CONTO: O Vagabundo na Esplanada
Manuel da Fonseca
A surpresa, de mistura com um
indefinido receio e o imediato desejo de mais acautelada perspectiva de
observação, levava os transeuntes a afastarem-se de esguelha para os lados do passeio.
Pela clareira que se abria, o
vagabundo, de mãos nos bolsos das calças, vinha, despreocupadamente, avenida
abaixo.
Cerca de cinquenta anos, atarracado,
magro, tudo nele era limpo, mas velho e cheio de remendos. Sobre a esburacada camisola
interior, o casaco, puído nos cotovelos e demasiado grande, caía-lhe dos ombros
em largas pregas, que ondulavam atrás das costas ao ritmo lento da passada.
Desfiadas nos joelhos, muito curtas, as calças deixavam à mostra as canelas,
nuas, finas de osso e nervo, saídas como duas ripas dos
sapatos cambados. Caído para a nuca, copa achatada, aba às ondas, o
chapéu semelhava uma auréola alvacenta.
Apesar de tudo isso, o rosto largo e
anguloso do homem, de onde uns olhos azuis-claros irradiavam como que um
sorriso de luminosa ironia e compreensivo perdão, erguia-se, intacto e
distante, numa serena dignidade.
Era assim, ao que se via, o seu natural
comportamento de caminhar pela cidade.
Alheado, mas condescendente, seguia
pelo centro do passeio com a distraída segurança de um milionário que
obviamente se está nas tintas para quem passa. Não só por educação
mas também pelo simples motivo de ter mais e melhor em que pensar.
O que não sucedia aos transeuntes. Os
quais, incrédulos ao primeiro relance, se desviavam,
oblíquos, deambulante causa do seu espanto. E à vista do que lhes
parecia um homem livre de sujeições, senhor de si próprio em qualquer
circunstância e lugar, logo, por contraste, lhes ocorriam todos os problemas,
todos os compadrios, todas as obrigações que os enrodilhavam. E sempre
submersos de prepotências, sempre humilhados e sempre a fingir que nada disso
lhes acontecia.
Num instante, embora se desconhecessem,
aliava-os a unânime má vontade contra quem tão vincadamente os afrontava em
plena rua. Pronta, a vingança surgia. Falavam dos sapatos cambados, do fato de
remendos, do ridículo chapéu. Consolava-os imaginar os frios, as chuvas e as
fomes que o homem havia de sofrer. No entanto, alguém disse:
-- Vê-se com cada sujeito.
Um senhor vestido de escuro, de pasta
negra e luzidia, colocada ostensivamente ao alto e bem segura sobre o braço
arqueado, murmurou azedamente:
-- Que benefício trará tal criatura à
sociedade?
-- Devia ser proibido que gente desta
[classe] andasse pelas ruas da cidade – murmurou, escandalizada, uma velha
senhora a outra velha senhora de igual modo escandalizada. E assim,
resmungando, se dispersavam, cada um às suas obrigações, aos seus problemas.
Sem dar por tal, o homem seguia adiante.
Junto dos Restauradores,
a esplanada atraiu-lhe a atenção. De cabeça inclinada para trás,
pálpebras baixas, catou pelos bolsos umas tantas moedas, que pôs na palma da
mão. Com o dedo esticado, separou-as, contando-as conscienciosamente. Aguardou
o sinal de passagem, e saiu da sombra dos prédios para o Sol da tarde quente de
Verão.
A meio da esplanada havia uma mesa
livre. Com o à vontade de um frequentador habitual, o homem sentou-se.
Após acomodar-se o melhor que o feitio
da cadeira de ferro consentia, tirou os pés dos sapatos, espalmou-os contra a
frescura do empedrado, sob o toldo. As rugas abriram-lhe no rosto curtido
pelas soalheiras um sorriso de bem-estar.
Mas o fato e os modos da sua chegada
haviam despertado nos ocupantes da esplanada, mulheres e homens, uma
turbulência de expressões desaprovadoras. Ao desassossego de semelhante
atrevimento sucedera a indignação.
Ausente, o homem entregava-se ao prazer
de refrescar os pés cansados, quando um inesperado golpe de vento ergueu do
chão a folha inteira de um jornal, e enrolou-lha nas canelas. O homem
apanhou-a, abriu-a. Estendeu as pernas, cruzou um pé sobre o outro.
Céptico, mas curioso, pôs-se
a ler.
O facto, de si tão discreto, pareceu
constituir a máxima ofensa para os presentes. Franzidos, empertigaram-se,
circunvagando os olhos, como se gritassem: “Pois, não há um empregado que venha
expulsar daqui este tipo!”. Nas caras, descompostas pelo
desorbitado melindre, havia o que quer que fosse de recalcada, hedionda
raiva contra o homem mal vestido e tranquilo, que lia o jornal na esplanada.
Um rapaz aproximou-se. Casaco branco,
bandeja sob o braço, muito senhor do seu dever. Mas, ao reparar no rosto do
homem, tartamudeou:
-- Não pode...
E calou-se. O homem olhava-o com
benevolência.
-- Disse?
-- É reservado o direito de admissão –
tornou o rapaz, hesitando. – Está além escrito.
Depois de ler o dístico, o homem,
com a placidez de quem, por mera distração, se dispõe a aprender mais um dos
confusos costumes da cidade, perguntou:
-- Que direito vem a ser esse?
-- Bem... – volveu o empregado. – A gerência
não admite... Não podem vir aqui certas pessoas.
-- E é a mim que vem dizer isso?
O homem estava deveras surpreendido.
Encolhendo os ombros, como quem se presta a um sacrifício, deu uma mirada pelas
caras dos circunstantes. O azul-claro dos olhos embaciou-se-lhe. – Talvez que
a gerência tenha razão – concluiu ele, em tom baixo e magoado. – Aqui para nós,
também me não parecem lá grande coisa. – O empregado nem podia falar.
Conciliador, já a preparar-se para
continuar a leitura do jornal, o homem colocou as moedas sobre a mesa, e pediu,
delicadamente:
-- Traga-me uma cerveja fresca, se faz favor. E diga à gerência que os
deixe ficar. Por mim, não me importo.
FONSECA, Manuel da. Tempo
de Solidão. Lisboa: Editorial Caminho, 1985.
Fonte: Livro – Tecendo Linguagens – Língua Portuguesa – 9º
ano – Ensino Fundamental – IBEP 5ª edição – São Paulo, 2018, p. 15-18.
Entendendo o conto:
01 – De acordo com o texto, quais são os significados das palavras
abaixo:
·
Alvacento: esbranquiçado,
quase branco.
·
Cambado: gasto de forma desigual na sola e no salto.
·
Deambulante: que caminha sem
direção determinada.
·
Dístico: letreiro, placa.
·
Embaciar: obscurecer,
embaçar.
·
Enrodilhar: envolver.
·
Esplanada: terreno plano,
largo, extenso, situado em frente a um edifício importante.
·
Estar nas tintas: assumir
uma atitude de despreocupação, indiferença.
·
Melindre: sentimento de
vergonha; pudor, recato, escrúpulo.
·
Soalheira: exposição aos
raios solares.
02 – Em quanto tempo você
acha que a história se desenvolve? Justifique sua resposta.
A história pode
ter durado entre 20 minutos e 1 hora, pois o homem desce a rua, entra no
estabelecimento e logo um empregado se aproxima para falar com ele.
03 – Qual é o ambiente em
que a história acontece?
A história
inicia-se em uma rua do centro da cidade e, depois, o personagem principal
entra em um estabelecimento, que parece ser um restaurante ou um bar.
04 – Como podemos
caracterizar o narrador de “O vagabundo
na esplanada”? Justifique sua resposta.
A narração é
feita em terceira pessoa e o narrador não participa da história, é
narrador-observador, mas mostra total adesão ao protagonista da história.
05 – Identifique o conflito
do conto “O Vagabundo na Esplanada”
e explique de que maneira ele foi solucionado. Você pode transcrever trechos do
texto para justificar sua resposta.
O conflito
contrapõe o comportamento do vagabundo e a reação das pessoas que o julgam
indigno de conviver com elas pela aparência e pelo comportamento que ostenta. A
solução para o conflito vem do próprio vagabundo, que, em vez de se sentir
constrangido com a abordagem do garçom, se porta como se coubesse a ele a
decisão sobre a permanência das pessoas no local. Assim, mesmo assustado com as
condições morais daquela gente, ele as perdoa e concede a elas a permissão de
lá ficarem.
06 – Releia o trecho a
seguir:
“Alheado,
mas condescendente, seguia pelo centro do passeio com a distraída segurança de
um milionário que obviamente se está nas tintas para quem passa. Não
só por educação mas também pelo simples motivo de ter mais e melhor em que
pensar.
O que não sucedia aos transeuntes. Os
quais, incrédulos ao primeiro relance, se desviavam,
oblíquos, deambulante causa do seu espanto. [...]”.
a) O que esse trecho revela a respeito do personagem?
O personagem não percebe nem se incomoda com os comentários alheios
a seu respeito.
b) É possível afirmar que há ironia quando o narrador diz que o personagem tinha “mais e melhor em que pensar”. Por quê?
A ironia é do próprio narrador em relação à postura dos transeuntes.
O narrador acaba tomando uma posição a favor do vagabundo ao sugerir que os
outros transeuntes não tinham nada de muito importante em que pensar, além de
manifestar o preconceito, o que torna o vagabundo superior em relação aos
demais.
07 – No que diz respeito à
descrição que o narrador faz dos transeuntes, transcreva o trecho que revela o
preconceito destes em relação ao personagem.
“Num instante, embora se
desconhecessem, aliava-os a unânime má vontade contra quem tão vincadamente os
afrontava em plena rua. Pronta, a vingança surgia. Falavam dos sapatos
cambados, do fato de remendos, do ridículo chapéu. Consolava-os imaginar os
frios, as chuvas e as fomes que o homem havia de sofrer.”
08 – Releia este outro
trecho.
“A meio da esplanada havia uma mesa livre. Com o à vontade de um frequentador habitual, o homem sentou-se.”
a) O que o comportamento do personagem revela sobre o modo como ele mesmo se via?
O trecho revela que o personagem se via como qualquer outro
frequentador da esplanada, não tendo nenhum receio de se sentar com aqueles que
se julgam superiores a ele.
b) A expressão “à vontade” é geralmente empregada como adjunto adverbial. Qual é a novidade quanto ao uso dessa expressão nesse texto?
Ela foi empregada como substantivo, para nomear os modos do
personagem.
09 – No desfecho do conto,
acontece a inclusão ou a exclusão do personagem? Quem é responsável por isso?
Acontece a
inclusão do personagem. O próprio vagabundo é responsável por sua inclusão,
pois se considera digno de frequentar um restaurante ou bar que, aparentemente,
é frequentado por pessoas de nível social diferenciado.
10 – Transcreva a afirmativa que caracteriza adequadamente o conto “O vagabundo na esplanada”.
a) Narrativa longa, em prosa, com muitos capítulos. Em cada capítulo, surgem personagens secundários que giram em torno de um personagem principal.
b)
Narrativa breve, em prosa.
Apresenta linguagem em que estão condensadas a força da expressão e a
pluralidade de significados. Permite que o leitor faça a própria interpretação
dos fatos narrados.
c)
Texto poético, do tipo geralmente publicado
em jornais e revistas. Mistura linguagem verbal e visual e conta uma história
real, cotidiana.