Romance: O bobo
capítulo II – D. Ribas
Alexandre Herculano
[...]
“Numa sociedade em que as torpezas
humanas assim apareciam sem véu, o julgá-las era fácil. O dificultoso era
condená-las. Na extensa escala do privilégio, quando um feito ignóbil ou
criminoso se praticava, a sua ação recaía, por via de regra, sobre aqueles que
se achavam colocados nos degraus inferiores ao perpetrador do atentado. O
sistema das jerarquias mal consentia os gemidos: como seria portanto possível a
condenação? As leis civis, na verdade, procuravam anular ou pelo menos
modificar esta situação absurda; mas era a sociedade que devorava as
instituições, que não a compreendiam a ela, nem ela compreendia. Por que de
reinado para reinado, quase de ano para ano, vemos renovar essas leis, que
tendiam a substituir pela igualdade da justiça a desigualdade das situações? É
porque semelhante legislação era letra morta, protesto inútil de algumas almas
formosas e puras, que pretendiam fosse presente o que só podia ser futuro.
Mas no meio do silêncio tremendo de
padecer incrível e de sofrimento forçado, um homem havia que, leve como a
própria cabeça, livre como a própria língua, podia descer e subir a íngreme e
longa escada do privilégio, soltar em todos os degraus dela uma voz de
repreensão, punir todos os crimes com uma injuria amarga e patentear desonras
de poderosos, vingando assim, muitas vezes sem o saber, males e opressões de
humildes. Esse homem era o truão. O truão foi uma entidade misteriosa da Idade
Média. Hoje a sua significação social é desprezível e impalpável; mas então era
um espelho que refletia, cruelmente sincero, as feições hediondas da sociedade
desordenada e incompleta. O bobo, que habitava nos paços dos reis e dos barões,
desempenhava um terrível ministério. Era ao mesmo tempo juiz e algoz; mas
julgando, sem processo, no seu foro íntimo, e pregando, não o corpo, mas o
espírito do criminoso no potro material do vilipêndio.
[...]
Tal era o aspecto grandioso e poético
daquela entidade social exclusivamente própria da Idade Média, padrão levantado
à memória da liberdade e igualdade, e às tradições da civilização antiga, no
meio dos séculos da jerarquia e da gradação infinita entre homens e homens.
Quando, porém, chamamos miserável à existência do truão, a esta existência que
descrevêramos tão folgada e risonha, tão cheia de orgulho, d’esplendor, de
predomínio, era que nesse instante ela nos aparecera sob outro aspecto,
contrário ao primeiro, e todavia não menos real. Passadas estas horas de
convivência ou de deleite, que eram como uns oásis na vida triste, dura,
trabalhosa e arriscada da Idade Média, o bobo perdia o seu valor momentâneo, e
voltava à obscuridade, não à obscuridade de um homem, mas à de um animal
doméstico. Então os desprezos, as ignomínias, os maus tratos daqueles que em
público haviam sido alvos dos ditos agudos do chocarreiro, caíam sobre a sua
cabeça humilhada cerrados como granizo, sem piedade, sem resistência, sem
limite; era um rei desentronizado; era o tipo e o resumo das mais profundas
misérias humanas. [...]”.
HERCULANO, Alexandre.
O bobo. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d. p. 19-20.
Fonte: Língua
portuguesa 2 – Projeto ECO – Ensino médio – Editora Positivo – 1ª edição –
Curitiba – 2010. p. 44-5.
Entendendo o romance:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Torpezas: procedimentos indignos, torpes.
·
Ignóbil: desprezível, vil, adjeto.
·
Perpetrador: aquele que comete ou pratica atos condenáveis.
·
Hierarquias: séries contínuas de graus ou escalões, em ordem crescente ou
decrescente; escalas.
·
Truão: bufo, bufão, saltimbanco, palhaço, aquele encarregado de
fazer rir o público com mímicas, esgares, etc.
·
Hediondas: repelentes, repulsivas, horrendas.
·
Paços: palácios, edifícios suntuosos ou nobres.
·
Vilipêndio: desprezo, menoscabo, aviltamento.
·
Ignomínias: infâmias, grandes desonras.
·
Chocarreiro: aquele que diz chocarrices, isto é, gracejos atrevidos.
02 – No primeiro parágrafo
do texto, o narrador caracteriza de modo crítico a sociedade da Idade Média.
Quais seriam as principais marcas dessa sociedade?
Segundo o
narrador, a sociedade da Idade Média era marcada pela torpeza humana, ou seja,
pela injustiça e pela crueldade. Havia, de um lado, privilégios e, de outro,
crimes dificilmente condenados. A rígida hierarquização social fazia com que os
que se encontravam nos degraus mais baixos acabassem sendo punidos. Enquanto os
que ocupavam o topo não eram atingidos por punições.
03 – Ao descrever essa
sociedade, o narrador usa um adjetivo que denuncia o que ele pensa sobre a
situação que expõe. Que adjetivo é esse e o que ele evidencia?
O adjetivo é “absurda” e seu uso evidencia a discordância total do narrador
daquilo que descreve, considerando a situação sem sentido, inaceitável.
04 – Depois de discorrer
sobre a sociedade da Idade Média, o narrador inicia o parágrafo seguinte com a
conjunção adversativa “mas”, cuja função é a de introduzir uma ideia oposta à
que foi apresentada anteriormente. Que ideias o narrador opõe com o uso do
“mas”?
O narrador opõe a
ideia de injustiça do parágrafo anterior à ideia de que o bobo da corte seria o
responsável por apresentar uma resistência a essa estrutura de privilégios: ele
seria capaz de vingar os humildes, por meio das críticas que dirigia aos
poderosos, ou seja, ele seria capaz de promover a justiça.
05 – Pela adjetivação
dedicada ao bobo, é possível deduzir os valores que o autor busca simbolizar em
sua figura. Copie o quadro a seguir no caderno e preencha-o para sintetizar
suas conclusões:
Adjetivos -- Valores
Leve: --
Sem peso na consciência, ético em suas ações.
Livre: --
Sem amarras sociais, com uma conduta que
acredita ser justa.
Juiz: --
Agia com justiça, buscava minimizar as
injustiças que uma sociedade regida por privilégios apresentava.
Algoz: --
Punia aqueles que considerava injustos, mas que
não eram punidos pela “justiça oficial”.
06 – No parágrafo final do
trecho lido, o narrador coloca ao leitor os dois papéis exercidos pelo bobo da
corte: o teatral, sua atuação como bobo da corte, e o social, em que ele é um
indivíduo comum. Que diferença havia entre esses dois papéis?
O papel teatral
desempenhado pelo bobo da corte permitia que ele tivesse uma existência
risonha, exercesse o seu poder crítico, já quando era apenas um indivíduo, fora
de suas atribuições como bobo, ele voltava à obscuridade, voltava a ser alguém
pertencente à base da pirâmide social da Idade Média, sem nenhum valor
especial, um humilde como tantos outros.
07 – Qual a metáfora usada
pelo narrador se referir ao lugar ocupado pelo bobo como indivíduo?
O bobo seria,
nesse caso, um “rei desentronizado”, ou seja, alguém que tinha muito poder e
que o perdeu. Com essa metáfora, o narrador mostra que o privilégio do bobo em
sua atuação na corte não era mantido quando ele voltava à sua vida cotidiana.
08 – Um dos sinônimos
possíveis para bobo da corte é palhaço.
Considerando o que você leu no texto, esse sinônimo seria capaz de evidenciar
todos os papéis exercidos pelo bobo na sociedade medieval? Justifique sua
resposta.
O esperado é que os alunos respondam que não, pois a palavra
“palhaço” relaciona-se mais à ideia de fazer rir, divertir o outro, enquanto,
no texto, o bobo tinha não apenas a função de entreter, mas também a de
criticar, promover a sátira social, “vingar” os que não tinham voz, fazendo uso
dos privilégios que sua atuação teatral favorecia.