Texto: Eu odeio a internet
A Internet é a propagação
indiscriminada da besteira
Jerônimo Teixeira
“Jamais joguei paciência com um baralho
de verdade. Se tentasse, nem saberia arranjar as cartas. Dei-me conta disso ao
receber, tempos atrás, um e-mail com o título “Você é escravo da tecnologia
quando…”. A paciência sem baralho era apenas um dos itens de uma longa lista, e
não o mais absurdo. Em todas as situações, havia esse efeito de desproporção e
despropósito: a mais alta tecnologia mobilizada para o mais estúpido dos fins
(se o leitor já jogou paciência no Windows, sabe do que falo). Quis recuperar o
e-mail para citá-lo mais extensamente, mas não consegui: perdeu-se no meio de
outras tantas e piores piadas, de correntes, de simpatias, de pirâmides, de
abaixo-assinados e de inúmeras mensagens que eu deveria remeter a mais 100
pessoas para ganhar ações da Microsoft ou para salvar aquela menina de 8 anos
que sofre de leucemia.
A anedota resume meu recado: a Internet
é a propagação indiscriminada da besteira. Alguém dirá que, com essa crítica à
cyberabobrinha, estou abordando o problema pela periferia. Ocorre que os gurus
da nova era – Nicholas Negroponte, do MIT, para ficar com um exemplo célebre –
afirmam, com razão, que a internet não tem centro.
Surge daí outra grande bobagem que se
tem divulgado não só por fibra ótica, mas também por meio do velho e sujo papel
de imprensa: a Internet democratiza o conhecimento. Se o leitor me perdoa a
etimologia rasteira, direi que na verdade a rede tem muito demos para pouco
cratos. Que poder efetivo uma página pessoal representa para seu autor? Na
falta de um centro, somos todos periferia.
A pretensa “teia do conhecimento”
(expressão de Negroponte no livro A Vida Digital) é também um amontoado caótico
da ignorância. Substância e trivialidade já conviviam no jornal, que na mesma
edição pode abrigar o horóscopo prevendo um dia auspicioso para os nativos de
Virgem e o artigo de fundo de um cientista sobre o Projeto Genoma. A dispersão
da Internet, porém, anula uma dimensão que o jornal abrigou em tempos
pretéritos: o confronto. Israelenses e palestinos, petistas e tucanos,
pornógrafos e evangélicos, gremistas e colorados, punks e skin-heads – todos
podem ter seu site. O internauta surfa – isto é, passa pela superfície – por
todos sem que isso implique o mínimo compromisso ou mesmo interesse. A
“harmonia mundial” (Negroponte, mais uma vez) que essa diversidade sugere é
enganosa.
Podemos jogar paciência sem baralho,
mas ainda vivemos em um mundo prosaicamente físico no qual o hardware para
abrigar nosso software segue inacessível para a maioria. No mínimo, ainda é
cedo para se falar em uma revolução sem precedentes. Gutenberg apresentou sua
famosa Bíblia em 1455, mas a imprensa como instituição pública levaria séculos
para se desenvolver.
Querem nos fazer crer que a velocidade
das mudanças nunca foi tão rápida que agora o segundo vale pelo século. Nem
mesmo essa sensação é nova: Flaubert, já no século XIX, dizia-se incapaz de
entender a paisagem que via da janela de um trem. As novas tecnologias, por
mais sofisticadas que sejam, não produzem mais tamanha perplexidade. A
velocidade traduz-se simplesmente na histeria do upgrade – todos temos aquele
amigo que nos humilha semanalmente com o último e mais rápido processador, a
maior memória RAM, o modem mais veloz, o HD de maior capacidade. E que no
entanto faz downloads cada vez mais demorados.
Uma objeção previsível é a de que,
afinal, eu uso a Internet. O presente texto foi produzido em Porto Alegre, onde
moro, e transmitido via e-mail para a redação da SUPER, em São Paulo. E estou,
admito, muito feliz de não ter que sair de casa em um dia frio para enfrentar
fila nos Correios. Ainda assim, sustento o título aí em cima. Muita gente vai
de carro todos os dias para o trabalho, mesmo detestando dirigir.
Fico com as velhas bibliotecas de
papel, cujo autoritarismo secular pelo menos não vende ilusões de igualdade
tecnopopulista.
TEIXEIRA,
Jerônimo. In. Superinteressante, São Paulo: Abril, ago. 2000.
Entendendo o texto:
01 – Que elementos permitem
afirmar que o texto de Jerônimo Teixeira é dissertativo-argumentativo?
Para justificar
seu ponto de vista sobre a internet, o autor argumenta por meio de críticas,
cita fontes, faz comparações, opõe elementos, enumera.
02 – Qual é a tese defendida
pelo argumentador?
Apesar de todos os benefícios, pode-se
viver sem a internet, que não é essencial nem democrática.
03 – Para desenvolver sua
tese, o autor utiliza:
a)
Comparação: “Muita
gente vai de carro (...) mesmo detestando dirigir”.
b)
Crítica: “A internet
é a propagação indiscriminada da besteira.”
c)
Citação: “A harmonia
mundial (Negroponte, mais uma vez) (...) enganosa”.
d)
Oposição: “Israelenses
e Palestinos, (...) punks e Skin-Heads”.
Encontre, no texto, um exemplo de cada um
desses recursos.
04 – O texto “Eu odeio a
Internet” é predominantemente objetivo ou subjetivo? Justifique sua resposta.
Predominantemente
subjetivo. O autor privilegia a pessoalidade, escrevendo em 1ª pessoa e
recorrendo ao humor e à adjetivação para defender sua opinião a respeito do
assunto tratado.
05 – O humor foi um dos
recursos usados para construir esse texto. O autor criou um neologismo
divertido, além de jogos de palavras que deixaram a linguagem descontraída.
Identifique, no texto, esse neologismo e uma construção em que se perceba
subjetividade.
Neologismo: “Cyberabobrinha”. Construção:
“Se o leitor me perdoa a etimologia rasteira (...) muito demos para pouco
cratos”.
06 – Você acredita que o
autor foi persuasivo em seu texto? Justifique sua resposta.
Resposta pessoal
do aluno.