
cozinheira Alzira?
Ele a descreve
como magrela de pernas compridas e ruim.
05 – O que fez o narrador para
esconder a galinha da família?
Ele a escondeu
debaixo de uma grande bacia.
06 – O narrador revela que foi
capaz de estabelecer uma comunicação com a galinha. Como se percebe essa
comunicação no texto?
O narrador afirma
que a galinha respondia ao que ele falava, movimentando a cabeça de modo
afirmativo ou negativo.
07 – Explique o significado da
expressão “dormir com as galinhas” de acordo com o texto.
A expressão
significa dormir mais cedo, isso porque as galinhas dormem muito cedo também.