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terça-feira, 23 de agosto de 2022

CRÔNICA: VOLTANDO PARA CASA - DANIEL MUNDURUKU - COM GABARITO

Crônica: Voltando para casa

               Daniel Munduruku

   Nunca esqueci quem sou. Na infância e na juventude, tive vontade de negar a origem de minha família. Algumas vezes, esforcei-me para esquecer. Em outras ocasiões, simplesmente não lembrei. A vida foi me colocando por caminhos diversos. Eu segui esses conselhos sem questionar. Viver o presente faz a gente colher tempestade também. Algumas tantas vezes, as várias tarefas que a gente se impõe acabam nos levando para caminhos de esquecimento e isso empobrece o nosso espírito. 

        Vejam isso como um balanço que faço. Sou um indígena. Trago no meu corpo os traços de minhas origens e, apesar do esforço que fiz em negar, foi por causa deles que não pude esquecer quem sou e de onde vim. Mas terei eu me esquecido de buscar no coração do meu povo uma atualização da minha origem? Não teria apagado de mim tudo o que sou ou esquecido propositadamente meu povo? Não teria usado minha origem para ganhar as benesses da sociedade? Estarei fazendo algo realmente por meu povo?

        Essas perguntas começaram a pipocar em minha cabeça no início da década de 1990. Eu já me firmava como educador e logo como escritor, mas essas indagações passaram a me acompanhar, lembrando que eu precisava voltar para casa, para os meus. Talvez precisasse mergulhar novamente na minha cultura ancestral para não perder de vista quem eu era e para quem vivia.

        Num desses dias de inquietação, passei pela Universidade de São Paulo (USP). Fui ao Departamento de Antropologia e me demorei lendo tudo o que estava exposto sobre as pesquisas acerca dos povos indígenas. Aquela andança me revelou que havia um certo Núcleo de Cultura Indígena coordenado por Ailton Krenak. Quis conhecê-lo. A sede estava lotada próximo à Pontifícia Universidade Católica (PUC). Não passava de uma sala que media três por três metros. Havia umas prateleiras repletas de livros. Nas paredes, cartazes e arte material de alguns povos. Atrás da única mesa, estava um jovem de cabelo desgrenhado, tez morena, olhos profundos, um pouco desfocados e com um sorriso torto. Observei tudo e me deu vontade de ir embora. O jovem, no entanto, percebeu meu embaraço e foi logo se erguendo. Apresentou-se como diretor da Instituição. Era Krenak. Eu cumprimentei sem jeito. Depois vi que era ele mesmo, porque havia pôsteres seus espalhados pela sala. Falei quem eu era e o que eu queria. Ele disse que entendia, mas que naquele lugar não havia espaço para mais ninguém. Se eu quisesse, poderia frequentar, mas ele não poderia se comprometer em me arranjar serviço. Disse a ele que não queria trabalho, mas fazer pesquisa, estudar, talvez uma pós-graduação. Ele mirou meus olhos. Depois escreveu um nome num papel e me entregou. Disse para procurar aquela pessoa no Departamento de Antropologia da USP, pois ela poderia me orientar. Peguei o papel e agradeci pela atenção. Ele sorriu para mim e voltou para sua cadeira atrás da mesa.

        Na semana seguinte, estava de volta à USP. Procurei a pessoa sugerida por Ailton. Mandaram-me falar com uma pessoa bem jovem, mas que tinha um sorriso imenso, como se os dentes não lhe coubessem na boca. Sorria fácil, com espontaneidade. Chamava-se Aracy Lopes da Silva. Contei a ela sobre minha visita ao NCI e sobre a rápida conversa com Ailton. Disse que eu era Munduruku, professor da rede de ensino e que queria voltar para casa. Ela riu de minha ingenuidade, mas parou por um longo minuto. Olhou-me com seriedade, perguntou se eu queria ser seu orientando no mestrado de Antropologia. Essa seria, segundo ela, a melhor maneira de voltar para casa. 

        Confessei à professora minha dificuldade na lida acadêmica. O curso de Filosofia não me deu o senso da pesquisa acadêmica e isso poderia dificultar os estudos. Disse o que pensava sobre antropologia e seus pesquisadores e que tinha receio de tornar-me um teórico. Foi ela quem me disse que antropologia era somente uma filosofia colocada na prática e que quem estuda Filosofia podia estudar qualquer coisa. Ela entendeu minha dificuldade, mas garantiu que poderia me ajudar a me ajudar. Lembrou-me bem de que tudo dependeria de mim e menos dela. Ela seria orientadora dos estudos, mas a realização destes seria minha. Perguntou se eu topava o desafio. Disse que sim. Ela me abraçou carinhosamente e me disse: "Vamos". 

        Foi assim que comecei a namorar o meu mestrado em Antropologia. Aracy me orientou com bravura até minha entrada oficial no curso, pois tive que passar pelo ritual dos exames de admissão. Foi ela que me deu a notícia de que estava aprovado e que poderia ser minha orientadora. Eu fiquei felicíssimo, claro, mas também apreensivo. Isso representava uma nova guinada na minha trajetória de vida. Um novo rito de passagem. Representava, também, a volta para a minha casa ancestral.

             Daniel Munduruku. Memórias de índio: uma quase autobiografia. Porto Alegre: Edelbra, 2016. p. 151-154.

Fonte: Língua Portuguesa – Estações – Ensino Médio – Volume Único. 1ª edição, São Paulo, 2020 – editora Ática – p. 160-1.

Entendendo a crônica:

01 – Você conhece o escritor da crônica? Qual é a sua origem?

      Resposta pessoal do aluno.

02 – Você já se fez questionamentos parecidos com os que inquietaram o escritor? Já se preocupou em conhecer suas origens ou se perguntar sobre elas? Converse com os colegas sobre isso.

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Trata-se de um autoquestionamento sobre a identidade indígena do autor. Depois de algum tempo trabalhando como educador e escritor, ele sentiu a necessidade de retomar o contato com suas raízes e concluiu que deveria “voltar para casa”, ou seja, conhecer melhor e valorizar sua ancestralidade.

03 – De acordo com o texto, a professora Aracy Lopes da Silva diz a Munduruku que um mestrado em Antropologia seria a melhor maneira de ele voltar para casa. Procure informações sobre essa ciência e seu campo de estudo. Em seguida, explique o que a professora quis dizer.

      Sugestão: Oriente os estudantes a conversa com os professores da área de Ciências Humanas e Sociais ou pesquisar em fontes confiáveis, como sites de universidades ou periódicos científicos, para informar-se sobre a Antropologia e seu campo de estudo.

04 – Explique o título da crônica: “Voltando para casa”. Ele tem sentido literal ou metafórico? Que caminhos o autor precisava percorrer de volta e por quê?

      O título tem sentido metafórico. De acordo com o primeiro parágrafo, ele precisava percorrer de volta os caminhos do esquecimento sobre suas origens, sobre quem ele era, porque esse esquecimento, segundo o autor, empobrece nosso espírito.