Crônica: Pinguinho
Viriato Corrêa
No lugarejo em que nasci dava-se uma
singularidade que eu não sei se ocorria em outra parte do mundo: o dia mais
alegre era aquele em que morria alguma pessoa.
Explica-se. No povoado, quando alguém
estava para morrer, mandava-se avisar à gente da redondeza. E, logo que o
doente fechava os olhos, a sua casa se enchia. Vinham, não só os vizinhos ali
de perto, como os de cinco, sete e mesmo de dez léguas distantes.
O trabalho paralisava. Os lavradores
não iam às roças; os vaqueiros não iam ao campo; a escola não se abria e até as
casas de negócios fechavam as portas.
E o lugarejo, dorminhoco e triste dos
dias comuns da vida, agitava-se, vivamente, nos raros dias de morte.
A todo o instante chegavam bandos de
homens e mulheres, ora em cavalos que alegravam os ares com relinchos, ora em
carros de bois que vinham chiando pelos caminhos.
A povoação transformava-se num
formigueiro ruidoso de crianças. No sertão, quando uma família sai de casa para
ir à de um defunto, sai completa, os grandes, a filharada e até mesmo os
cachorros.
Os grandes ficam na sala e no terreiro
do morto, a prestar as homenagens do costume; a meninada, essa vem para fora,
para a sombra das árvores, brincar em liberdade.
No meu tempo, quando morria alguém no
povoado, para nós, os pequeninos, o dia inteiro era de traquinada, de algazarra
e de alegria. Os taludos juntavam-se lá com os taludos; nós, pequeninos,
brincávamos com os pequeninos.
Talvez fôssemos mais de trinta, mais de
quarenta. Mas nenhum, nenhum tão afoito e tão disposto a brincar como o
Pinguinho.
O Pinguinho devia ser o mais velho de
todos nós, mas, tão franzino e tão frágil, que parecia o mais novo. Magro,
pescoço comprido, ombros estreitos, ossinhos de fora.
Uma
tossezinha seca. Mãos sempre geladas, testa sempre quente.
Mas, o que nele havia de belo, de vivo
e de brilhante, eram os olhos, dois grandes olhos negros e febris, como que
iluminados por um eterno desejo de viver.
Como não podia correr porque cansava e
não podia gritar porque tossia, o Pinguinho animava a brincadeira. Se a
cabra-cega ia aborrecendo, fazia-nos mudar para a boca-de-forno; se a
boca-de-forno já não despertava entusiasmo, lembrava a gangorra, o remporeá, o
anel, ou qualquer outro brinquedo.
Foi ele que, uma vez (na manhã da morte
do Chico da Lúcia), se apresentou entre nós com quatro rodas de ferro,
encontradas atrás da casa da máquina de descaroçar algodão.
Não sei onde se foi buscar um caixão de
bacalhau, não sei onde se arranjaram martelo e pregos. Em pouco, estava armado
um carro.
E o carro encheu-nos o grande dia. Dois
garotinhos dentro, outros dois empurrando e a pequenada a revezar-se dirigida
pelo Pinguinho que, por ser doentio e dono das rodas, não empurrava nunca e era
empurrado sempre.
A morte parecia-nos um bem que Deus
mandava às crianças da terra para que elas brincassem em liberdade.
Vivíamos a desejá-la através dos nossos
sonhos como se deseja um brinquedo através dos vidros de uma vitrina.
Quando o enterro saía e a meninada de
fora partia com os pais, as nossas almas ficavam mais tristes do que as casas
em que o luto havia entrado. Para nós, que nada sabíamos da morte, nada mais
tinha havido do que um maravilhoso dia de brinquedo, que terminava
inesperadamente.
E as nossas cabecinhas inconscientes
punham-se então a fazer cálculos, desejando outro dia como aquele. Quando
haveria de novo tanta criança, tanta alegria e tanta liberdade? Quando morreria
outra criatura?
Quem mais acertava nos cálculos era a
Chiquitita. Bastava dizer que um doente morreria em breve, para que o doente
não durasse um mês.
Vivíamos sonhando com os dias de luto
que traziam grandes dias de folguedos.
O
Maneco repetia constantemente com a boca cheia de língua:
— Se eu fosse Deus Nosso Senhor, três
vezes por semana tinha que haver um defunto.
De uma feita, a Tetéia nos encheu de
inveja. Garantiu-nos que em breve a brincadeira seria no seu quintal. Tinha em
casa três pessoas para morrer: a tia velha, a avó e o padrasto de sua mãe.
Para nosso entendimento aquilo era uma
fortuna. Nós que nada sabíamos da vida, só víamos na morte motivo de brinquedo.
Um dia, quando brincávamos a
cabra-cega, o Pinguinho, ao amarrar a venda nos olhos da Rosa, sentiu uma dor
no peito, uma sufocação e quis gritar. Mas, em vez de grito, o que lhe saiu da
boca foi uma golfada de sangue.
Carregamo-lo nos braços para casa.
À noite, o pobrezinho ardia em febre.
Não comeu mais, não saiu mais do fundo da rede. De quando em quando — golfadas
de sangue. E emagrecendo, emagrecendo — ficou pele e osso.
Não lhe saíamos de perto. Quando
podíamos enganar a vigilância de nossos pais, íamos para junto dele,
consolar-lhe os sofrimentos.
Numa manhã, linda manhã em que as
andorinhas brincavam no céu como garotinhos travessos, ele morreu.
O povoado encheu-se. Foi criança,
criança, como eu nunca vi tanta na minha vida.
Não podia haver dia melhor para se
brincar. Mas (surpresa para toda a gente!) nenhum de nós brincou. Nenhum de nós
saiu, sequer, para o terreiro.
Ficamos todos em derredor do cadáver,
sossegadinhos, tristes, silenciosos. Quando queríamos falar uns aos outros, era
baixinho, aos cochichos, como se temêssemos perturbar a majestade da dor que
nos afligia.
Tínhamos, pela primeira vez,
compreendido a morte. Era a primeira vez que ela nos tocava de perto.
E, dali por diante, quando alguém
morria no povoado, nunca mais enchemos de alaridos os terreiros e os quintais.
Nunca mais fizemos de um dia de luto um
dia de festa.
Dali por diante, a morte ficou sendo
para nós uma coisa séria, muito séria e muito triste.
Viriato
Corrêa. Cazuza. 27. ed. São Paulo: Nacional, 1997. p. 16-7.
Entendendo a crônica:
01 – Qual era a peculiaridade
do lugarejo em que o narrador nasceu em relação aos dias de morte?
No lugarejo, o
dia mais alegre era aquele em que morria alguma pessoa.
02 – Quando alguém estava
prestes a morrer no povoado, o que acontecia na comunidade?
A comunidade era
avisada, e as atividades cotidianas paravam. As pessoas da redondeza se
dirigiam à casa do doente, e o lugar ficava agitado e movimentado.
03 – Como as crianças do
povoado reagiam quando alguém morria?
As crianças viam
o dia de morte como uma oportunidade de brincadeira e liberdade. Elas se
reuniam para divertir-se enquanto os adultos prestavam homenagens ao falecido.
04 – Como o Pinguinho se
destacava entre as crianças durante os dias de morte?
O Pinguinho,
apesar de franzino e doentio, era o mais afoito e disposto a brincar. Ele
animava as brincadeiras, sugerindo novos jogos e trazendo elementos como um carro
improvisado.
05 – Como as crianças
enxergavam a morte durante as brincadeiras nos dias de luto?
As crianças viam
a morte como um bem que Deus mandava para que pudessem brincar em liberdade.
Elas ansiavam por dias de luto, associando-os a grandes momentos de folguedos.
06 – O que mudou na percepção
das crianças em relação à morte após a experiência com o Pinguinho?
Após a morte do
Pinguinho, as crianças passaram a compreender a morte de uma maneira mais séria
e triste. O evento marcou uma mudança significativa na percepção delas em
relação aos dias de luto.
07 – Como a morte do Pinguinho
influenciou o comportamento das crianças em relação aos dias de morte no
povoado?
A morte do
Pinguinho trouxe uma compreensão mais profunda e triste da morte para as
crianças. A partir desse momento, elas deixaram de transformar os dias de luto
em dias de festa, passando a encarar a morte de maneira mais séria.
Nenhum comentário:
Postar um comentário