Crônica: IRMÃO
DE ENXURRADA
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Fico lembrando dele esperneando no
berço. Ele era uma coisica ainda mais estranha do que é hoje. Não, muito mais
estranha: hoje ele é gente, fala, acha coisas sobre mim, sobre os outros
irmãos, sobre a dona da padaria.
Antes
ele era... um ... um montinho que se mexia também estranhamente.
Eu ficava horas olhando para ele. As
mãozinhas minúsculas, que de tão minúscula ele nem sabia que tinha. Na verdade,
acho que ele realmente não sabia para o que elas serviam. Elas navegavam no ar,
aquelas titiquinhas de dedos sem entender nada, parecendo uma sementinha viva.
E mijava e fazia cocô sem parar – meu
Deus do céu, como sujava as fraldas esse cara! Minha mãe falava a língua dos
bebês. “Ih, gachinha da mamãe tá de caquinha de novo? Tadim, gente! Quetarindo,
hein? Quetarindo, sem-vergonha da mãe, hein?” Muito chato. Eu achava que ela
era meio pancada. Comigo ela não falava assim. Nem com os outros meus irmãos.
A gente fazia uma besteirinha de nada,
como quebrar um vaso, um vidro da janela, ficar na rua até mais tarde, brigar
no colégio... e o pau comia – ah, se o pau comia! Mas com ele era aquele
nhe-nhe-nhém, aquele tatibitate sem fim.
[...]
Teve um tempo em que ele engatinhava.
Rodava pela casa toda, gugu pra cá, dadá pra lá, passando debaixo dos móveis,
debaixo das pernas da gente – um saco! Porque, de vez em quando, a gente
tropeçava nele. E o moleque chorava. Ele não tinha a menor solidariedade.
Chorava mesmo.
Esgoelava-se, o bostinha! E sobrava pra
gente, é claro. Na maioria das vezes era sem querer que a gente tropeçava nele.
E um dia que ele engoliu a cabeça de um
bonequinho do Forte Apache?
Ou foi o rabinho de um cavalo? Não
lembro exatamente o que foi que ele engoliu, mas lembro do problemão que foi.
Ele engasgou, e acho que ele não sabia tossir, ou era burrinho demais para
isso, ou estava só de implicância comigo, sei lá. Minha mãe veio correndo
porque gritei lá do meu quarto:
“Mãe, o Augusto engoliu uma coisa aqui
tá ficando roxo, mas eu não dei nada pra ele comer; ele é que pegou, esse
burro. Eu falei pra ele não comer mas ele comeu assim mesmo. Mas não fui eu
não, viu, mãe?” Não adiantou nada.
Fiquei uma semana sem poder brincar com
o Forte Apache por causa dele. E olha que ele nem morreu nem nada.
[...]
Até que tinha um ar interessante, o meu
irmão mais novo. Os cabelos muito pretos, muito lisos, caindo-lhes sobre os
olhos. Que eram enormes, com cílios longos como os das meninas. Um rosto
radiante, o tempo todo.
Um corpo miúdo, mas socado.
Bisbilhotava tudo, sempre de orelha em pé.
[...]
– Como foi
que eu nasci?
– Hein?
– Como foi
que eu nasci? Quero saber...
Então era isso. Viu os cachorrinhos e
ficou curioso. Era minha oportunidade.
– E eu sei
lá! Nem mamãe sabe.
– Como que
mamãe não sabe? Eu não sou filho dela?
– Olha, cara, acho melhor você
conversar isso com ela. Depois, sabe, não era pra você saber, não era pra te
contar nada...
– Contar o
quê?
– Bem, na verdade, você não é
irmão-irmão, da gente. Você é irmão, assim, por acaso.
– É?
– É.
– Conta...
– Um dia estava chovendo demais. Era de
tarde mas parecia de noite. Tudo preto, sabe? Relâmpago, trovão, enxurrada que
parecia um rio e...
– O que é
enxurrada?
– Mas é besta mesmo... Enxurrada, cara:
aquele tantão de água que escorre pela rua quando chove. Lembra outro dia, a
gente ficou sentado no meio-fio lá de casa, com o pé numa água que descia a
rua... Fizemos barquinho com formiga dentro, lembra?
– Lembro.
– Aquela
água chama enxurrada.
– Ah...
– Pois como eu estava contando, chovia.
E fez enxurrada. Mamãe tinha saído pra comprar pão, eu acho. Quando ela vinha
voltando, viu uma coisa que parecia uma gente, descendo pela enxurrada. Esperou
chegar perto...
Sabe o que
era?
– [...]
– Era você. Todo sujo, fedendo.
Magricela. Aí ela ficou com pena e pegou você. Disse pra gente: “Achei esse
neném na enxurrada, tadinho!
Vamos cuidar dele como se fosse da
família.” Nós também ficamos com dó de você e resolvemos te tratar como irmão
de verdade... Foi assim.
– [...]
– Tá chateado? Liga não. Até que a
gente gosta de você, mesmo sendo irmão de enxurrada.
– [...]
Tump, tump, tump... Passávamos pela
esquina onde havia uma padaria.
Sempre havia alguns amigos por lá
comendo maria-mole. Maria-mole é horrível, mas vinha com revolvinho de plástico
ou estrela de xerife, grudados nela. Estavam lá, três amigos meus, encostados
na guarita alaranjada dos motoristas de ônibus.
– Olha, o “pouca-sombra”!
– E aí, já
deu uns tapas nesse porcaria?
Zombavam do meu irmão mais novo.
Achavam, com certeza, que eu iria rir também.
Me aproximei, tranquilo, um sorrisinho
safado no rosto. Meu irmão, quieto, cabeça baixa. Eles, os caras, falavam
outras gracinhas. Fui chegando, chegando... Dei um tapaço no primeiro que alcancei.
Ele saiu catando cavaco e caiu de cara no chão.
– Ninguém se mete com meu irmão mais
novo, tá falado? Quem se meter com ele vai se ver comigo. Zero a zero?
Silêncio. Continuamos andando pra casa.
Meu irmão mais novo, calado.
Eu, calado.
A merendeira: tump, tump, tump...
Ele não
contou a história da enxurrada para minha mãe.
(CISALPINO, Murilo.
In: RAMOS, Ricardo et alii. Irmão mais velho, irmão mais novo.
São Paulo: Atual,
1992, p. 64-71).
Entendendo o texto:
01 – Quem narra a história é
o irmão mais velho. Que idade provavelmente ele tem? Justifique sua resposta.
Provavelmente ele
tem 11 anos.
02 – No início do texto, o
irmão mais velho descreve o irmão mais novo como "coisica",
montinho", "uma sementinha viva".
a)
Por que, na sua opinião, ele ficava horas
olhando-o no berço?
Porque ele achava que o bebê se mexia estranhamente.
b)
Que tipo de sentimento, provavelmente, ele
tinha pelo irmão?
Ele sentia amor pelo seu irmão.
03 – A partir do segundo
parágrafo do texto, o menino passa a chamar o irmão de "pancada",
"um saco", "meleca", "bostinha" e
"burro".
a)
Que sentimento, na sua opinião, o irmão mais
velho revela, agora, em relação ao irmão mais novo?
Sentia raiva, vontade de esganá-lo.
b)
Por que seu sentimento mudou?
Porque se acontecesse alguma coisa com seu irmão mais novo, era ele
que levava a culpa.
04 – Sempre que um irmão
sente ciúme do outro, achando que está em segundo plano quanto ao carinho dos
pais, a tendência é ele ver a situação de modo exagerado e se fazer de vítima.
Você acha que esse é o caso do irmão mais velho? Por quê?
Sim, porque ele sentia ciúme do outro
irmão.
05 – No final da história, o
comportamento do irmão mais velho surpreende o leitor.
a)
Qual é esse comportamento?
Esse comportamento foi que ele defendeu seu irmão e não juntou-se
aos seus amigos que estavam zombando de seu irmão.
b)
Na sua opinião, qual é a razão dessa mudança
de comportamento?
Na minha opinião a razão dele ter mudado seu comportamento foi para
defender o seu irmão.
06 – O irmão mais novo não
conta à mãe a história da enxurrada.
Por que, na sua opinião, ele escondeu essa história de irmão de enxurrada?
Por que, na sua opinião, ele escondeu essa história de irmão de enxurrada?
Na minha opinião
ele escondeu essa história de irmão de enxurrada, porque ele estava com medo de
sua mãe.
07 – O irmão mais velho, ao
contar a Augusto a história que inventou, termina dizendo que gosta dele, mesmo
ele sendo "irmão de enxurrada", expressão que é o título do texto.
Por que, nessa situação, ele chama Augusto desse modo?
Porque ao contar a história ele falou que
o menino veio da enxurrada, então falou que Augusto era irmão dele, mais de
enxurrada.
08 – Leia este trecho:
"Lembra outro dia, a
gente ficou sentado no meio-fio lá de casa, com o pé numa água que descia a
rua... Fizemos barquinho com formiga dentro, lembra?"
Considerando esse contexto,
que outro sentido, figurado, ganha a expressão "irmão de enxurrada"?
Irmão adotivo.