Conto: Herói
Domingos Pellegrini
Meio século depois que, aos nove anos,
meu avô João me levou à primeira pescaria, levo meu neto Caetano de quatro
anos. Fui de trem, ele vai de cadeirinha, no banco traseiro do carro. Fui a um
rio, ele vai a um pesque-pague. Pesquei com o vô num barranco, agora pescamos
sentados em banco à beira da lagoa.
Fiz em casa a massa para a isca,
batendo no liquidificador ração de gato, colorau e farinha de trigo, depois
sovando com ovo e missô, fica uma massa vermelha e cheirosa, muito mais
atraente para os peixes do que a massa escura do pesqueiro. Logo pego a
primeira tilápia, para mostrar a Caetano como se faz.
Boto a tilápia no samburá, boto nova
isca no anzol, boto a vara nas mãos dele. Ele olha a boia, enquanto digo que
deve puxar a vara só quando ela afundar ou correr. A boia tremelica, ele puxa,
nada pega, repito as instruções. Ele olha a boia, ela trisca, tremelica, sacode
e afunda, ele ainda olhando fascinado. Grito para puxar a vara, ele puxa, e
então me revejo no momento inesquecível, o peixe dá vida puxando para lá, o
menino puxando para cá, a vara curvando e vibrando com o menino.
Digo para ele cansar a tilápia, mas
que, ele puxa até ela bater na beirada, então pego a linha e tiro o bicho da
água. Agachamos olhando o peixe espantado na grama, enquanto o menino se
espanta do próprio poderio, até levantar gritando:
— Peguei, vô, peguei!
Vou ensinando a botar isca e lançar a
vara, coisas que ele faz mais ou menos, como também não atina com a hora certa
de fisgar, mas puxar a vara, ah, puxa que só. Quando tiramos o terceiro peixe,
uma mulher fala que ele é um grande pescador, e ele me olha orgulhoso. Depois
da quarta tilápia, vamos ao bar para ele pegar suco de morango, e pergunto se
quer fazer xixi, diz que não, quer pescar.
Voltamos à lagoa, e, mais quatro
tilápias depois, pergunto se quer fazer xixi, ele diz que não, quer mais suco
de morango. Dou a ficha, ele vai sozinho ao bar, volta homenzinho com o suco.
Uma menina vem admirar quando ele puxa mais uma tilápia, e depois vou ver as
varas de espera que deixei numa lagoa maior. Quando volto, cadê ele?
Vou gritando seu nome, olhando a
beirada das lagoas, a água, meu Deus, a água. Vou ao bar, grito Caetano, ele
responde lá do sanitário: tô aqui, vô! Volto a lagoa, e logo ele vem, as calças
molhadas de xixi:
— Não deu tempo, vô.
Vamos ao carro trocar sua roupa, a
menina olhando de longe, ele se envergonha, diz que não quer mais pescar. Digo
que então deve voltar à lagoa, sim, para dar de presente à menina nossa massa
tão pescadeira. Ele diz que não, emburrado. Digo que ele deve, porque é assim
que fazem os heróis.
— Todo herói tem sua fraqueza. O
Super-Homem enfraquece perto dum a pedra verde chamada kriptonita. Sansão
ficava fraco quando cortava o cabelo. O Homem-Aranha às vezes escorrega. Todo
herói tem sua fraqueza.
Ele pensa, pega a bola de massa, vai
dar à menina. Vamos ver as varas de espera, e lá está um pacu, que ele ajuda
puxar rodando o molinete, todo feliz. Digo que é seu primeiro peixe grande, que
está virando um grande pescador, e ele passa a caminhar com passos maiores.
Passando pela lagoa menor, a mãe da
menina grita agradecendo, já pescaram três tilápias com nossa massa. A menina
vem correndo e lhe dá uma bala, uma simples bala que ele vai levando no carro
como se fosse uma medalha. Dorme. Em casa, deixo que continue dormindo no carro
enquanto guardo as varas e os peixes. Depois cutuco para acordar, ele olha a
bala na mão, vai correndo contar:
— Peguei oito peixes, vó! E ganhei uma
bala!
Um herói.
Domingos Pellegrini.
A caneta e o anzol: histórias de pescaria. São Paulo: Geração Editorial. 2012.
p. 91-4.
Fonte: Língua Portuguesa – Caminhar e
transformar – Aos finais do ensino fundamental – 1ª edição – São Paulo – FTD,
2013. p. 88-92.
Entendendo o conto:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Molinete: carretilha com manivela, fixada no cabo de uma vara de
pescar.
·
Samburá: cesto de bojo largo e boca estreita, usado pelos pescadores
para guardar peixes e outros apetrechos.
·
Triscar: mexer-se, mover-se.
02 – Conte, de maneira
breve, os fatos narrados no conto.
O avô e o neto
vão a um pesque-pague para a primeira pescaria do neto. O neto se recusa a ir
fazer xixi. Depois de pescar tilápias e beber dois sucos de morango, o neto faz
xixi nas calças e fica muito envergonhado. O avô o incentiva a enfrentar sua
vergonha e entregar a massa pescadeira para uma garota que também estava
pescando. O menino pega um pacu, ganha uma bala da menina e volta feliz e mais
maduro para casa.
03 – Quem participa desse
conto?
O avô, o neto, a menina e sua mãe.
04 – Em que lugar se passa o
conto?
A história
narrada no conto se passa no pesque-pague.
05 – O tempo em que se passa
esse conto é delimitado?
Sim. O conto
durou algumas horas.
06 – Aquele que conta a
história é chamado de narrador. Há narrador nesse conto? Comprove sua resposta
com um trecho do texto.
Logo no início do
texto notamos a presença do narrador, como pode ser visto em: “Meio século
depois que, aos nove anos, meu avô João me levou à primeira pescaria, levo meu
neto Caetano de quatro anos”.
07 – Leia.
O narrador-observador,
ou narrador em 3ª pessoa, se posiciona fora dos fatos narrados.
O narrador-personagem, ou narrador em 1ª pessoa, é aquele que participa diretamente da história como qualquer personagem.
Que tipo de narrador foi escolhido pelo autor do conto “Herói”?
O narrador em 1ª
pessoa – narrador-personagem.
08 – Nesse conto são usados
o discurso direto e o discurso indireto. Escreva DD para discurso direto e DI
para discurso indireto.
(DD) “— Peguei oito peixes, vó! E
ganhei uma bala!”
(DI) “[...] pergunto se quer fazer
xixi, ele diz que não, quer mais suco de morango”.
(DD) “— Não deu tempo, vô.”
(DI) “[...] um mulher fala que ele é
um grande pescador [...]”.
09 – Leia.
São elementos de uma narrativa: o enredo,
o narrador, os personagens, o espaço e o tempo.
Encontre no conto estas
informações sobre o enredo.
a) Em que parágrafo localizamos a apresentação dos personagens e das primeiras ações do enredo?
No primeiro parágrafo.
b) Qual é o momento de maior tensão da narrativa?
O momento em que o avô não sabe onde o neto está. O menino faz xixi
nas calças e não quer mais pescar, porque supõe que uma menina viu o incidente.
c) Como o conflito é resolvido nesse conto?
O avô conversa com o neto e o convence a enfrentar sua vergonha:
levar a massa para a menina e pegar o último peixe.
10 – Releia este trecho.
[...]
Quando volto, cadê ele?
Vou gritando seu nome, olhando a
beirada das lagoas. A água, meu Deus, a água [...]. O
que o avô imaginou que poderia ter acontecido ao neto?
Ele pensou que o
neto caíra em uma das lagoas e que poderia ter se afogado.
11 – No início do conto, o
que o avô queria ensinar ao neto?
O avô queria
ensinar o neto a pescar.
12 – Ao final do conto, o
avô ensinou mais do que pretendia no início. O que o neto aprendeu com o avô na
pescaria?
O neto aprendeu a
enfrentar um problema e não só a pescar.
13 – Discuta com seus
colegas e professor. Por que o conto recebeu o título de “Herói”?
Resposta pessoal
do aluno. Sugestão: A fraqueza do menino foi ter feito xixi nas calças. E tal
qual um herói de quadrinhos, ele enfrentou sua fraqueza e foi até a menina.