TEXTO: A COR DE UM PAÍS PLURAL
“E aí,
neguinho?”, “Ô, Pelé, pega aquela caixa!”, “Tudo bem, japa?”, “Entra aí,
alemão!”, “Me dá uma bala, meu: você parece turco!”. Quem nunca ouviu no
dia-a-dia frases como essa? O Brasil se diz um país sem preconceito racial, mas
será que essas frases não ocultam algum tipo de preconceito?
A seguir você vai ler um
painel de textos, com depoimentos importantes de pessoas que já viveram
situações relacionadas com o preconceito racial.
O PRECONCEITO RACIAL
TEXTO I
No ano passado, eu passeava num shopping
de Curitiba com a minha mãe, quando gostei de uma blusa.
Entrei na loja. Vi o preço. Era
caríssima. Mesmo assim, quis experimentar.
Mas ninguém me atendia. As vendedoras me
olhavam de cima para baixo.
Olhavam e faziam que não me viam. Fiquei
nervosa e fui embora. Disse à minha mãe o que tinha acontecido. Decidi, então,
voltar. Entrei e contei até dez. Todos continuavam a me ignorar. Aí explodi. “Será
que tenho de abrir minha bolsa e mostrar o cartão de crédito?” Virei as costas
e sai. A gerente então correu atrás de mim. Tentou me explicar que não podia
adivinhar que eu tinha dinheiro para comprar a blusa. Não quis ouvi-la, não.
Poxa, só porque sou negra não posso ter dinheiro? O preconceito existe, sim.
[...]
Cinthya Rachel, 18 anos, a Biba do Castelo
Ra-Tim-Bum.(Veja, 24/6/1998.)
TEXTO II
Moro num prédio de classe média. Aos
nove anos, eu era o único negro. Três amigos meus viviam chamando meus pais de “Café”
e “King Kong”. Eu me sentia humilhado. O síndico dizia que lugar de negro era
na senzala. Aos onze anos, deixei de frequentar o playground. Ficava em casa.
Nunca mais brinquei no prédio. Mas não jeito. Se saio na rua cinco vezes, em pelo
menos uma sou insultado. No ano passado, ao voltar do colégio a pé, o motorista
de uma Kombi jogou o carro em cima de mim e gritou: “Vai para casa, macaco”. Na
época em que me isolei dos garotos do prédio, todos os fins de semana meus pais
arrumavam programas fora de casa para mim. Num deles fomos à Hípica e decidi
aprender a montar. Comecei a competir. Em seis anos, ganhei 18 medalhas e 2
troféus. O hipismo me ajudou a superar o problema do preconceito.
Augusto Modesto, 16 anos, estudante em São Paulo (Idem)
TEXTO III
Em 1968, [a atriz Zezé Mota], aos 25
anos, com o Teatro de Arena, estreou uma temporada no Harlem, reduto dos negros
pobres de Nova York. O movimento black power ainda não havia eclodido com toda
a sua força, mas os negros americanos já procuravam substituir o sentimento de
humilhação por um tipo de orgulho barulhento da raça. Zezé apareceu usando uma
peruca no estilo Chanel – cabelos lisos, escorridos. “Os americanos perguntaram
a Boal (Augusto Boal, diretor do grupo) por que eu usava um cabelo que não era
de negro se eu era negra”, lembra a atriz. Zezé arrancou a peruca. Mas seus
cabelos de verdade continuavam a não ser os de uma negra. Estavam alisados. “Voltei
para o hotel, lavei o cabelo e assumi meu lado negro”, conta. “Foi um batismo.”
Zezé Mota, cantora e atriz (Idem)
TEXTO IV
Desde os 12 anos, coloquei na minha
cabeça que eu poderia me dar bem no futebol. Era um sonho, eu sabia. Então, por
segurança, estudava para ser torneiro mecânico. Enquanto eu vendia pastéis em
feiras livres, meus dois irmãos capinavam o jardim dos vizinhos. Mamãe oferecia
tapetes nas ruas e papai era gari da prefeitura. A vida era difícil.
Refrigerante e frango, só aos domingos. Na escola, como eu não tinha dinheiro
para comprar doces na hora da merenda, meus amigos diziam: “Também, teu pai é
preto e lixeiro”. Até hoje me lembro de um garoto branco, o Marcos. Ele era
muito rico para os nossos padrões, mas era o único que não se incomodava com a
minha cor. Era meu melhor amigo. Trocávamos as roupas e ele deixava eu usar as
dele, muito mais caras e bonitas do que as minhas. Eu nunca ia às festas boas
do meu bairro. Tinha medo da discriminação. Sei que os grã-finos me olhavam de
maneira diferente, então procurava o povão em bailes funk. Tudo isso era triste
para mim, mas a pior decepção foi quando me apaixonei pela filha de um
marinheiro. Ele não admitia vê-la ao lado de um negro com cabelo black power. E
esse racista arruinou tudo.
Marcelo Pereira Surcin, o Marcelinho Carioca, jogador de
futebol (Idem)
TEXTO V
Nossa raça ficou muito tempo no escuro,
mas agora somos uma sensação. A revolução começou pela estética. O negro, hoje,
se acha bonito, se veste melhor. Sou um modelo para os meninos que, como eu,
foram criados na pobreza das periferias. Zelando pela minha imagem, me
cuidando, sei que posso melhorar a autoestima dessa garotada e servir de
exemplo para eles. Não bebo, não fumo, não curto drogas. [...] Precisamos
crescer com consciência, seguir uma ideologia, promover ações solidárias. Nossos
pais eram aplaudidos quando deixavam a escola para trabalhar. Nossos avós
pensavam “que bom, meu filho não é vagabundo”. Resultado: ficaram burros. Não
tínhamos cultura para nos relacionar com o branco, que por sua vez não sabia
como tratar o negro. A minha geração também começou a trabalhar cedo, mas não
largou os estudos. Meus pais sempre disseram que eu devia ser melhor que eles.
Que eu tinha de trabalhar e estudar ao mesmo tempo. Por isso, a luta contra o
preconceito é mais eficiente.
José de Paula Neto, o Netinho, vocalista do Negritude
Júnior(Idem).
TEXTO VI
Numa das aulas de um curso de pós-graduação,
fui incumbida pela professora de observar a apresentação de alguns trabalhos de
colegas da sala e fazer um comentário avaliativo.
Depois de concluída minha exposição, a
professora comentou: “O debate foi tão intenso que a “japoronga” até arregalou
os olhos!”. Nesse momento, me senti paralisada pela crueldade das palavras. Não
consegui fazer nada, a não ser esboçar um sorriso sem graça e sentar-me quieta.
Fui embora com um sentimento de tristeza tão grande, pensando que mesmo no meio
universitário ainda teria que ouvir comentários pejorativos como esse.
Entender que atitudes e palavras como essas, ainda que
sutis, são expressões de preconceito foi um processo doloroso para mim, que me
acompanhou por toda a vida e em todos os lugares.
Cristina Akisino, brasileira, neta de japoneses,
pesquisadora iconográfica em São Paulo
Fonte: Livro- Português:
Linguagem, 6ª Série- William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães, 2ª.ed –
São Paulo: Atual Editora, 2002.p.114-7.
COMPREENSÃO E INTERPRETAÇÃO
01. No texto
I, Cinthya conta a experiência que teve ao querer comprar uma blusa. Releia a
explicação que a gerente deu a Cinthya.
a) Na sua
opinião, os funcionários da loja agiriam da mesma forma com uma pessoa branca,
mas vestida com roupas simples?
Provavelmente sim, pois pareceu que o
procedimento normal é não atender quem supostamente não tem condições de
comprar.
b) O
preconceito manifestado pelas pessoas dessa loja é social, racial ou dos dois
tipos?
É primeiramente social, contudo, pode
ser também racial, pois a vendedora, pelo fato de a cliente ser negra, achou
que ela não tivesse dinheiro para comprar a blusa.
02. No
texto II, Augusto sentia-se humilhado por causa do preconceito que sofria. O
hipismo, porém, mudou a vida dele. Por que você acha que isso aconteceu?
Resposta pessoal.
Sugestão: Porque o esporte melhorou a
autoestima do garoto, isto é, fez com que visse que ele tinha valor.
03. A
atriz Zezé Mota conta que o contato com os negros americanos, em 1968, foi para
ela uma espécie de batismo. Que sentido tem essa palavra nesse contexto?
A atriz dá a entender que, a partir
dessa experiência, ela se assumiu como negra, iniciou uma fase nova em sua
vida, agora com uma identidade negra.
04. No
depoimento do jogador Marcelinho Carioca, há exemplos de pessoas
preconceituosas e exemplos de pessoas sem preconceito.
a) Quais
são os exemplos de pessoas sem preconceito?
O amigo Marcos e a namorada branca.
b) De
acordo com o texto, a ausência de preconceitos pode aproximar as pessoas?
Justifique sua resposta.
Sim. A amizade entre Marcelinho e
Marcos mostra justamente que, quando não há preconceito, podem acontecer
relações verdadeiras entre as pessoas.
c) Pelo
que conta o jogador, o preconceito leva a vítima ao isolamento? Por quê?
Sim, porque a vítima fica com medo de
se expor e sofrer agressões, conforme mostra o exemplo das festas de grã-finos
do bairro.
05. De
acordo com o depoimento do cantor Netinho, a revolução entre os negros começou
pela estética. Mas o texto acaba revelando outro tipo de revolução.
a) O que
o cantor quer dizer com a palavra estética?
Ele se refere ao reconhecimento da
beleza do negro pelo próprio negro. Antes o negro se depreciava, hoje ele se
acha bonito.
b) Qual é
o outro fator importante que acabou dando mais condições aos negros de se
destacarem socialmente? Por que ele é importante?
Os estudos, pois, de acordo com o
cantor, com cultura o negro fica mais preparado para se relacionar com o branco
e combater o preconceito.
06. Na
situação vivida por Cristina Akisino em sala de aula:
a) Você
acha que a intenção da professora era magoar a aluna, debochando dela perante a
classe?
Resposta pessoal.
b) O
comentário da professora revela preconceito racial ou não? Por quê?
Sim, porque, além de empregar “japoronga”
– termo geralmente usado de forma pejorativa -, a professora se referiu a
característica raciais da aluna, sem que houvesse nenhuma necessidade naquela
situação.