Crônica: Voltando para casa
Daniel Munduruku
Nunca esqueci quem sou. Na infância e
na juventude, tive vontade de negar a origem de minha família. Algumas vezes,
esforcei-me para esquecer. Em outras ocasiões, simplesmente não lembrei. A vida
foi me colocando por caminhos diversos. Eu segui esses conselhos sem
questionar. Viver o presente faz a gente colher tempestade
também. Algumas tantas vezes, as várias tarefas que a gente se impõe
acabam nos levando para caminhos de esquecimento e isso empobrece o nosso
espírito.
Vejam isso como um balanço que faço.
Sou um indígena. Trago no meu corpo os traços de minhas origens e, apesar do
esforço que fiz em negar, foi por causa deles que não pude esquecer quem sou e
de onde vim. Mas terei eu me esquecido de buscar no coração do meu povo uma
atualização da minha origem? Não teria apagado de mim tudo o que sou ou
esquecido propositadamente meu povo? Não teria usado minha origem para ganhar
as benesses da sociedade? Estarei fazendo algo realmente por meu povo?
Essas perguntas começaram a pipocar em
minha cabeça no início da década de 1990. Eu já me firmava como educador e logo
como escritor, mas essas indagações passaram a me acompanhar, lembrando que eu
precisava voltar para casa, para os meus. Talvez precisasse mergulhar novamente
na minha cultura ancestral para não perder de vista quem eu era e para quem
vivia.
Num desses dias de inquietação, passei
pela Universidade de São Paulo (USP). Fui ao Departamento de Antropologia e me
demorei lendo tudo o que estava exposto sobre as pesquisas acerca dos povos
indígenas. Aquela andança me revelou que havia um certo Núcleo de Cultura
Indígena coordenado por Ailton Krenak. Quis conhecê-lo. A sede estava lotada
próximo à Pontifícia Universidade Católica (PUC). Não passava de uma sala que
media três por três metros. Havia umas prateleiras repletas de livros. Nas
paredes, cartazes e arte material de alguns povos. Atrás da única mesa, estava
um jovem de cabelo desgrenhado, tez morena, olhos profundos, um pouco
desfocados e com um sorriso torto. Observei tudo e me deu vontade de ir embora.
O jovem, no entanto, percebeu meu embaraço e foi logo se erguendo.
Apresentou-se como diretor da Instituição. Era Krenak. Eu cumprimentei sem jeito.
Depois vi que era ele mesmo, porque havia pôsteres seus espalhados pela sala.
Falei quem eu era e o que eu queria. Ele disse que entendia, mas que naquele
lugar não havia espaço para mais ninguém. Se eu quisesse, poderia frequentar,
mas ele não poderia se comprometer em me arranjar serviço. Disse a ele que não
queria trabalho, mas fazer pesquisa, estudar, talvez uma pós-graduação. Ele
mirou meus olhos. Depois escreveu um nome num papel e me entregou. Disse para
procurar aquela pessoa no Departamento de Antropologia da USP, pois ela poderia
me orientar. Peguei o papel e agradeci pela atenção. Ele sorriu para mim e
voltou para sua cadeira atrás da mesa.
Na semana seguinte, estava de volta à
USP. Procurei a pessoa sugerida por Ailton. Mandaram-me falar com uma pessoa
bem jovem, mas que tinha um sorriso imenso, como se os dentes não lhe coubessem
na boca. Sorria fácil, com espontaneidade. Chamava-se Aracy Lopes da Silva.
Contei a ela sobre minha visita ao NCI e sobre a rápida conversa com Ailton.
Disse que eu era Munduruku, professor da rede de ensino e que queria voltar
para casa. Ela riu de minha ingenuidade, mas parou por um longo minuto.
Olhou-me com seriedade, perguntou se eu queria ser seu orientando no mestrado
de Antropologia. Essa seria, segundo ela, a melhor maneira de voltar para
casa.
Confessei à professora minha
dificuldade na lida acadêmica. O curso de Filosofia não me deu o senso da
pesquisa acadêmica e isso poderia dificultar os estudos. Disse o que pensava
sobre antropologia e seus pesquisadores e que tinha receio de tornar-me um
teórico. Foi ela quem me disse que antropologia era somente uma filosofia
colocada na prática e que quem estuda Filosofia podia estudar qualquer coisa.
Ela entendeu minha dificuldade, mas garantiu que poderia me ajudar a me
ajudar. Lembrou-me bem de que tudo dependeria de mim e menos dela. Ela
seria orientadora dos estudos, mas a realização destes seria minha. Perguntou
se eu topava o desafio. Disse que sim. Ela me abraçou carinhosamente e me
disse: "Vamos".
Foi assim que comecei a namorar o meu
mestrado em Antropologia. Aracy me orientou com bravura até minha entrada
oficial no curso, pois tive que passar pelo ritual dos exames de admissão. Foi
ela que me deu a notícia de que estava aprovado e que poderia ser minha
orientadora. Eu fiquei felicíssimo, claro, mas também apreensivo. Isso
representava uma nova guinada na minha trajetória de vida. Um novo rito de
passagem. Representava, também, a volta para a minha casa ancestral.
Daniel Munduruku. Memórias de
índio: uma quase autobiografia. Porto Alegre: Edelbra, 2016. p. 151-154.
Fonte: Língua
Portuguesa – Estações – Ensino Médio – Volume Único. 1ª edição, São Paulo, 2020
– editora Ática – p. 160-1.
Entendendo a crônica:
01 – Você conhece o escritor
da crônica? Qual é a sua origem?
Resposta pessoal
do aluno.
02 – Você já se fez
questionamentos parecidos com os que inquietaram o escritor? Já se preocupou em
conhecer suas origens ou se perguntar sobre elas? Converse com os colegas sobre
isso.
Resposta pessoal do aluno. Sugestão:
Trata-se de um autoquestionamento sobre a identidade indígena do autor. Depois
de algum tempo trabalhando como educador e escritor, ele sentiu a necessidade
de retomar o contato com suas raízes e concluiu que deveria “voltar para casa”,
ou seja, conhecer melhor e valorizar sua ancestralidade.
03 – De acordo com o texto,
a professora Aracy Lopes da Silva diz a Munduruku que um mestrado em
Antropologia seria a melhor maneira de ele voltar para casa. Procure informações
sobre essa ciência e seu campo de estudo. Em seguida, explique o que a
professora quis dizer.
Sugestão: Oriente os estudantes a
conversa com os professores da área de Ciências Humanas e Sociais ou pesquisar
em fontes confiáveis, como sites de universidades ou periódicos científicos,
para informar-se sobre a Antropologia e seu campo de estudo.
04 – Explique o título da
crônica: “Voltando para casa”. Ele tem sentido literal ou metafórico? Que
caminhos o autor precisava percorrer de volta e por quê?
O título tem
sentido metafórico. De acordo com o primeiro parágrafo, ele precisava percorrer
de volta os caminhos do esquecimento sobre suas origens, sobre quem ele era,
porque esse esquecimento, segundo o autor, empobrece nosso espírito.