Autobiografia: LÁZARO RAMOS, A ILHA (Fragmento)
[...]
Minha história começa numa ilha com
pouco mais de duzentos habitantes, na baía de Todos os Santos. Uma fração de
Brasil praticamente secreta, ignorada pelas modernidades e pelos mapas: nem o
(quase) infalível Google Maps consegue encontrá-la. É nessa terra minúscula, a
Ilha do Paty, que estão minhas raízes. O lugar é um distrito de São Francisco
do Conde — município a 72 quilômetros de Salvador, próximo a Santo Amaro e
conhecido por sua atual importância na indústria do petróleo. Na ilha, as
principais fontes de renda ainda são a pesca, o roçado e ser funcionário da
prefeitura.
No Paty, sapatos são muitas vezes
acessórios dispensáveis. Para atravessar de um lado para o outro na maré de
águas verdes, o transporte oficial é a canoa, apesar de já existirem um ou
outro barco, cedidos pela prefeitura. Ponte? Nem pensar, dizem os moradores, em
coro. Quando alguém está no “porto” e quer chegar até o Paty, só precisa
gritar: “Tomaquê!”.
Talvez você, minha companhia de viagem,
não saiba o que quer dizer “tomaquê”. É uma redução, como “oxente”, que quer
dizer “O que é isso, minha gente”. Ou “Ó paí, ó”, que é “Olhe pra isso, olhe”.
Ou seja, é simplesmente “Me tome aqui, do outro lado da margem”. É muito mais
gostoso gritar “Tomaquê!”.
Assim, algum voluntário pega sua canoa
e cruza, a remo, um quilômetro nas águas verdes e calmas. Entre os dois pontos
da travessia se gastam uns quarenta minutos. Essa carona carrega, na verdade,
um misto de generosidade e curiosidade. Num lugar daquele tamanho, qualquer
visita vira assunto, e é justamente o remador quem transporta a novidade.
Até hoje procuro visitar a ilha todos
os anos. Gosto de entender minha origem e receber um abraço afetuoso dos mais
velhos. Vou também para encontrar um sentimento de inocência, uma felicidade
descompromissada, que só sinto por lá.
Graças à sua refinaria de petróleo, São
Francisco do Conde é um dos municípios mais ricos do país. (....) Essa
dinheirama, porém, não chega até o cotidiano de quem mora no Paty. Eles até
conseguem ver vantagens na vida simples que levam: como não há violência, não
há polícia na ilha, e as portas das casas estão sempre abertas para quem quiser
entrar. O que faz falta mesmo é a água encanada. Para tudo: dar descarga nos
banheiros, lavar pratos e roupas, tomar banho.
Não faz muito tempo, luz também era
luxo. Na minha infância, a energia elétrica vinha de um único gerador, usado
exclusivamente à noite, quando os televisores eram ligados nas novelas. As
janelas da casa de meu avô, que teve uma das primeiras TVs do Paty, ficavam
sempre cheias de gente. Era o nosso cineminha.
[...]
Lázaro Ramos. Na
Minha Pele. Rio de Janeiro: Objetiva, 2017. p.16-17.
Fonte: Língua
Portuguesa – Português – Apoema – Editora do Brasil – São Paulo, 2018. 1ª
edição – 6° ano. p. 11-2.
Entendendo a autobiografia:
01 – O texto está organizado
em parágrafos, marcados por uma entrada em branco na mudança de linha e um
sinal de pontuação final. Releia o primeiro parágrafo.
a) A qual localidade referem-se as passagens abaixo?
Referem-se à Ilha do Paty, onde o autor nasceu.
I – “[...] Ilha com pouco
mais de duzentos habitantes, na Baía de Todos os Santos”.
II – “Uma fração de Brasil
praticamente secreta, ignorada pelas modernidades e pelos mapas [...]”.
III – “[...] nem o (quase)
infalível, Google Maps conseguiu encontrá-la.”
IV – “[...] terra minúscula
[...]”.
b) Que características do lugar são reforçadas pela caracterização feita pelo autor nas passagens acima?
A pequena dimensão da ilha e seu afastamento em relação às
modernidades.
c) Com base em seu conhecimento de mundo, explique o que vem a ser Google Maps. Por que ele seria quase infalível, segundo o autor?
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: O Google Maps é uma ferramenta
digital que localiza lugares em mapas. A ferramenta seria “(quase) infalível”
porque há, ao menos, um lugar que ela não localiza – a Ilha do Paty.
d) O modo detalhado pelo qual o autor apresenta seu local de nascimento é importante para o leitor? Por quê?
Sim, porque o autor o descreve com detalhes e o leitor pode imaginar
que ele nasceu num lugar bem pequeno e afastado de tudo.
02 – Identifique no texto
mais algumas informações sobre o autor.
a) Ele
ainda mora na ilha? Justifique sua resposta com uma passagem do texto.
Não. Isso pode ser deduzido do
trecho: “Até hoje procuro visitar a Ilha todos os anos”.
b) No
último parágrafo, o autor fala de um tempo passado. Que lembranças ele traz
para o texto?
Ele fala do tempo em que não havia
luz na ilha e se recorda das janelas da casa de seu avô, que funcionavam como
cinema, porque dali as pessoas viam televisão.
c) Com
base nas informações do texto, como você imagina a infância do autor?
Resposta pessoal do aluno.
Sugestão: Foi uma criança livre, que viveu em uma ilha sem violência, em
contato com a natureza. Tem boas lembranças do avô e dos hábitos da ilha, como
andar descalço e aproveitar a generosidade dos habitantes.
d) Que
sentimentos ele parece ter em relação a ilha? Escolha elementos do texto para explicar
sua resposta.
Aparenta ter sentimentos positivos,
pois afirma, por exemplo, que gosta de visitar o lugar todos os anos e
reencontrar os mais velhos. Isso o faz “encontrar um sentimento de inocência
uma felicidade descompromissada”, que só sente em seu lugar de origem.
03 – O estilo de vida dos
moradores da ilha é o mesmo da época em que o autor era criança? Justifique sua
resposta.
Resposta pessoal do aluno. Sugestão:
Parece haver poucas mudanças, já que a vida dos habitantes permanece simples (a
travessia de canoa, a inexistência de pontes, o hábito de manter as casas
abertas, etc.). A principal mudança foi a chegada da luz elétrica.
04 – Nas frases a seguir,
aparecem elementos linguísticos, como verbos, pronomes, que indicam ser o
próprio autor quem relata sua história.
“Minha história começa numa ilha.”
“Até hoje procuro visitar a ilha todos
os anos.”
a) Em que pessoa verbal foi escrito o relato?
Na 1ª pessoa.
b) Destaque do texto mais uma passagem que confirme o uso dessa pessoa verbal.
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: “Gosto de entender minha origem
e receber um abraço afetuoso dos mais velhos”; “Vou também para encontrar um
sentimento de inocência, uma felicidade descompromissada, que só sinto por lá”.
c) Indique as duas alternativas corretas. Esse tipo de relato:
(X) Produz um efeito de verdade, de
que o autor conta o que de fato aconteceu na vida dele.
( ) Tem efeito de
dissimulação e incerteza, porque o autor admite estar inventando tudo.
( ) Afasta autor
e leitor, porque esse último desconfia do que lê, já que tudo parece invenção.
( ) Constrói
efeito de fantasia e ficção, porque nada do que se conta parece ter
verdadeiramente acontecido.
(X) Aproxima autor e leitor, porque
este último acredita na sinceridade do relato pessoal.
05 – Na seção Antes da leitura você e seus colegas
pensaram em algumas hipóteses sobre o conteúdo do livro “Na Minha Pele”, depois
de ler o texto suas ideias iniciais se confirmaram? Por quê?
Resposta pessoal do aluno.
06 – No texto aparecem
algumas formas abreviadas, ou seja, reduzidas, de expressões, como oxente, que significa “O que é isso,
minha gente”; e Ó paí, ó em vez de
“Olhe pra isso, olhe”.
a) As expressões abreviadas usadas pelos habitantes da ilha mostram um uso próprio da região. Em que situações essas expressões são empregadas por eles?
No dia-a-dia, nas conversas entre eles, no uso cotidiano.
b) O autor diz que é “mais gostoso” usar a forma abreviada tomaquê do que a frase completa “me tome aqui, do outro lado da margem”.
Os falantes são os habitantes da ilha e essa é a forma usada por
todos da região para pegar a canoa no dia-a-dia; é uma forma familiar, mais
simples e mais direta, que identifica os moradores da ilha e todos de lá a
reconhecem.
c) Você provavelmente utiliza expressões como essas ou outras abreviações em seu dia-a-dia. Discorra sobre algumas situações em que você as utiliza.
Resposta pessoal do aluno.
07 – Releia a seguinte
passagem do texto.
“Graças
à sua refinaria de petróleo, São Francisco do Conde é um dos municípios mais
ricos do país. (....) Essa dinheirama, porém, não chega até o cotidiano de quem
mora no Paty. [...]”.
a) Em vez de usar a palavra dinheiro, o autor preferiu dizer dinheirama. O que significa a palavra empregada?
Muito dinheiro.
b) O autor usa a palavra num contexto em que está criticando a distribuição do dinheiro arrecadado pelo município. Qual é a crítica que ele faz?
Ele diz que o munícipe é um dos mais ricos do país por causa da
refinaria de petróleo, mas que o dinheiro não ajuda a melhorar o dia-a-dia da
população.
c) Pode-se dizer que o aumentativo empregado ajuda a construir a crítica? Por quê?
Sim, porque, ao usar o aumentativo, o autor quis mostrar que a
quantidade de dinheiro é muito grande. Isso reforça a crítica: se é tanto
dinheiro, por que os moradores não veem melhorias em seu dia-a-dia?