Crônica: Um lugar ao sol
Érico Veríssimo Entraram na casa vizinha.
Fernanda sentia sempre uma opressão
quando se via na sala da casa de D. Magnólia. Tudo ali tinha um ar tão triste,
tão sombrio, tão doentio... Os móveis eram escuros. A Bíblia encadernada de
couro negro em cima da mesa. (D. Magnólia era metodista.) Quadros nas paredes
com legendas tiradas das Escrituras. Um cheiro de defumação. E – o mais
horrível de tudo – no canto da sala, a figura daquele homem sentado, vencido,
daquele homem enorme, magro, amarelo, roído pelo câncer.
Era Orozimbo, o marido de D. Mag.
Quando lhe falava, Fernanda tinha a impressão desagradável de que estava
falando com um morto.
A luz da sala estava apagada. Entrava
pelas janelas uma fraca claridade que vinha das lâmpadas da rua.
Fernanda sentiu logo a presença de
Orozimbo. Cumprimentou:
-- Boa noite, seu Zimbo!
E a voz dele, fraca, doente, mas mesmo
assim profunda, incoerentemente musical, respondeu:
-- Boa noite!
Entraram no quarto de Lu. D. Mag
acendeu a luz e retirou-se, fechando a porta. Fernanda viu a menina a chorar
estendida na cama, de borco, com a cabeça mergulhada no travesseiro.
Ajoelhou-se junto dela, passou-lhe a mão pelos cabelos.
-- Então, bobinha. Por que é que está
chorando?
Lu soluçava sem responder. E depois,
como Fernanda insistisse muito na pergunta, explodiu:
-- Eu... eu... queria... fazer... uma
fantasia... e... e... essa besta não quer....
-- Não diga assim, Lu. Ela é sua mãe.
-- Besta! Isso que ela é.
D. Mag chorava no corredor. Por que
Deus a castigava assim, dando-lhe uma filha desobediente e blasfema? Não era
ela uma boa cristã? Não ia todos os domingos ao culto? Não lhe bastavam os
trabalhos que passara com o marido nos primeiros tempos do casamento, quando
ele andava na pândega com outras mulheres? Não chegava o que ela sofria agora
que ele estava doente e vivia ali no canto, derrotado, a falar na morte, a
queixar-se da vida, a atormentá-la a todo o instante? Não bastava a trabalheira
que ela tinha de pedalar a Singer todo o dia para ganhar dinheiro para o
sustento da casa? Para ganhar dinheiro para dar vestidos e educação àquela
ingrata?
Fernanda passava a mão pela cabeça de
Lu e lhe dizia de mansinho:
-- Não vê que não é direito você ir ao
baile de carnaval quando seu pai está tão doente? Não vê que sua gente é pobre
e que você precisa ter muito juízo?
Lu explodiu de novo, sentando-se na
cama:
-- Eu tenho ódio dela. Tenho ódio dele.
Dos dois!
Fernanda se pôs de pé.
-- Você não sabe o que está dizendo!
Ódio de seu pai, de sua mãe?
Lu tornou a cair de borco. Sua voz saía
abafada debaixo do travesseiro.
-- Ódio, ódio, ódio.
Sim: tinha raiva dos pais. Porque eles
não queriam que ela fosse feliz, que tivesse um namorado, que frequentasse os
cinemas, os bailes. Que culpa tinha de ter nascido pobre? Que culpa tinha da
doença do pai ou das ideias religiosas da mãe? Era moça, queria aproveitar a
vida. Um dia a velhice chegava e tudo ficava perdido para sempre. Não havia
moças que tinham automóveis, que cantavam no rádio, que viajavam, que dançavam,
que possuíam vestidos bonitos? Então? Ela era acaso aleijada? Não. Era um
monstro de feia? Também não. Por que não havia de ser feliz? Oh! Deus podia
matá-la, podia castiga-la mas ela não sufocaria por mais tempo aquela raiva.
-- Vamos – murmurou Fernanda – faça uma
forcinha. Pelo menos finja. Não vê que sua mãe sofre, seu pai sofre?
Lu resistia. Obstinava-se. Havia de
fazer a fantasia, havia de ir aos bailes do Cassino, nem que para isso tivesse
de fugir.
Fernanda por fim cansou. Sentou-se na
cama, passou a mão pela testa. Ela trazia um filho no ventre. Talvez uma filha.
Hoje fazia parte de seu ser: amanhã poderia haver uma separação tremenda como a
que ela estava vendo... Teria o mundo entre ela e a sua criaturinha. Um milhão
de desentendimentos, de conflitos, de interesses em choque....
-- Então Lu, não quer ser boazinha?
Lu ergueu-se. Tinha uns olhos verdes
muito grandes.
Era fina de corpo e suas mãos, longas e
brancas.
Fernanda contemplou-a com simpatia e pena.
Lu tomou-lhe das mãos e, com olhos vermelhos de chorar, perguntou:
-- Tu achas que eu sou má? Achas? Será
que nem tu, nem tu me compreendes?
Encostou a cabeça no peito da outra e
desatou de novo o choro.
Cinco minutos depois Fernanda saiu do
quarto.
D. Mag esperava-a no meio da sala. Nos
seus olhos espantados havia uma interrogação ansiosa. Apesar de estarem na
penumbra, Fernanda viu a dor que os velava.
Aproximou-se dela, bateu-lhe no ombro.
-- Não faça caso, D. Mag... Isso passa.
Amanhã quando ela voltar da escola e estiver mais calma, eu passo um sermão
nela. Por hoje, lhe peço: não diga mais nada. Deixe... Essas criaturinhas são
assim. Quanto mais confiança se dá, mais elas incomodam...
Enquanto falava, Fernanda ouvia,
horrorizada, a respiração arquejante do doente no seu canto escuro.
-- Bom, deixe ajudar a mamãe a lavar os
pratos.
Deu boa-noite e voltou para casa.
Um lugar ao sol. Rio
de Janeiro, Globo, 1978.
Fonte: Português – Linguagem &
Participação, 8ª Série – MESQUITA, Roberto Melo / Martos, Cloder Rivas – 2ª
edição – 1999 – Ed. Saraiva, p. 44-7.
Fonte da imagem: https://www.google.com/url?sa=i&url=https%3A%2F%2Fcromatas.com%2Fcontos-2%2Fa-lanpada%2F&psig=AOvVaw1b_1R9J3QD5FgZseUpYodX&ust=1606600912025000&source=images&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCICK-_vco-0CFQAAAAAdAAAAABAK
Entendendo a crônica:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Metodista: seguidor de seita anglicana, caracterizada por grande
austeridade.
·
Pândega: farra, folia.
·
Singer: marca de máquina de costura.
·
Incoerentemente: contraditoriamente.
·
Obstinar-se: aferrar-se a uma ideia, teimar.
·
De
borco (ô): de bruços.
·
Velava: encobria, tornava sombrio.
·
Blasfema: pessoa que diz blasfêmias (ofensas contra Deus ou contra
pessoas ou coisas respeitáveis).
·
Arquejante: ofegante.
02 – Qual é o cenário do
desentendimento?
É uma casa de
família em que a mãe é metodista, o pai sofre de câncer e a filha não aceita
sua posição social.
03 – Qual o assunto do
texto?
Uma garota, cuja
mãe é religiosa e o pai está doente, revolta-se com a mãe que contraria seus
desejos de diversão e de liberdade.
04 – Como poderíamos
caracterizar Lu?
Lu é adolescente, seus olhos são verdes e
muitos grandes, seu corpo é fino e suas mãos, longas e brancas. Quer aproveitar
a vida: passear, sair, ir ao cinema, fazer coisas que pessoas de sua idade
fazem.
05 – Qual é o conflito presente
no texto?
É o conflito
entre pais e filhos e, mais profundamente, o conflito entre o prazer e a morte.
06 – Como se sente D. Mag em
relação à filha?
D. Mag sente que, apesar de seus
esforços, Deus a castigou.
07 – Como se sente Lu em relação
à família? Justifique com palavras do texto.
Lu não se sente
parte da família e tem ódio do pai e da mãe. “—Eu tenho ódio dela. Tenho ódio
dele. Dos dois!”; “Ódio, ódio, ódio.”
08 – Que concepção de
felicidade tem Lu?
Lu quer
divertir-se, ser feliz, namorar, viajar. Chamar a atenção do aluno para o fato
de que Lu, no afã de aproveitar a vida, pensa somente nas coisas mais
prazerosas que ela pode lhe oferecer.
09 – Que papel representa
Fernanda nesse conflito?
Fernanda é a
testemunha do drama familiar, amiga e conselheira de Lu.
10 – Por que Fernanda se
condói com o drama de Lu?
Como está
grávida, ela se preocupa com as relações que terá, no futuro, com a filha ou
filho que irá nascer.
11 – O texto é narrado em
terceira pessoa, por um narrador onisciente. Justifique a afirmação usando
elementos do texto.
O autor conhece
os sentimentos e pensamentos das personagens. “Fernanda sentia sempre uma
opressão quando se via na sala da casa de D. Magnólia.” / “D. Mag chorava no
corredor. Por que Deus a castigava assim, dando-lhe uma filha desobediente e
blasfema?”
12 – Justifique o título do
texto.
Resposta pessoa
do aluno.