Crônica: Carta ao Padre Geral – Fragmento
José de Anchieta
Carta ao Padre Geral, de São Vicente, 1°
de junho de 1560.
[...]
Darei agora conta do que depois
sucedeu, e principalmente que recebêssemos grande alegria com as cartas, que
agora recebemos, máxime com as de V. Paternidade, nas quais se mostrava o
paternal amor e singular cuidado, que tem de nós outros. Porque, além de V.
Paternidade não cessar de nos oferecer à Divina Majestade em suas orações,
ordenou que todos os nossos irmãos nos encomendem mui particularmente a Nosso
Senhor, do que, está claro, nos há de vir muita ajuda e proveito. Porque, como
era possível que pudéssemos sofrer tanto tempo, e com tanta alegria, tanta
dureza de coração dos Brasis que ensinamos, tão cerrados ouvidos à Palavra
Divina, tão fácil renunciantes aos bons costumes, que alguns hão desaprendido, tão
pronto relaxo aos costumes e pecados de seus maiores, e finalmente tão pouco e
nenhum cuidado de sua própria salvação, se as contínuas orações da Companhia nos
não dessem mui grande ajuda?
Há tão poucas coisas dignas de se
escrever, que não sei o que escreva, porque, se espera V. Paternidade que haja
muitos dos Brasis convertidos, enganar-se-à a sua esperança, porque os adultos,
a querem os maus costumes de seus pais têm convertido em natureza, cerram os
ouvidos para não ouvir a palavra de salvação e converter-se ao verdadeiro culto
de Deus, não obstante, que continuamente trabalhamos pelos trazer à fé;
todavia, quando caem em alguma enfermidade, de que parece morrerão, procuramos
de os mover a que queiram receber o batismo, porque então comumente estão mais
aparelhados; mas quantos são os que conhece e queiram estimar tão grande
benefício? Darei dois ou três exemplos, com que isto se possa entender.
Adoeceu um destes catecúmenos em uma
aldeia nos arrabaldes de Piratininga e fomos lá para lhe dar algum remédio,
principalmente para sua alma: Dizíamos-lhe que olhasse por sua alma, e que deixando
os costumes passados, se preparasse para o batismo: Respondeu que o deixássemos
sarar primeiro, e esta resposta somente nos dava a tudo o que lhe dizíamos nós outros:
declarávamos abreviadamente os artigos da Fé, e os mandamentos de Deus, que
muitas vezes de nós outros tinha ouvido, e respondido, como enjoado, que já
tinha os ouvidos tapados, sem ouvir ao que lhe dizíamos, em todas as outras cousas
fora deste propósito, respondia prontamente, que bem parecia não ter tapados
os ouvidos do corpo, e somente os do coração.
[...]
ANCHIETA, José de.
Carta ao Padre Geral. Cronistas do descobrimento. 4. ed. São Paulo: Ática,
2009. p. 109-110.
Fonte: Livro – Viva
Português 1° – Ensino médio – Língua portuguesa – 2ª edição 1ª impressão – São
Paulo – 2014. p. 217-8.
Entendendo a crônica:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Brasil: Neste caso, o termo é uma referência ao indígena brasileiro.
·
Catecúmeno: Aquele que está sendo preparado para receber o batismo.
·
Máxime: Principalmente, especialmente.
·
Padre
Geral: Também chamado de Prepósito
Geral, é o religioso considerado a principal autoridade entre os jesuítas. Na
época da carta de Anchieta, o Prepósito Geral era Inácio de Loyola, fundador da
Companhia de Jesus que foi canonizado em 1622.
02 – O fragmento lido apresenta
preocupações de seu narrador que revelam um de seus principais objetivos em
terras brasileiras. Que objetivo era esse e que dificuldades são encontradas
para alcança-lo?
Um dos principais
objetivos dos jesuítas, como José de Anchieta, era a conversão dos indígenas,
os “brasis”, ao cristianismo. No fragmento, Anchieta cita como dificuldade os
“maus costumes” dos pais (ou seja, dos ancestrais) dos indígenas adultos, e diz
também que estes “cerram os ouvidos para não ouvir a palavra de salvação”.
03 – Considerando o trecho
acima, qual parece ser o propósito dessa carta do padre José de Anchieta para
seu superior?
Informar o Padre
Geral sobre acontecimentos relativos à catequização: os cuidados com os
habitantes do Brasil e as queixas em relação às dificuldades para se conseguir
sua conversão religiosa.
04 – Além da data em que foi
escrita, que características ajudam a inserir essa carta no conjunto de relatos
produzidos no Brasil quinhentista?
A descrição de eventos do cotidiano dos moradores
da nova terra; As tentativas, muitas vezes frustradas, de conversão religiosa
dos indígenas no Brasil; O relato objetivo, mas rico em detalhes, sobre os
acontecimentos vividos pelos jesuítas.
05 – Qual é a importância
desse tipo de relato para a história brasileira?
Esse relato de
Anchieta pode ser visto como um documento histórico que traz registros sobre os
habitantes do Brasil no início da colonização.
06 – Quais devem ser os
cuidados ao interpretar esses relatos de época? Converse com seus colegas sobre
esse assunto.
Resposta pessoal
do aluno. Sugestão: Esses relatos apresentam uma visão de mundo particular, em
que cada um de seus autores mostram sua concepção do mundo considerando os
valores das instituições das quais fazem parte e o momento histórico vivido.