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sábado, 24 de março de 2018

TEXTO: HISTÓRIA DE TODOS OS DIAS - ORÍGENES LESSA - COM GABARITO

Texto: HISTÓRIA DE TODOS OS DIAS


        Ariovaldo Mendes curtira por ela, desde que a conhecera, uma fulminante e desesperada paixão. Anos correram, sofreu ele as mais radicais mudanças na vida, com desastres íntimos e mortes na família, mas o amor, apesar da indiferença com que era recebido, não se lhe extinguiu. Era uma verdadeira obsessão, constante, única, eterna. Muitas vezes lutou Ariovaldo Mendes contra si mesmo. Era preciso acabar. Seria uma tolice, uma loucura sem nome, entregar-se desvairadamente àquele amor inútil, que não seria jamais correspondido. Mas em vão raciocinava e se debatia. O amor era superior às suas forças. Tomara-o de improviso aos quinze anos e seguiria com ele vida em fora, sem lhe dar trégua nem descanso. Já datava de dez anos. Tinham sido dez anos de martírio. E o martírio – ele estava certo disso – o seguiria até à morte!
        Maria Amália nunca lhe dera a entender nada, sabendo da paixão que o devorava. Tratava-o com simpatia, com uma simpatia feroz que o punha doido. Tratava-o como aos demais frequentadores da casa, sem diferença alguma. Era a amiguinha, a camaradinha, mas a mulher perfeitamente insensível, estranha ao seu amor.
        Mais de uma ocasião Ariovaldo procurou abrir-se, dizer-lhe tudo, falar dos seus sentimentos, do seu martírio, do seu amor. Mas no momento decisivo desfalecia lhe o ânimo. Que lhe adiantava falar? Amontoaria apenas motivos novos para o seu ridículo, porque a sua inútil paixão era universalmente conhecida. Falar dela seria contar a mais velha e tola de todas as novidades. E seria melhor antes permanecer naquela meia incerteza que, quando nada, lhe dava lugar a uma fugitiva sombra de esperança.
        Um dia, porém, ele se resolveu. Falaria! Viesse o que viesse, falaria, liquidaria tudo! Ou sim, ou não, mas terminante, final! Se fosse repelido, voltaria para o seu povoado longínquo do Nordeste, onde acabaria em silêncio, aniquilado e fracassado, porque de nada lhe valia o seu talento, a sua cultura, o seu renome social, se lhe faltava tudo, aquele amor.
        Havia um baile em casa de Maria Amália. Grande acontecimento social, muito decote e pouquíssimo cabelo. Ariovaldo lá foi. Estava decidido.
        Como que providencialmente, encontrou-a no jardim, sozinha, a fugir da balbúrdia e do calor das danças, verdadeiro suplício naquela noite escaldante de dezembro carioca. Chegou-se e falou. Sem frases pontilhadas dos grandes adjetivos sentimentais, sem citações poéticas nem lirismo de algibeira, declarou lhe francamente o seu amor, que ela não poderia ignorar, e pediu-lhe em sim ou não, mas definitivo e formal.
        Maria Amélia não se surpreendeu. Há muitos anos esperava aquele momento, que tanto e tão absurdamente demorara. Mas infelizmente ela não o amava. Muita amizade, muita simpatia, muito respeito, mas não havia amor.
        Ariovaldo sorriu com tristeza e despediu-se. Bastava-lhe aquilo.
        Seguiu a pé, acabrunhado, como um sonâmbulo, alheio e indiferente a tudo. Tinha impressão de que um vácuo infinito e insanável se formara na sua alma. Fracassara toda a sua vida. Desaparecera tudo. Ruíra tudo. Sonhos, ideais, aspirações, nada mais lhe restava. E absorto como estava, esmagado e vencido, ao atravessar uma rua, foi colhido pelo prosaísmo de um Ford em disparada.
        Era um desfecho banal de “notícias de última hora”. Gritos, tropelia, assistência, retratos nos jornais visitas cerimoniosas de amigos compungidos.
        Ao receber a nova, Maria Amélia sentiu um profundo abalo e correu a vê-lo. Ele estava entre a vida e a morte, tal o choque recebido. Não a reconheceu quando, dizendo-se sua noiva, obteve dificilmente permissão para o cuidar. E tratou-o com desvelo apaixonado, passando insone dias e noites, como se daquilo dependesse a sua própria existência. Os médicos e parentes iam ao ponto de censurar aquela dedicação absurda, inexplicável, absoluta. Mas ela não se moveu de ao pé da cama senão quando o viu perfeitamente salvo.
        Foram dias de angustiosa espera, até que o doente começou a voltar a si, como um ressuscitado. Ariovaldo mal tinha ideia do que se passara e só muito lentamente foi reconstituindo os acontecimentos anteriores. Via Maria Amália ao seu lado, com uma expressão amiga e uma grande alegria no olhar macerado, mas não soube precisar bem a sensação recebida. Voltava de um outro mundo. Parecia-lhe tudo novo.
        Dias depois, ainda pálido, Ariovaldo Mendes bateu à porta do palacete de Maria Amália, num recanto delicioso de Copacabana. Maria Amália correu a recebe-lo com uma alegria que não podia dominar. Mas o semblante anuviou-se lhe quando o viu, com sua voz arrastada e triste, dar um tom cerimonioso à palestra. Vinha agradecer-lhe do fundo d`alma a dedicação, o desinteresse com que o tratara, com que se sacrificara quase pela sua vida. Ele não o merecia, não saberia nunca pagar-lhe a bondade com que o desvelara.
        Maria Amália quis protestar. Ariovaldo interrompeu-a. Ninguém, mulher alguma faria o mesmo, ninguém!
        Olharam-se ambos como se não se compreendessem. Houve uma ligeira pausa.
        --- E, por último, eu vinha me despedir...
        --- Vai viajar?
        --- Sigo amanhã para o norte...
        --- Sim? Por muito tempo?
        --- Definitivamente. Já liquidei todos os meus negócios e nada mais me resta no Rio. Levo até nomeação para um lugarejo da Paraíba.
        --- Mas parte assim, sem me ter dito nada?
        --- E que poderia lhe dizer, senão vir trazer-lhe as minhas despedidas?
        Maria Amália não respondeu. Tinha os olhos cheios d`água.
        --- Que tem, Maria Amália?
        --- Mas o nosso amor? Você não compreende quanto o amo, Ariovaldo?
        Ariovaldo não podia mais compreender. Já era demasiado tarde. Muita gratidão, muita amizade, mas o amor morrera...

               LESSA, Orígenes. História de todos os dias. Ed. O escritor proibido.
                                                                   Rio de Janeiro. Nórdica. s.d. p. 59-63.

Desfalecer: enfraquecer.
Lirismo de algibeira: palavras poéticas de gosto.
Acabrunhado: abatido, prostrado.
Absorto: concentrado em seu pensamentos.
Prosaísmo: falta de poesia. No contexto, significa fato comum.
Desvelo: grande cuidado, dedicação.
Macerado: abatido, macilento.

Entendendo o texto:
01 – Transcreva em seu caderno a afirmativa correta:
     a) O texto lido é uma história para ser representada num palco.
     b) O texto lido é uma narrativa.
c) O texto resume-se às confissões dos sentimentos íntimos de um poeta.
Justifique sua resposta.
      Trata-se de uma narrativa, pois há um narrador que conta a história de duas personagens.

02 – O narrador preocupa-se em registrar seu mundo interior ou apresenta-nos um fato situado no mundo exterior a ele?
       O narrador apresenta um fato situado no mundo exterior a ele.

03 – No texto aparecem duas personagens. Quais?
       Maria Amália e Ariovaldo.

04 – Entre os dois ocorre uma situação de equilíbrio. Identifique-a.
       Ariovaldo ama Maria Amália mas não é correspondido. Depois, dá-se o inverso.

05 – Como nós, leitores, tomamos conhecimento dessa situação: diretamente ou através da fala de um narrador?
       Através da fala do narrador.

06 – Todo fato acontece num determinado lugar. Portanto, em qualquer narrativa é possível identificar um espaço. Em que espaço acontece:
     a) A declaração de amor de Ariovaldo?
      No jardim da casa de Maria Amália.

     b) O acidente que vitimou Ariovaldo?
      Na rua.

     c) O desenlace da história?
      Na porta da casa de Maria Amália.

07 – O narrador utiliza-se de determinados recursos para identificar as personagens. Quais são eles?
       Atribuição de nomes, descrição física, descrição de gestos, falas das personagens.

08 – À medida que a narrativa vai se desenvolvendo, existe interesse do leitor em saber “como acabará a história”?
       SIM.


terça-feira, 3 de outubro de 2017

TEXTO LITERÁRIO: GLÓRIAS E PRIVAÇÕES - ORÍGENES LESSA - COM GABARITO


GLÓRIAS E PRIVAÇÕES

        Os anos passaram. Os meninos cresciam. Os livros saíam. Campos Lara tornara-se o grande romancista do país. Tinha um nome nacional. Cartas chegaram de toda parte. Fugira sempre dos políticos. Ouvira, anos seguidos, os impropérios da esposa, por não querer procurar coronelões e chefes eleitorais que o admiravam, para pedir emprego.
        --- Você não presta mesmo para nada. Por que é que não arranja, pelo menos, um emprego público?
        Nunca pedira. Não pediria nunca. Mas o seu nome enchera de tal forma o país, que um deputado amigo se lembrou de arranjar-lhe uma achega. Campos Lara, além de ser o maior romancista nacional, era amanuense de uma secretaria de Estado.
        A glória literária, sempre crescente, abria-lhe todas as portas. Não as procurava, mas estavam abertas. O diretor de um colégio veio oferecer estudo grátis para os meninos. A Irene, a Anita, o Joãozinho estudavam agora.
        No fundo, Maria Rosa preferia que, em vez de escola, as crianças arranjassem emprego. O trabalho compensa. Irene poderia ser uma boa datilógrafa. Joãozinho faria carreira, na casa de Gomes, Correia & Cia. O estudo poderia estraga-los, fazê-los iguais ao pai. No apogeu da sua carreira literária, a merecer em toda parte mesuras e barretadas, de vez em quando um repórter em casa, para fotografar o romancista à sua mesa de trabalho, ou simplesmente a mesa – um retratara apenas o tinteiro e a caneta –, Campos Lara vivia mediocremente, pobremente. Uma peleja tão grande, para ganhar pouco mais do que um empregado de escritório.
        Mas nem se atrevia a falar ao marido. Em certas coisas, Campos Lara conseguia ser inflexível. Os filhos teriam que estudar. E, apreensiva sempre, Maria Rosa auscultava as tendências das meninas, já mocinhas, especialmente do filho, temerosa de ver o germe literário se revelar. Sua esperança era que o seu quinhão de sangue os salvasse. Os filhos, muito mais dela do que dele. A sua carne, o seu sangue, o seu sofrimento. Haviam crescido ao seu lado, passando privações, vendo o mau exemplo e o fracasso do pai. E, sempre que podia, mandava o Joãozinho brincar à casa do Gomes, com o garoto mais velho, ver a diferença, invejar lhe a riqueza!

                                                   Orígenes Lessa. O feijão e o sonho.
                                                                     São Paulo: Ática. p. 122.

1 – “O trabalho compensa.” Pensando nisso, Maria Rosa preferiria ver os filhos trabalharem em vez de irem à escola. Você concorda com ela? Qual a justificativa para esse modo de pensar?
      Reposta pessoal do aluno. O ideal é que as pessoas estudem sempre, para melhorar no campo profissional.

2 – Campos Lara jamais pedira nada a ninguém, mesmo vendo a família enfrentar as piores dificuldades. Por qual motivo teria vivido assim?
      Eram o orgulho e a vaidade que o impediam.

3 – “Campos Lara vivia mediocremente, pobremente.” Mesmo depois de ter seu talento reconhecido, a condição de vida do poeta continuou precária. A glória literária, nesse caso, Justifica tudo?
      Nem sempre; no caso de Campos Lara, foi o que aconteceu.

4 – Como é a atitude de Campos Lara com a mulher e os filhos?
      Campos Lara, oferece uma vida pobre e sofrida à mulher e aos filhos.

5 – Maria Rosa foi feliz com Campos Lara? Justifique sua resposta?
      Não. Embora admirasse e amasse o marido, Maria Rosa nunca perdoou Campos Lara por este não ter lhe proporcionado uma vida mais confortável.

6 – Maria Rosa instiga os filhos a serem ambiciosos, para que não tenham as pretensões literárias do pai. O que você pensa disso? Um filho escolhe a carreira espelhando-se na do pai?
      Resposta pessoal do aluno. Os filhos não necessariamente escolhem a mesma carreira do pai, mas é inegável que se deixam influenciar pelas ideias e posturas dos familiares.