Texto: Os
meninos morenos – Fragmento
Ziraldo
(...)
Uma das recordações mais felizes da
minha infância é da sinfonia dos melros nas palmeiras. A gente chegava muito
cedo para a primeira aula do Grupo Escolar que ficava na praça que era cercada
de altas palmeiras.
Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiEtyYFJ5MWBWw6wiL5o_RKTIHG5W8r8Caf69EE3YUU3bAkRORGUEa0XtDixZarnyAejX_TJHef-6SUgSj5bBM61PqdNs6IV1sIprqHLaWtQQT_2ultaLTJeNq4FJRucnzOvy6riWc7ZyxXChAY9FRFz34hIdS3TdeqwDLHKFsw4oGIV7fKyFKEAjzSY-0/s320/SABIA.jpg
Pois é: minha terra tinha palmeiras
onde, em vez de sabiá, cantava o melro. E, como a gente chegava muito cedo para
a aula, os melros ainda estavam cantando a sua canção matinal. Era como se
estivessem saudando os meninos morenos, que também chegavam em bando para a
escola.
Jarinho chegava pra brincar com a gente
e vinha com o melro no ombro. Se a brincadeira era contar história, brincar de
gata-parida, berlinda, mamãe eu posso ir ou qualquer outra que não implicasse
correr, o melro ficava ali, no ombro do Jarinho. Se, porém, a gente tinha que
correr, se a brincadeira era de pique, de pular-carniça, soltar papagaio, jogar
precipício, cobra-caninana, esconde-esconde ou mãos ao ar – que, em outras
cidades, se chamava bandido e mocinho –, o Jarinho botava o melro no galho de
uma árvore ou no umbral de uma janela e dizia: “Fica aí, que eu já volto”. E o
melro ficava esperando seu dono voltar da brincadeira. A professora pedia ao
Jarinho pra não levar o melro para tumultuar as aulas.
O Jarinho ficava muito triste de deixar
seu amigo em casa.
Era agosto, mês das queimadas e das
ventanias. Às vezes, a caminho da escola, na manhã ainda fria, a gente não
enxergava um palmo diante do nariz, vivendo como se estivesse dentro de um fog
londrino. Era a névoa seca das queimadas. Os olhos ficavam vermelhos e
voltávamos da escola com a poeira das cinzas assentadinha nas dobras da camisa
branca do uniforme. Quando não ventava muito, a gente podia ver um raminho de
samambaia cinzenta vindo voando em nossa direção, levemente, como uma pena de
ave flutuando no espaço. O raminho de samambaia tocava nossa roupa e se
desfazia em cinzas. Eram as matas do rio Doce sendo dizimadas pelas queimadas
dos derrubadores. Foi num mês de agosto, no dia seguinte de uma grande
ventania, que o Jarinho não apareceu na escola.
Na semana que se seguiu àquele dia, não
só o Jarinho, mas todos os meninos da rua não fizeram outra coisa senão
procurar o melro do Jarinho.
Ele o havia deixado num galho de árvore
para fazer uma coisa qualquer (que era melhor fazer sem seu amigo). Foi quando
começou o furacão. Foi de repente, eu me lembro.
Nunca havia ventado tanto na minha
cidade. As pessoas se agarravam aos postes para não serem arrastadas, telhas
voaram pelos ares, casebres ficaram sem teto, folhas das palmeiras imperiais da
praça se desprenderam, voando a grandes alturas, ameaçadoras.
Todos os meninos da rua só faltaram
morrer de tristeza, o Jarinho ficou de cama e não me lembro mais de voltar a
vê-lo imitar seus passarinhos. Minha mãe, que era uma sábia, tentou explicar
para os meninos da rua que era bom a gente prestar bastante atenção nas coisas
boas, enquanto elas duram.
Muitos e muitos anos depois – agora,
recentemente – reencontrei o Jarinho. Era um senhor gordinho com os cabelos –
muito poucos – completamente brancos e os olhos pequenos mais sumidos do que
nunca. [...] Perguntei-lhe se ele se lembrava, com a mesma intensidade que eu,
dos velhos tempos da rua de nossa infância. E falei do melro no seu ombro e ele
me disse: "Não me esqueço nunca. Ainda hoje, tantos anos depois, acordo no
meio da noite e, dentro do meu quarto, escuto o meu melro cantando direitinho
como se estivesse ali”. Que bom! Jarinho acredita que existe fantasma de
passarinho.
Ziraldo. Os meninos
morenos – Com versos de Humberto Akabal. São Paulo: Melhoramentos, 2004. p. 45-8.
Fonte: Livro –
Português: Linguagens, 6º ano. William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães.
7ª edição reformulada – São Paulo: ed. Saraiva, 2012. p. 132-133.
Entendendo o texto:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Derrubador: aquele que derruba as árvores antes de pôr fogo na mata.
·
Dizimado: diminuído, desfalcado, destruído.
·
Fog: nevoeiro espesso característico da cidade de Londres,
Inglaterra.
·
Melro: pássaro de plumagem negra, bico amarelo e canto melodioso.
·
Sabiá: pássaro de um colorido simples, cinzento, às vezes
avermelhado.
·
Umbral: limiar, entrada.
02 – Qual é uma das
recordações mais felizes da infância do narrador?
A recordação mais
feliz é a sinfonia dos melros nas palmeiras próximas à escola, que cantavam
pela manhã enquanto ele e seus amigos chegavam para a aula.
03 – O que o melro
representava para Jarinho?
O melro era um
companheiro inseparável de Jarinho, que o levava para brincar com os amigos,
mas o deixava em um galho ou janela durante brincadeiras que envolviam correr.
04 – Por que a professora
pedia para Jarinho não levar o melro para a escola?
A professora
pedia para Jarinho não levar o melro porque ele poderia tumultuar as aulas.
05 – Como as queimadas e
ventanias de agosto afetavam o caminho dos meninos para a escola?
As queimadas e
ventanias causavam uma névoa densa que dificultava a visão e deixava cinzas nas
roupas dos meninos, sujando especialmente os uniformes brancos.
06 – O que aconteceu com o
melro de Jarinho durante a grande ventania?
O melro
desapareceu durante uma grande ventania. Jarinho o havia deixado em um galho de
árvore, e a forte tempestade o levou.
07 – Qual foi a reação de
Jarinho ao desaparecimento de seu melro?
Jarinho ficou
muito triste, chegou a ficar de cama e, depois disso, não imitou mais os
passarinhos como fazia antes.
08 – O que a mãe do narrador
tentou ensinar aos meninos sobre o desaparecimento do melro?
A mãe do narrador
tentou ensinar que é importante prestar atenção nas coisas boas enquanto elas
duram, pois podem não estar sempre presentes.
09 – Como o narrador descreve
o reencontro com Jarinho anos depois?
O narrador
descreve Jarinho como um senhor gordinho, de cabelos brancos e poucos, com
olhos pequenos e fundos.
10 – O que Jarinho disse ao
narrador sobre o melro quando se reencontraram?
Jarinho contou
que, mesmo após tantos anos, ainda acorda no meio da noite e ouve o melro
cantando, como se estivesse no seu quarto.
11 – O que o narrador pensa
sobre a crença de Jarinho em "fantasmas de passarinhos"?
O narrador acha bom que Jarinho acredite
em "fantasmas de passarinhos", revelando que ele ainda mantém uma
forte ligação com a lembrança de seu melro.