Artigo de Opinião: O PRECONCEITO NOSSO DE
CADA DIA
JAIME PINSKI
Preconceito, nunca. Temos apenas opiniões bem diferentes sobre as coisas.
Preconceito é o outro que tem...
Mas, por falar nisso, já observou o leitor como temos o fácil hábito de
generalizar (e prova disso é a generalização acima) sobre tudo e todos? Falamos
sobre “as mulheres”, a partir de experiências pessoais; conhecemos os
“políticos”, após acompanhar a carreira de dois ou três; sabemos tudo sobre os
“militares” porque o síndico do nosso prédio é um sargento aposentado;
discorremos sobre homossexuais (bando de sem-vergonhas), muçulmanos (gentinha
atrasada), sogras (feliz foi Adão, que não tinha sogra nem caminhão), advogados
(todos ladrões), professores (pobres coitados), palmeirense (palmeirense é
aquele que não tem classe para ser são-paulino nem coragem para ser
corintiano), motoristas de caminhão(grossos), peões de obras (ignorantes),
sócios do Paulistano (metidos a besta), dançarinos (veados), enfim, sobre tudo.
Mas discorremos de maneira especial sobre raças e nacionalidades e, por
extensão, sobre atributos inerentes a pessoas nascidas em determinados Estados.
Afinal, todos sabemos (sabemos?) que os franceses não tomam banho; os mexicanos
são preguiçosos; os suíços, pontuais; os italianos, ruidosos; os judeus,
argentários; os árabes, desonestos; os japoneses, trabalhadores, e por aí
afora. Sabemos também que cariocas são folgados; baianos, festeiros; nordestinos,
pobres; mineiros, diplomatas, etc. Sabemos ainda que o negro não tem o mesmo
potencial que o branco, a não ser em algumas atividades bem definidas como o
esporte, a música, a dança e algumas outras que exigem mais o corpo e menos da
inteligência. Quando nos deparamos com uma exceção, admitimos que alguém possa
ser limpo, apesar de francês; trabalhador, apesar de mexicano; discreto, apesar
de italiano; honesto, apesar de árabe; desprendido do dinheiro, apesar de
judeu; preguiçoso, apesar de japonês, e também por aí afora. Mas admitimos com
relutância e em caráter totalmente excepcional.
O mecanismo funciona mais ou menos assim: estabelecemos uma expectativa de
comportamento coletivo (nacional, regional, racial), mesmo sem conhecermos,
pessoalmente, muitos ou mesmo nenhum membro do grupo sobre o qual pontificamos.
Sabemos (sabemos?) que os mexicanos são preguiçosos porque eles aparecem sempre
dormindo embaixo dos seus enormes chapelões enquanto os diligentes americanos
cuidam do gado e matam bandidos nos faroestes. Para comprovar que os italianos
são ruidosos achamos o bastante frequentar uma cantina do Bexiga. Falamos sobre
a inferioridade do negro a partir da observação empírica de sua condição
socioeconômica. E achamos que as praias do Rio de Janeiro cheias durante os
dias da semana são prova do caráter folgado do cidadão carioca. Não nos detemos
em analisar a questão um pouco mais a fundo. Não nos interessa estudar o papel
que a escravidão teve na formação histórica de nossos negros. Pouco atentamos para
a realidade social do povo mexicano e de como ele aparece estereotipado no
cinema hollywoodiano. Nada disso. O importante é reproduzir de forma acrítica e
boçal os preconceitos que nos são passados por piadinhas, por tradição
familiar, pela religião, pela necessidade de compensar nossa real inferioridade
individual por uma pretensa superioridade coletiva que assumimos ao carimbar “o
outro” com a marca de qualquer inferioridade.
Temos pesos, medidas e até um vocabulário diferente para nos referirmos ao
“nosso” e ao do “outro”, numa atitude que, mais do que autocondescendência, não
passa de preconceito puro. Por exemplo, a nossa é religião, a do outro é seita;
nós temos fervor religioso, eles são fanáticos; nós acreditamos na lei de Deus
(o nosso sempre em maiúsculas), eles são fundamentalistas; nós temos hábitos,
eles vícios; nós cometemos excessos compreensíveis, eles são um caso perdido;
jogamos muito melhor, o adversário tem é sorte; e, finalmente, não temos
preconceito, apenas opinião formada sobre as coisas.
Ou deveríamos ser como esses intelectuais que para afirmar qualquer coisa acham
necessário estudar e observar atentamente? Observar, estudar e agir respeitando
as diferenças é o que se espera de cidadãos que acreditam na democracia e, de
fato, lutam por um mundo mais justo. De nada adianta praticar nossa indignação
moral diante da televisão, protestando contra limpezas raciais e discriminações
pelo mundo afora, se não ficarmos atentos ao preconceito nosso de cada dia.
PINSKI, Jaime. O Estado de São Paulo,
20 maio 1993.
Entendendo
o texto:
1 –
Observe o emprego sistemático do “nós”. Qual é a função dessa palavra no
texto?
Nós –
ele se coloca entre as pessoas preconceituosas.
2 – Nos
três primeiros parágrafos, ele descreve “nossas opiniões”, enumerando uma série
de exemplos populares. É tudo invenção dele ou realmente “os outros” dizem
essas coisas? Você já ouviu afirmações desse tipo? Por que motivo ele faz essa
extensa enumeração? Um ou dois exemplos não seriam suficientes?
Realmente dizem. Certamente os alunos já ouviram afirmações semelhantes.
Ele enumera essas afirmações para nós percebermos que por mais que digamos que
não somos preconceituosos o somos. Se ele diminuísse a enumeração das
afirmações preconceituosas não teria o mesmo efeito sobre o leitor.
3 – A
partir do quarto parágrafo, há uma mudança no rumo do texto. O que muda?
Ele passa a analisar o mecanismo do preconceito.
4 – No
último parágrafo, o que ele conclui?
É preciso
ter consciência dos nossos preconceitos para superá-los.
5 – Pelo
conjunto do texto, você diria que se trata de uma lição de moral, uma “bronca”
no leitor ou, de fato, de um texto argumentativo? Qual é a diferença?
De um texto argumentativo, pois apresenta fatos, argumenta e sustenta aquilo
que apresentou.
-Lição de moral – simplesmente apresenta o que deveríamos fazer e
como deveria ser feito. Geralmente a lição de moral vem na forma de enunciados
categóricos sem sustentação em argumentos.
- Bronca – simplesmente uma chamada de atenção, uma repreensão
sem maiores argumentações.