terça-feira, 16 de janeiro de 2024

CRÔNICA: MINHA TERRA, MINHA CASA E MINHA GENTE - VIRIATO CORRÊA - COM GABARITO

 Crônica: Minha terra, minha casa e minha gente

              Viriato Corrêa

        PIRAPEMAS, o povoado em que eu nasci, era um dos lugarejos mais pobres e mais humildes do mundo. Ficava à margem do Itapicuru, no Maranhão, no alto da ribanceira do rio.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEip3YTi_roAjc77SbPhzPYRTFIapKl68OjBsh_gKo_CD7rFNK4Hq2w1NA1WS32bI4vKLnsVrudheHoR0aLovX-fgtdS8fvkz-fEKiGVYLb7aZIFjlECFWTFUVhljd2T_SvXt4JeJl3G1f8Z60nJHaj1cHW9g8L0wVp9xiGx2glC0nxzFK7UIuEiAnkoW2M/s1600/PIRAPEMAS.jpg


 Uma ruazinha apenas, com vinte ou trinta casas, algumas palhoças espalhadas pelos arredores e nada mais. Nem igreja, nem farmácia, nem vigário. De civilização — a escola, apenas.

    A rua e os caminhos tinham mais bichos do que gente. Criava-se tudo à solta: as galinhas, os porcos, as cabras, os carneiros e os bois.

      Vila pacata e simples de gente simples e pacata. Parecia que ali as criaturas formavam uma só família. Se alguém matava um porco, a metade do porco era para distribuir pela vizinhança. Se um morador não tinha em casa café torrado para obsequiar uma visita, mandava-o buscar, sem-cerimônia, ao vizinho.

        A melhor casa de telha era a da minha família, com muitos quartos e largo avarandado na frente e atrás. Chamavam-lhe a casa-grande por ser realmente a maior do povoado.

        Para aquela gente paupérrima, éramos ricos.

        Meu pai tinha umas duzentas cabeças de gado no campo, uma engenhoca de moer cana, uma máquina de descaroçar algodão e uma casa de negócios, em que vinham comprar moradores até de quinze ou vinte léguas distantes.

        Não havia no lugarejo ninguém mais importante do que meu pai. Era tudo: autoridade policial, juiz, conselheiro, até médico.

        A sua figura inspirava respeito; a sua presença serenava discórdias. Se havia uma desordem, mal ele chegava à desordem acabava. Bastava que desse razão a uma pessoa, para que todo mundo afirmasse que essa pessoa é que estava com a razão. Os seus conselhos faziam marido e mulher, desunidos, voltarem a viver juntos. Ninguém tomava um remédio sem lhe perguntar que remédio devia tomar.

        Era um homem inculto, mas com uma inteligência tão viva, que se acreditava ter ele cursado escolas. E, ao lado disso, uma alma aberta, franca, alegre, jovial e generosa, que fazia amigos ao primeiro contato.

        Nossa casa vivia cheia de gente. Gente da família, gente do povoado, gente de fora.

        Meus pais eram padrinhos de quase toda a meninada dos arredores e o maior prazer de minha mãe era criar.

        Se uma de suas comadres morria, deixando filhos pequeninos, ela, a pretexto de que as madrinhas devem ser segundas mães, ia buscá-los para que não morressem de abandono e de fome.

        Às vezes, pela porta adentro, nos entravam verdadeiras braçadas de fedelhos, enchendo os quartos de alaridos e de berros. E minha mãe os criava com os mesmos cuidados e os mesmos carinhos com que criava os filhos.

        Os “gaiolas” (vaporezinhos de roda que faziam a navegação do rio) paravam no povoado para se abastecer de lenha e para embarcar e desembarcar mercadorias e passageiros.

        Não sei por que, os fazendeiros do sertão, quando tinham de tomar passagem para a capital, preferiam aquele porto insignificante. Rara era a semana em que não chegava gente de fora à povoação.

        E, como a nossa casa era a maior de todas, era nela que eles se hospedavam.

        No interior do Brasil a hospitalidade é um dever sagrado que se cumpre religiosamente. Nossa casa vivia apinhada de criaturas estranhas vindas de longe.

        Às vezes, tarde da noite, ouviam-se rumores no terreiro. Eram hóspedes pedindo pousada.

        Ao hóspede que chega não se pergunta de que precisa. Quem vem de longe, através de caminhos difíceis e desertos, certamente tem cansaço e fome. Necessita de alimento e de cama.

        À nossa porta, ora à meia-noite, ora mais tarde, chegavam frequentemente dez, doze, quinze pessoas desconhecidas. A essa hora acordavam meu pai e minha mãe para mandar fazer comida para os hóspedes.

        Em certos dias, ao amanhecer, eu despertava num quarto que não era o meu e no meio de um punhado de crianças. É que nem sempre havia redes para todas as pessoas de fora. A família desalojava-se: dormiam duas ou três pessoas juntas, para que não faltasse acomodação aos estranhos.

        Em outras ocasiões, quando os hóspedes chegavam, o "gaiola" havia passado na véspera. Só havia outro, dez ou quinze dias depois.

        Dez ou quinze dias ficavam famílias inteiras em nossa casa, morando e comendo tranquilamente.

        Ao se despedirem apertavam a mão de minha mãe, apertavam a mão de meu pai, dizendo-lhes "obrigado" e nada mais.

       É que nada mais lhes era permitido. No sertão do Brasil, quem perguntar o preço da hospedagem ofende aquele que a deu.

        A hospitalidade por lá é uma religião e ninguém se furta a um dever religioso.

Viriato Corrêa. Cazuza. 27. ed. São Paulo: Nacional, 1997. p. 16-7.

Entendendo a crônica:

01 – Qual é o cenário descrito na crônica "Minha terra, minha casa e minha gente" de Viriato Corrêa?

      O cenário descrito é o povoado de PIRAPEMAS, localizado à margem do Rio Itapicuru, no Maranhão.

02 – Como era a vida no povoado de PIRAPEMAS, de acordo com a crônica?

      A vida em PIRAPEMAS era simples e pacata, com poucas casas, ausência de infraestrutura, e os habitantes viviam em harmonia, compartilhando recursos e ajudando-se mutuamente.

03 – Qual era o papel do pai do autor na comunidade de PIRAPEMAS?

      O pai do autor desempenhava múltiplos papéis na comunidade, sendo considerado uma figura de autoridade policial, juiz, conselheiro e até médico. Ele era uma pessoa respeitada e influente.

04 – Como a crônica descreve a hospitalidade na região do sertão do Brasil?

      A crônica destaca a hospitalidade como um dever sagrado cumprido religiosamente no sertão do Brasil. A casa do autor era frequentemente visitada por estranhos, e oferecer comida e abrigo a viajantes era uma prática comum.

05 – Por que os fazendeiros do sertão preferiam o porto insignificante de PIRAPEMAS para tomar passagem para a capital?

      A crônica não fornece uma explicação específica, mas sugere que os fazendeiros preferiam PIRAPEMAS devido à sua hospitalidade e à tradição de receber bem os viajantes.

06 – Como a mãe do autor demonstrava seu envolvimento com a comunidade?

      A mãe do autor era madrinha de muitas crianças da região e tinha o hábito de acolher órfãos, cuidando deles como se fossem seus próprios filhos. Ela era ativa na criação e educação das crianças da comunidade.

07 – Quais são as características da casa do autor em PIRAPEMAS?

      A casa do autor era a maior do povoado, chamada de casa-grande, com muitos quartos e uma ampla varanda. A família do autor era considerada rica pelos padrões locais, com posses como cabeças de gado, uma engenhoca de moer cana e uma máquina de descaroçar algodão.

 

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