ARTIGO DE OPINIÃO: O naufrágio de muitos internautas
Mario Sergio Cortella
Há mais de um século, o francês Júlio
Verne publicou uma de suas mais encantadoras e assustadoras obras, "Vinte
Mil Léguas Submarinas". Na época do lançamento, 1870, a maior parte das
pessoas que tinham acesso a livros dominava minimamente o latim, seja por ser
disciplina constante do currículo escolar em muitos países seja por interesses
específicos. Por isso não ficou estranho que o romancista tenha chamado de Nemo
ao enigmático capitão do Nautilus. No correr dos últimos 130 anos, porém, o
latim, que há alguns séculos perdera seus falantes, perdeu a maior parcela dos
seus conhecedores e, por consequência, no Capitão Ninguém (traduzindo para o
português) desfez-se parte da aura misteriosa.
Restou, no entanto, para além da força literária dessa precursora obra de
ficção científica, um caráter premonitório: a possibilidade de as pessoas se
extraviarem nas novas profundezas abissais, embarcando, agora, não mais no
Nautilus, mas, isso sim, em um computador, conduzidas, mais uma vez, por
Ninguém.
Ora, a cada dia fala-se, mais e mais,
sobre a triunfal entrada da humanidade na era do conhecimento; exalta-se a
capacidade humana de estar vivendo, a partir deste momento, um período no qual
o conhecimento será a principal riqueza. Tudo é fonte para o conhecimento, e a
principal delas seria a Internet.
Devagar com isso! Não se deve confundir
informação com conhecimento. A Internet, entre as mídias contemporâneas, é a
mais fantástica e estupenda ferramenta para acesso à informação; no entanto
transformar informação em conhecimento exige, antes de tudo, critérios de
escolha e seleção, dado que o conhecimento (ao contrário da informação) não é
cumulativo, mas seletivo.
É como alguém que entra numa livraria
(ou em uma bienal do livro) sem saber muito o que deseja (mesmo um simples
passear): corre o risco de ficar em pânico e com uma sensação de débito
intelectual, sem ter clareza de por onde começar e imaginando que precisa ler
tudo aquilo. É fundamental ter critério, isto é, saber o que se procura para poder
escolher em função da finalidade que se tenha.
Os computadores e a Internet têm um caráter ferramental que não pode ser
esquecido; ferramenta não é objetivo em si mesmo, é instrumento para outra
coisa. Por isso há um ditado atribuído aos chineses que se diz: "Quando se
aponta a Lua, bela e brilhante, o tolo olha atentamente a ponta do dedo".
O instigante Lewis Carol, na sua
imortal "Alice no País das Maravilhas", a ser lida e relida, tem duas
personagens bem expressivas para entendermos os tempos atuais: um coelho (como
nós) sempre correndo, sempre olhando o relógio e sempre reclamando "estou
atrasado, estou atrasado"; e um insondável gato, que, no alto de uma
árvore, tem um corpo que aparece e desaparece, às vezes ficando só a cauda, às
vezes, só o sorriso. Há uma cena (adaptada aqui livremente) na qual Alice,
desorientada, vê o gato na árvore e pergunta: "Para onde vai esta
estrada?". O gato replica: "Para onde você quer ir?". Ela diz:
"Não sei; estou perdida". O gato não titubeia: "Para quem não
sabe para onde vai, qualquer caminho serve...".
Sem critérios seletivos, muitos ficam
sufocados por uma ânsia precária de ler tudo, acessar tudo, ouvir tudo,
assistir tudo. É por isso que a maior parte dessas pessoas, em vez de navegar
na Internet, naufraga...
MARIO SERGIO
CORTELLA, filósofo, professor da PUC-SP e autor de "A Escola e o
Conhecimento: Fundamentos Epistemológicos e Políticos" (ed. Cortêz/IPF).
Entendendo o texto:
01 – Das afirmações a
seguir, a respeito do texto, a que deve ser considerada inadequada é:
a)
A narrativa de Júlio Verne tem certa analogia
com o uso da internet em nosso século.
b)
Hoje, pode-se considerar a Internet uma
ferramenta fundamental para o conhecimento.
c)
O conhecimento pode ser entendido como a
principal riqueza de nossa era.
d)
Segundo o autor, a informação tem um caráter
cumulativo.
e)
O acesso à Internet, por si só,
garante a imersão no mundo do conhecimento.
02 – O autor do texto:
I – Manifesta uma visão
pessimista quanto ao uso indiscriminado e ingênuo da Internet como meio de
aquisição de conhecimento.
II – Sugere que a utilização
da Internet, sem o conhecimento da língua latina, desorientará o usuário.
III – Censura o uso da
Internet como ferramenta de acesso à informação.
Está(ão) correta(s):
a)
Apenas I.
b)
Apenas I e II.
c)
Apenas II e III.
d)
Apenas III.
e)
Apenas II.
03 – O item que expressa
claramente o modo de pensar do autor é:
a)
As informações que circulam na Internet não
podem se transformar em conhecimento.
b)
Ao navegar na Internet, o usuário
deve saber de antemão o que procura e ter critérios de seleção das informações.
c)
Não podemos nos enganar ao supor que a
humanidade está entrando em uma era de conhecimento.
d)
O usuário das mídias contemporâneas deve se
comportar como quem entra numa livraria e começa a ler tudo que lá se encontra.
e)
Como ferramenta útil que é, o computador pode
ser utilizado como um objetivo em si mesmo.
04 – O autor do texto
utiliza duas comparações principais ao situar, de forma metafórica, o moderno
usuário de computadores: com a navegação do Nautilus e a entrada em uma
livraria. Com essas comparações, seu objetivo é ilustrar, respectivamente:
a)
Um mergulho no conhecimento e a ampla
possibilidade de escolha.
b)
A falta de conhecimento de línguas clássicas
e a angústia diante de muitos livros para ler com pouco tempo para fazê-lo.
c)
A ausência de um objetivo e a
desorientação diante de muita informação.
d)
O desconhecimento da fonte de informações e
um passeio sem destino.
e)
A identificação de quem nos dirige e a
sensação de pânico.