Relato de Memória: Macambœzio
Willian Bonner
Eu
tinha seis anos e uma timidez paralisante. Morava no Tatuapé e era alfabetizado na Penha, na zona leste de São Paulo.
Ia e voltava num ônibus escolar, daqueles que tinham uma porta só, na frente,
ao lado do motor barulhento. Não os vejo mais nas ruas. Foram fracionados em
vans coreanas.
Num
trajeto de ida, eu já estava num banco, quieto como uma ostra, quando entrou no
ônibus um garoto branquinho e sardento, do meu tamanho. Sentou-se ao meu lado e
começou a tagarelar. Contou uma piada e eu sorri. Contou outra, sorri de novo.
Contou uma terceira piada que eu nem ouvi, enquanto revirava a memória, à
procura de algo engraçado para retribuir. Ele terminou a terceira história e eu
emendei, orgulhoso, o que me ocorreu de mais hilariante. Tinha ouvido de minha
irmã mais velha:
—
Meu amor, minha vida, minha privada entupida!
O
garoto ergueu as sobrancelhas, arregalou os olhos e levou uma das mãos à boca.
Ele,
escandalizado. Eu, petrificado. O ronco do ônibus, amplificado, ensurdecedor.
—
Eu vou contar para a Diretora que você disse isso!
Entrei
em pânico. Ele notou.
—
Se você não me der uma bala eu vou contar para a Diretora! — ameaçou.
A
chantagem foi enfática e imediata. Eu não tinha a bala. Nem o dinheiro. Prometi
entregar o produto extorquido no dia seguinte. E cumpri. Fiz isso mais vezes,
nos dois ou três dias que vieram depois.
Mas,
em casa, à noite, aos olhos de meu pai, minha introspecção tornou-se um
mistério que nem a timidez explicava. Eu não contei nada, constrangido com a
barbaridade que tinha proferido a um colega. E das consequências desastrosas
que aquilo teria se chegasse aos ouvidos da Diretora. Meu pai:
—
Cuco (é como me chama), você anda meio macambúzio (é como se refere ao
sentimento de tristeza). O que aconteceu?
Por
vergonha, tentei disfarçar. Mas ele insistiu e eu contei. Foi a primeira vez na
vida em que experimentei a sensação física de “botar os demônios pra fora”. No
dia seguinte, quando o ônibus da escola se aproximou da casa do menino
chantageador, não me vieram a taquicardia, a angústia. Ao me estender a mão, em
cobrança da bala extorquida, ele ouviu meu primeiro discurso de improviso. Duas
frases, apenas:
—
Meu pai me disse que hoje não tem bala. E que eu e você vamos contar tudo isso
para a Diretora.
A
extorsão acabou. E começou um novo ciclo de minha infância. Todos os que
ouviram essa história, nos últimos 40 anos, dividem a perplexidade entre minha
ingenuidade e a precocidade do menino chantagista.
Para
mim, hoje, pai de três crianças, o mais relevante ainda é o olhar de meu pai.
(William Bonner. In: Luís
Colombini. Aprendi com meu pai. São Paulo: Saraiva. p. 235.)
Entendendo
o texto
01. O texto lido é o relato de um episódio vivido pelo
narrador.
a.
Em que fase da vida
do narrador o episódio ocorreu?
Na
infância.
b.
Em que cidade ele
aconteceu?
Em São
Paulo.
c.
Onde se passaram os
eventos que fizeram parte do episódio?
No ônibus escolar e na casa do narrador.
02. Releia estes trechos do texto:
I. “Morava no Tatuapé, [...] Ia e voltava num
ônibus escolar”
II. “Não os vejo mais nas ruas.”
III. “Contou uma piada e eu sorri.”
IV. “ eu emendei, orgulhoso, o que me
ocorreu de mais hilariante. Tinha ouvido de minha irmã mais velha”
V. “Eu vou contar para a Diretora”
VI. “Consequências desastrosas que
aquilo teria se chegasse aos ouvidos da Diretora”
Indique, em seu caderno, o trecho em
que a(s) forma(s) verbal(is) destacada(s) se refere(m):
IV a. a uma ação passada, ocorrida antes de outra, também passada;
III e IV b. a ações começadas
e terminadas pontualmente no passado;
V. c. a uma ação futura;
VI. d. a uma ação que depende do
cumprimento de uma condição;
II e. a uma
ação no presente;
I f. a ações
passadas que ocorreram durante um período mais longo de tempo.
03. Na fala do pai do narrador que é reproduzida no
relato, há dois trechos que estão entre parênteses. Veja:
“‒
Cuco (é como me chama), você anda meio macambúzio (é como se refere ao
sentimento de tristeza). O que aconteceu?”
a. Quais formas verbais indicam que esses trechos
estão no presente, em relação ao narrador? é, chama,
refere explicar o sentido de termos que ele julga serem desconhecidos.
b. Qual a função desses comentários do narrador, no
relato? dos leitores: seu apelido e uma palavra pouco
usada atualmente.
c. Levante hipóteses: Por que essas afirmações se
referem ao presente e não ao passado?
Porque
provavelmente, quando o autor escreveu o relato, o pai ainda o chamava pelo
apelido e ainda costumava utilizar a palavra macambúzio.
04. O relato em estudo foi escrito em uma linguagem de
acordo com a norma-padrão, mas, em alguns momentos, o narrador procura se
aproximar do interlocutor, lançando mão de determinados recursos. Identifique,
nos trechos abaixo, a estratégia utilizada pelo autor para se aproximar de seus
leitores.
a.
“Ia e voltava num
ônibus escolar, daqueles que tinham uma porta só, na frente, ao lado do motor
barulhento.”
Por meio do uso do
termo ônibus que supõe ser do conhecimento do leitor, o narrador faz uma
referência a um modelo daqueles que tinham uma porta só, na frente, ao lado do
motor barulhento.
b.
“eu já estava num
banco, quieto como uma ostra” Ao se comparar a uma ostra, o narrador faz uma
espécie de confissão ao leitor, ao mesmo tempo que procura criar um efeito de
humor pela comparação inusitada.
c.
“começou a
tagarelar”
A
palavra tagarelar remete a um contexto informal.
05. Releia este trecho:
Foi a primeira vez na vida em que
experimentei a sensação física de “botar os demônios pra fora”.
Trata-se de
uma expressão que foi utilizada em sentido figurado e que é própria de outros
contextos, em geral na descriação de situações dramáticas. No relato em estudo,
a situação é relativamente pouco significativa, mas dramática do ponto de vista
do narrador quando criança, dada a sua ingenuidade. Daí a adequação do uso das
aspas.
Levante hipóteses: Por que a expressão botar
os demônios pra fora está entre aspas?
06. O penúltimo parágrafo do texto se inicia com a
afirmação “A extorsão acabou”. Discuta com os colegas e o professor e levante
hipóteses: O que fez com que a chantagem tivesse fim?
Os dois
meninos podem ter ido conversar com a diretora, ou o outro menino, com medo da
diretora, se sentiu ameaçado e parou de fazer chantagem.
07. O texto lido foi extraído de um livro intitulado Aprendi
com meu pai. Discuta com os colegas e o professor: O que o narrador desse
relato aprendeu com o pai?
Sugestões:
Aprender a importância de falar sempre a verdade; a ter coragem para enfrentar
as consequências dos atos praticados; a tomar cuidado para não se revelar a
pessoas desconhecidas.