ROMANCE: Urupês –
fragmento
Monteiro Lobato
[...]
Jéca Tatu é um piraquara do Paraíba,
maravilhoso epítome de carne onde se resumem todas as características da
espécie.
Hei-lo que vem falar ao patrão. Entrou,
saudou. Seu primeiro movimento após prender entre os lábios a palha de milho,
sacar o rolete de fumo e disparar a cusparada d'esguicho, é sentar-se
jeitosamente sobre os calcanhares. Só então destrava a língua e a inteligência.
"Não vê que...
De pé ou sentado as ideias se lhe
entramam, a língua emperra e não há de dizer coisa com coisa.
De noite, na choça de palha, acocora-se
em frente ao fogo para "aquentá-lo", imitado da mulher e da prole.
Para comer, negociar uma barganha,
ingerir um café, tostas um cabo de foice, fazê-lo noutra posição será desastre
infalível. Há de ser de cócoras.
Nos mercados, para onde leva a quitanda
domingueira, é de cócoras, como um faquir do Bramaputra, que vigia os cachinhos
de brejaúva ou o feixe de três palmitos.
Pobre Jéca Tatu! Como és bonito no
romance e feio na realidade!
Jéca mercador, Jéca lavrador, Jéca
fisólofo...
Quando comparece às feiras, todo mundo
logo advinha o que ele traz: sempre coisas que a natureza derrama pelo mato e
ao homem só custa o gesto de espichar a mão e colher – cocos de tucum ou
jissara, guabirobas, bacuparis, maracujás, jataís, pinhões, orquídeas ou
artefatos de taquara-poca – peneiras, cestinhas, samburás, tipitis, pios de
caçador ou utensílios de madeira mole – gamelas, pilõesinhos, colheres de pau.
Nada Mais.
Seu grande cuidado é espremer todas as
consequências da lei do menor esforço – e nisto vai longo.
Começa na morada. Sua casa de sapé e
lama faz sorrir aos bichos que moram em toca e gargalhar ao joão-de-barro. Pura
biboca de bosquimano. Mobília, nenhuma. A cama é uma espipada esteira de peri
posta sobre o chão batido.
Às vezes se dá ao luxo de um banquinho
de três pernas - para hospedes. Três pernas permitem equilíbrio inútil,
portanto, meter a Quarta, o que ainda o obrigaria a nivelar o chão. Para que
assentos, se a natureza os dotou de sólidos, rachados calcanhares sobre os
quais se sentam?
Nenhum talher. Não é a munheca um
talher completo – colher, garfo e faca a um tempo?
No mais, umas cuias, gamelinhas, um
pote esbeiçado, a pichorra e a panela de feijão.
Nada de armários ou baús. A roupa,
guarda-a no corpo. Só tem dois parelhos, um que traz no uso e outro na lavagem.
Os mantimentos apaióla nos cantos da
casa.
Inventou um cipó preso à cumieira, de
gancho na ponta e um disco de lata no alto, ali pendura o toucinho, a salvo dos
gatos e ratos.
Da parede pende a espingarda pica-pau,
o polvarinho de chifre, o S. Benedito defumado, o rabo de tatu e as palmas
bentas de queimar durante as fortes trovoadas. Servem de gaveta os buracos da
parede.
Seus remotos avós não gozaram maiores
comodidades. Seus netos não meterão Quarta perna ao banco. Para que? Vive-se
bem sem isso.
Se pelotas de barro caem, abrindo
seteiras na parede, Jéca não se move a repô-las. Ficam pelo resto da vida os
buracos abertos, a entremostrarem nesgas de céu.
Quando a palha do teto, apodrecida,
greta em fendas por onde pinga a chuva, Jéca, em vez de remendar a tortura,
limita-se, cada vez que chove, a aparar numa gamelinha a água gotejante...
Remendo... Para que? Se uma casa dura
dez anos e faltam "apenas " nove para que ele abandone aquela? Esta
filosofia economiza reparos.
Na mansão de Jéca a parede dos fundos
bojou para fora um ventre empanzinado, ameaçando ruir; os barrotes, cortados
pela umidade, oscilam na podriqueira do baldrame. Afim de neutralizar o desaprumo
e prevenir suas consequências, ele grudou na parede uma Nossa Senhora enquadrada
em moldurinha amarela – santo de mascate.
-- Por que não remenda essa parede,
homem de Deus?
-- Ela não tem coragem de cair. Não vê
a escora?
Não obstante, "por via das
dúvidas", quando ronca a trovoada Jéca abandona a toca e vai agachar-se no
ôco dum velho embirussu do quintal – para se saborear de longe com a eficácia
da escora santa.
Um pedaço de pau dispensaria o milagre!
mas entre pendurar o santo e tomar da foice, subir ao morro, cortar a madeira,
atorá-la, baldeá-la e especar a parede, o sacerdote da Grande lei do Menor
Esforço não vacila. É coerente.
Um terreirinho descalvado rodeia a
casa. O mato o beira. Nem árvores frutíferas, nem horta, nem flores – nada revelador
de permanência.
Há mil razões para isso; porque não é
sua a terral porque se o "tocarem" não ficará nada que a outrem
aproveite; porque para frutas há o mato; porque a "criação" come;
porque...
-- "Mas, criatura, com um
vedozinho por ali... A madeira está à mão, o cipó é tanto..."
Jéca, interpelado, olha para o morro
coberto de moirões, olha para o terreiro nu, coça a cabeça e cuspilha.
-- "Não paga a pena".
Todo o inconsciente filosofar do
caboclo grulha nessa palavra atravessada de fatalismo e modorra. Nada paga a
pena. Nem culturas, nem comodidades. De qualquer jeito se vive.
[...].
22. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1978. p. 147-50.
Entendendo a crônica:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Biboca: casa pequena, com cobertura de palha.
·
Bosquímano: relativo aos bosquímanos, povo sul-africano.
·
Espipado: repuxado.
·
Gamela: vasilha de madeira ou de barro.
·
Grulhar: tagarelar.
·
Modorra: prostração, preguiça.
02 – O texto descreve Jéca
Tatu em três papéis: o de mercador, o de lavrador e o de filósofo. Como se sai
Jéca nesses papéis?
Sai-se mal, pois
não planta (o lavrador), só vende o que a natureza oferece (o mercador) e pensa
(o filósofo) que “nada paga a pena”, pois a terra não é sua.
03 – Que comportamentos de
Jéca comprovam a afirmação do narrador de que “Seu grande cuidado é espremer
todas as consequências da lei do menor esforço?
O fato de
consumir e vender apenas o que a natureza oferece e de não promover melhorias
em sua casa.
04 – O Romantismo
brasileiro, em sua vertente regionalista, enalteceu o homem rural, tanto o do
Sul quanto o do Norte, idealizando-o como herói. A personagem Jéca Tatu, de
Lobato, confirma ou nega o tratamento romântico dado ao homem rural?
Nega, pois Jéca é
o oposto do herói romântico. Lobato prega um nacionalismo crítico.
05 – Em suas obras, Lobato
busca compreender as causas do comportamento desinteressado do caboclo paulista
e acaba atribuindo à preguiça a responsabilidade principal. Contudo, o
narrador, ou o próprio Lobato, afirma no texto lido: “Nada revelador de
permanência”. Conforme esse dado com o texto que segue, do crítico Silviano
Santiago:
“Para
se chegar ao diagnóstico sobre o atraso do Jéca Tatu, o médico [Lobato]
neutralizou os efeitos nocivos causados por ele e seus pares na constituição do
miserável objeto de estudo e, por isso, Lobato posava de libertador do povo e,
no entanto, era injusto e impiedoso para com esse povo. Lobato se esqueceu de
que ele e demais latifundiários amigos eram os verdadeiros parasitas dos
antepassados dos atuais agregados, como o tinham sido dos velhos escravos. É na
condição de também parasita que competia a ele diagnosticar os males do
caboclo-parasita. Os defeitos do explorador do trabalho alheio (do
latifundiário) se escondem para que mais salientem a indolência do explorado
(do caboclo).”
Um dínamo em movimento. Folha de São
Paulo, 28/6/1998.
a)
Relacionando o comentário de Lobato ao do
crítico Silviano Santiago, responda: Que outra causa social é responsável pela
falta de apego do caboclo à terra?
A falta de uma reforma agrária que garantisse a posse da terra ao
pequeno trabalhador rural.
b)
Explique este trecho de Silviano Santiago:
“Lobato posava de libertador do povo e, no entanto, era injusto e impiedoso
para com esse povo.”
Lobato gostaria de modificar o comportamento do
caboclo e libertá-lo de sua inércia, porém, deixa de lembrar que há outras
causas, sociais, responsáveis por esse comportamento, entre as quais a má distribuição de terras.