Mostrando postagens com marcador MANUEL DA FONSECA. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador MANUEL DA FONSECA. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 28 de setembro de 2021

CONTO: O VAGABUNDO NA ESPLANADA - MANUEL DA FONSECA - COM GABARITO

 CONTO: O Vagabundo na Esplanada

              Manuel da Fonseca

        A surpresa, de mistura com um indefinido receio e o imediato desejo de mais acautelada perspectiva de observação, levava os transeuntes a afastarem-se de esguelha para os lados do passeio.

        Pela clareira que se abria, o vagabundo, de mãos nos bolsos das calças, vinha, despreocupadamente, avenida abaixo.

        Cerca de cinquenta anos, atarracado, magro, tudo nele era limpo, mas velho e cheio de remendos. Sobre a esburacada camisola interior, o casaco, puído nos cotovelos e demasiado grande, caía-lhe dos ombros em largas pregas, que ondulavam atrás das costas ao ritmo lento da passada. Desfiadas nos joelhos, muito curtas, as calças deixavam à mostra as canelas, nuas, finas de osso e nervo, saídas como duas ripas dos sapatos cambados. Caído para a nuca, copa achatada, aba às ondas, o chapéu semelhava uma auréola alvacenta.

        Apesar de tudo isso, o rosto largo e anguloso do homem, de onde uns olhos azuis-claros irradiavam como que um sorriso de luminosa ironia e compreensivo perdão, erguia-se, intacto e distante, numa serena dignidade.

        Era assim, ao que se via, o seu natural comportamento de caminhar pela cidade.

        Alheado, mas condescendente, seguia pelo centro do passeio com a distraída segurança de um milionário que obviamente se está nas tintas para quem passa. Não só por educação mas também pelo simples motivo de ter mais e melhor em que pensar.

        O que não sucedia aos transeuntes. Os quais, incrédulos ao primeiro relance, se desviavam, oblíquos, deambulante causa do seu espanto. E à vista do que lhes parecia um homem livre de sujeições, senhor de si próprio em qualquer circunstância e lugar, logo, por contraste, lhes ocorriam todos os problemas, todos os compadrios, todas as obrigações que os enrodilhavam. E sempre submersos de prepotências, sempre humilhados e sempre a fingir que nada disso lhes acontecia.

        Num instante, embora se desconhecessem, aliava-os a unânime má vontade contra quem tão vincadamente os afrontava em plena rua. Pronta, a vingança surgia. Falavam dos sapatos cambados, do fato de remendos, do ridículo chapéu. Consolava-os imaginar os frios, as chuvas e as fomes que o homem havia de sofrer. No entanto, alguém disse:

        -- Vê-se com cada sujeito.

        Um senhor vestido de escuro, de pasta negra e luzidia, colocada ostensivamente ao alto e bem segura sobre o braço arqueado, murmurou azedamente:

        -- Que benefício trará tal criatura à sociedade?

        -- Devia ser proibido que gente desta [classe] andasse pelas ruas da cidade – murmurou, escandalizada, uma velha senhora a outra velha senhora de igual modo escandalizada. E assim, resmungando, se dispersavam, cada um às suas obrigações, aos seus problemas. Sem dar por tal, o homem seguia adiante.

        Junto dos Restauradores, a esplanada atraiu-lhe a atenção. De cabeça inclinada para trás, pálpebras baixas, catou pelos bolsos umas tantas moedas, que pôs na palma da mão. Com o dedo esticado, separou-as, contando-as conscienciosamente. Aguardou o sinal de passagem, e saiu da sombra dos prédios para o Sol da tarde quente de Verão.

        A meio da esplanada havia uma mesa livre. Com o à vontade de um frequentador habitual, o homem sentou-se.

        Após acomodar-se o melhor que o feitio da cadeira de ferro consentia, tirou os pés dos sapatos, espalmou-os contra a frescura do empedrado, sob o toldo. As rugas abriram-lhe no rosto curtido pelas soalheiras um sorriso de bem-estar.

        Mas o fato e os modos da sua chegada haviam despertado nos ocupantes da esplanada, mulheres e homens, uma turbulência de expressões desaprovadoras. Ao desassossego de semelhante atrevimento sucedera a indignação.

        Ausente, o homem entregava-se ao prazer de refrescar os pés cansados, quando um inesperado golpe de vento ergueu do chão a folha inteira de um jornal, e enrolou-lha nas canelas. O homem apanhou-a, abriu-a. Estendeu as pernas, cruzou um pé sobre o outro.

Céptico, mas curioso, pôs-se a ler.

        O facto, de si tão discreto, pareceu constituir a máxima ofensa para os presentes. Franzidos, empertigaram-se, circunvagando os olhos, como se gritassem: “Pois, não há um empregado que venha expulsar daqui este tipo!”. Nas caras, descompostas pelo desorbitado melindre, havia o que quer que fosse de recalcada, hedionda raiva contra o homem mal vestido e tranquilo, que lia o jornal na esplanada.

        Um rapaz aproximou-se. Casaco branco, bandeja sob o braço, muito senhor do seu dever. Mas, ao reparar no rosto do homem, tartamudeou:

        -- Não pode...

        E calou-se. O homem olhava-o com benevolência.

        -- Disse?

        -- É reservado o direito de admissão – tornou o rapaz, hesitando. – Está além escrito.

        Depois de ler o dístico, o homem, com a placidez de quem, por mera distração, se dispõe a aprender mais um dos confusos costumes da cidade, perguntou:

        -- Que direito vem a ser esse?

        -- Bem... – volveu o empregado. – A gerência não admite... Não podem vir aqui certas pessoas.

        -- E é a mim que vem dizer isso?

        O homem estava deveras surpreendido. Encolhendo os ombros, como quem se presta a um sacrifício, deu uma mirada pelas caras dos circunstantes. O azul-claro dos olhos embaciou-se-lhe. – Talvez que a gerência tenha razão – concluiu ele, em tom baixo e magoado. – Aqui para nós, também me não parecem lá grande coisa. – O empregado nem podia falar.

        Conciliador, já a preparar-se para continuar a leitura do jornal, o homem colocou as moedas sobre a mesa, e pediu, delicadamente:

        -- Traga-me uma cerveja fresca, se faz favor. E diga à gerência que os deixe ficar. Por mim, não me importo.

FONSECA, Manuel da. Tempo de Solidão. Lisboa: Editorial Caminho, 1985.

Fonte: Livro – Tecendo Linguagens – Língua Portuguesa – 9º ano – Ensino Fundamental – IBEP 5ª edição – São Paulo, 2018, p. 15-18.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, quais são os significados das palavras abaixo:

·        Alvacento: esbranquiçado, quase branco.

·        Cambado: gasto de forma desigual na sola e no salto.

·        Deambulante: que caminha sem direção determinada.

·        Dístico: letreiro, placa.

·        Embaciar: obscurecer, embaçar.

·        Enrodilhar: envolver.

·        Esplanada: terreno plano, largo, extenso, situado em frente a um edifício importante.

·        Estar nas tintas: assumir uma atitude de despreocupação, indiferença.

·        Melindre: sentimento de vergonha; pudor, recato, escrúpulo.

·        Soalheira: exposição aos raios solares.

02 – Em quanto tempo você acha que a história se desenvolve? Justifique sua resposta.

      A história pode ter durado entre 20 minutos e 1 hora, pois o homem desce a rua, entra no estabelecimento e logo um empregado se aproxima para falar com ele.

03 – Qual é o ambiente em que a história acontece?

      A história inicia-se em uma rua do centro da cidade e, depois, o personagem principal entra em um estabelecimento, que parece ser um restaurante ou um bar.

04 – Como podemos caracterizar o narrador de “O vagabundo na esplanada”? Justifique sua resposta.

      A narração é feita em terceira pessoa e o narrador não participa da história, é narrador-observador, mas mostra total adesão ao protagonista da história.

05 – Identifique o conflito do conto “O Vagabundo na Esplanada” e explique de que maneira ele foi solucionado. Você pode transcrever trechos do texto para justificar sua resposta.

      O conflito contrapõe o comportamento do vagabundo e a reação das pessoas que o julgam indigno de conviver com elas pela aparência e pelo comportamento que ostenta. A solução para o conflito vem do próprio vagabundo, que, em vez de se sentir constrangido com a abordagem do garçom, se porta como se coubesse a ele a decisão sobre a permanência das pessoas no local. Assim, mesmo assustado com as condições morais daquela gente, ele as perdoa e concede a elas a permissão de lá ficarem.

06 – Releia o trecho a seguir:

        “Alheado, mas condescendente, seguia pelo centro do passeio com a distraída segurança de um milionário que obviamente se está nas tintas para quem passa. Não só por educação mas também pelo simples motivo de ter mais e melhor em que pensar.

        O que não sucedia aos transeuntes. Os quais, incrédulos ao primeiro relance, se desviavam, oblíquos, deambulante causa do seu espanto. [...]”.

a)   O que esse trecho revela a respeito do personagem?

O personagem não percebe nem se incomoda com os comentários alheios a seu respeito.

b)   É possível afirmar que há ironia quando o narrador diz que o personagem tinha “mais e melhor em que pensar”. Por quê?

A ironia é do próprio narrador em relação à postura dos transeuntes. O narrador acaba tomando uma posição a favor do vagabundo ao sugerir que os outros transeuntes não tinham nada de muito importante em que pensar, além de manifestar o preconceito, o que torna o vagabundo superior em relação aos demais.

07 – No que diz respeito à descrição que o narrador faz dos transeuntes, transcreva o trecho que revela o preconceito destes em relação ao personagem.

        “Num instante, embora se desconhecessem, aliava-os a unânime má vontade contra quem tão vincadamente os afrontava em plena rua. Pronta, a vingança surgia. Falavam dos sapatos cambados, do fato de remendos, do ridículo chapéu. Consolava-os imaginar os frios, as chuvas e as fomes que o homem havia de sofrer.”

08 – Releia este outro trecho.

        “A meio da esplanada havia uma mesa livre. Com o à vontade de um frequentador habitual, o homem sentou-se.”

a)   O que o comportamento do personagem revela sobre o modo como ele mesmo se via?

O trecho revela que o personagem se via como qualquer outro frequentador da esplanada, não tendo nenhum receio de se sentar com aqueles que se julgam superiores a ele.

b)   A expressão “à vontade” é geralmente empregada como adjunto adverbial. Qual é a novidade quanto ao uso dessa expressão nesse texto?

Ela foi empregada como substantivo, para nomear os modos do personagem.

09 – No desfecho do conto, acontece a inclusão ou a exclusão do personagem? Quem é responsável por isso?

      Acontece a inclusão do personagem. O próprio vagabundo é responsável por sua inclusão, pois se considera digno de frequentar um restaurante ou bar que, aparentemente, é frequentado por pessoas de nível social diferenciado.

10 – Transcreva a afirmativa que caracteriza adequadamente o conto “O vagabundo na esplanada”.   

a)   Narrativa longa, em prosa, com muitos capítulos. Em cada capítulo, surgem personagens secundários que giram em torno de um personagem principal.

b)   Narrativa breve, em prosa. Apresenta linguagem em que estão condensadas a força da expressão e a pluralidade de significados. Permite que o leitor faça a própria interpretação dos fatos narrados.

c)   Texto poético, do tipo geralmente publicado em jornais e revistas. Mistura linguagem verbal e visual e conta uma história real, cotidiana.