Peça teatral: O noviço (Fragmento)
Martins Pena
CENA
VII
Carlos, com hábito de noviço, entra
assustado e fecha a porta.
EMÍLIA, assustando-se — Ah, quem é?
Carlos!
CARLOS — Cala-te
EMÍLIA — Meu Deus, o que tens, por que
estás tão assustado? O que foi?
CARLOS — Aonde está minha tia, e o teu
padrasto?
EMÍLIA — Lá em cima. Mas o que tens?
CARLOS — Fugi do convento, e aí vêm
eles atrás de mim.
EMÍLIA — Fugiste? E por que motivo?
CARLOS — Por que motivo? pois faltam
motivos para se fugir de um convento? O último foi o jejum em que vivo há sete
dias... Vê como tenho esta barriga, vai a sumir-se. Desde sexta-feira passada
que não mastigo pedaço que valha a pena.
EMÍLIA — Coitado!
CARLOS — Hoje, já não podendo,
questionei com o D. Abade. Palavras puxam palavras; dize tu, direi eu, e por
fim de contas arrumei-lhe uma cabeçada, que o atirei por esses ares.
EMÍLIA — O que fizestes, louco?
CARLOS — E que culpa tenho eu, se tenho
a cabeça esquentada? Para que querem violentar minhas inclinações? Não nasci
para frade, não tenho jeito nenhum para estar horas inteiras no coro a rezar
com os braços encruzados. Não me vai o gosto para aí... Não posso jejuar;
tenho, pelo menos três vezes ao dia, uma fome de todos os diabos. Militar é que
eu quisera ser; para aí chama-me a inclinação. Bordoadas, espadeiradas, rusgas
é que me regalam; esse é o meu gênio. Gosto de teatro, e de lá ninguém vai ao
teatro, à exceção de Frei Maurício, que frequenta a plateia de casaca e
cabelereira para esconder a coroa.
EMÍLIA — Pobre Carlos, como terás
passado estes seis meses de noviciado!
CARLOS — Seis meses de martírio! Não
que a vida de frade seja má; boa é ela para quem a sabe gozar e que para ela
nasceu; mas eu, priminha, eu que tenho para tal vidinha negação completa, não
posso!
EMÍLIA — E os nossos parentes quando
nos obrigam a seguir uma carreira para a qual não temos inclinação alguma,
dizem que o tempo acostumar-nos-á.
CARLOS — O tempo acostumar! Eis aí
porque vemos entre nós tantos absurdos e disparates. Este tem jeito para
sapateiro: pois vá estudar medicina... Excelente médico! Aquele tem inclinação
para cômico: pois não senhor, será político... Ora, ainda isso vá. Esse outro
só tem jeito para caiador ou borrador: nada, é ofício que não presta... Seja
diplomata, que borra tudo quanto faz. Aqueloutro chama-lhe toda a propensão
para a ladroeira; manda o bom senso que se corrija o sujeitinho, mas isso não
se faz; seja tesoureiro de repartição fiscal, e lá se vão os cofres da nação à
garra... Esse outro tem uma grande carga de preguiça e indolência e só serviria
para leigo de convento, no entanto vemos o bom do mandrião empregado público,
comendo com as mãos encruzadas sobre a pança o pingue ordenado da nação.
EMÍLIA — Tens muita razão; assim é.
CARLOS — Este nasceu para poeta ou
escritor, com uma imaginação fogosa e independente, capaz de grandes cousas,
mas não pode seguir a sua inclinação, porque poetas e escritores morrem de
miséria, no Brasil. E assim o obriga a necessidade a ser o mais somenos amanuense
em uma repartição pública e a copiar cinco horas por dia os mais soníferos
papéis. O que acontece? Em breve matam-lhe a inteligência e fazem do homem
pensante máquina estúpida, e assim se gasta uma vida? É preciso, é já tempo que
alguém olhe para isso, e alguém que possa.
[...]
PENA, Martins. O noviço. Apresentação,
comentários e notas de José de Paula Ramos Jr. São Paulo: Ateliê Editorial,
1996. p. 62-5.
Fonte: Língua
portuguesa 2 – Projeto ECO – Ensino médio – Editora Positivo – 1ª edição – Curitiba
– 2010. p. 115-6.
Entendendo a peça teatral:
01 – Quais os motivos
alegados por Carlos para ter fugido do convento?
A obrigação de
jejuar, a discussão com o Abade, que terminou em agressão física, o fato de ter
a cabeça “esquentada” por não ter nascido para a vida religiosa, querer ser
militar e, por fim, o fato de gostar de teatro, divertimento ao qual poucos
religiosos se dedicam – o Frei Maurício tem mesmo que se disfarçar para poder
frequentar o teatro.
02 – Segundo Carlos, a vida
de frade é má ou boa?
Para ele, a vida
de frade é boa para quem tem vocação. No caso dele, que não tem, é um martírio.
03 – Há uma crítica direta,
na fala do noviço, contra o costume de os parentes escolherem a carreira dos
jovens. Quais seriam os prejuízos desse costume?
Segundo Carlos,
esse costume faria com que se perdessem ótimas vocações e surgissem maus
profissionais: um que tem vocação para sapateiro sairia um péssimo médico.
04 – Uma das funções da
comédia de costumes é criticar a sociedade por meio do riso. Para tanto, um dos
recursos usados por Martins Pena é a ironia. Explique a ironia presente no
trecho: “Aquele tem inclinação para cômico: pois não, senhor, será político...
Ora, ainda isso vá”.
A ironia do trecho está no fato de Carlos
afirmar que um cômico, ou seja, um comediante que se torne político seria
aceitável, o que deixa implícito uma crítica à política, vista como uma farsa,
uma comédia, algo a não ser levado a sério, ou seja, uma piada.
05 – A crítica ao patronato
– o uso da riqueza, da influência e/ou do poder para favorecimento de um
protegido, independentemente do mérito do candidato – é uma das marcas centrais
da peça “O noviço”. Localize e explique uma crítica ao patronato presente na
fala de Carlos.
Há o exemplo da
pessoa com vocação para caiador que vira diplomata, “borrando”, ou seja,
manchando tudo o que faz; o exemplo do ladrão que se torna tesoureiro, que
denuncia a propensão à corrupção: em vez de punir os desvios, muitas vezes a
sociedade acaba por “premiar” aqueles que demonstram desonestidade, desde que
tenham relações de patronato que os favoreça. Por fim, os preguiçosos que viram
empregados públicos, engordando às custas da nação, ou seja, pouco trabalhando,
mas sendo sustentados com o dinheiro público.
06 – Levando em consideração
as críticas propostas por Carlos, você as considera atuais? Por quê?
Resposta pessoal
do aluno. Sugestão: Algumas das críticas presentes na peça continuam atuais:
muitos pais ainda interferem na escolha profissional de seus filhos, ainda há
resquícios de patronato e favorecimento em nossa sociedade, etc.