Crônica: Mentiras Felizes
Walcyr Carrasco
SÁBADO. RESTAURANTE. Entro com uma amiga. Ambos
dispostos a pedir uma salada. Batemos os olhos na mesa do lado. Cumbucas de
feijoada. Não é preciso dizer uma palavra. E uma das raras situações em que se
pode provar a existência da telepatia. Mal o garçom se aproxima, uivamos ao
mesmo tempo:
— Feijoada!
Chegam as duas cumbucas, mais a guarnição. Que
delícia, torresmos! Devoro os meus e os dela. Em compensação, Lalá ataca minha
costelinha. Paio. Carne-seca. Orelha, de porco. Couve com bacon. Farinha. Muito
feijão-preto. Tudo regado a cerveja. Na última garfada, tenho a impressão de
que vou desmaiar, de tão cheio. Ainda encontro forças para a pergunta
essencial:
— O que tem de sobremesa?
Doce de abóbora com queijo para mim. Torta de
chocolate para ela. Raspo o prato. Por pouco, não o lambo. Eu e Lalá poderíamos
sair rolando do restaurante. Pedimos o cafezinho. Quando o garçom serve, ela
exige:
— Traga o adoçante!
Surpreendo-me:
— Você acha que vai emagrecer por conta do
cafezinho?
Ela pinga as gotinhas de hipocrisia e diz com a
voz doce de uma gulosa:
— Sempre é melhor.
Levanta a xícara, certa de que continua fazendo
regime.
É espantoso como o cotidiano é povoado de
enganos. Mentimos a nós mesmos. Damos o truque nos outros. O mais
impressionante é que... funciona!
Outra amiga morre por liquidações. Outro dia
apareceu com a sacola cheia. Três jeans e um par de sapatos um número abaixo do
seu. Apertava, mas, com boa vontade, servia.
.— Aproveitei. O preço está baixíssimo.
Economizei.
-— Mas você tem o armário cheio de jeans! E não
vai suportar o sapato.
Gastou à toa.
Irritou-se. Quem gosta de gastar sempre acha
que economiza.
Mentiras em relação à idade sempre funcionam.
Dia desses uma senhora me revelou:
— Já passei dos 50.
Em seguida, fixou os olhos em mim, aguardando o
"oh" de surpresa. Abati os dez anos de praxe e comentei, com
expressão fascinada:
-— Você não aparenta a idade que tem. Eu não
daria mais que quarenta. Sorriu,
satisfeitíssima. Acreditou. Todo mundo acredita nessa conversa. É a mesma coisa
que encontrar alguém e não se lembrar quem é. O sujeito diz:
— Não está lembrando de mim? Eu sou o...
Imediatamente estico os lábios até as orelhas.
— Você? Mas o que você fez? Parece dez anos
mais jovem!
Claro que eu não o estava reconhecendo.
Em vez de sentir-se insultado, ele infla de
vaidade. Outra coisa que
funciona é dizer, surpreso:
— Que foi que você fez para estar tão
diferente? Cortou o cabelo?
—
Ah, é... Ficou bom?
Aniversários e festas também são um prato cheio
para as falsidades.
Encontro um conhecido e comento:
-— Ah, soube que você fez aniversário.
— Por que você não foi?
— Bem... É que nem fiquei sabendo da festa.
— Ah, eu não avisei ninguém. Foi quem quis.
Mentira deslavada. Todo mundo liga convidando
os amigos. Dizer que ficou com a mesa posta e a porta aberta é pura
malandragem. A pior de todas é quando sou empurrado para a casa de alguém.
Chego e descubro que está rolando a maior festa, para a qual não fui convidado.
Tento sair correndo. O anfitrião chega, de braços abertos:
— Que bom que você veio!
Bom por quê? Se achasse que era bom, teria me
chamado. Agradeço e trato de pegar uma bebida. O outro lado da moeda é chegar
de mãos abanando.
— Não deu tempo de comprar seu presente. Depois
eu...
Depois coisa nenhuma. Posso beber, comer e me
fartar sem dor na consciência. Finjo acreditar que comprarei o presente. O dono
da casa finge que vai ganhar, e a noite segue.
Mentiras são mentiras. Mas algumas tornam a vida mais confortável. Quem não adora uma pequena e deliciosa falsidade?
Entendendo o texto
01. O que o autor e
sua amiga decidem pedir no restaurante no início da crônica "Mentiras
Felizes" de Walcyr Carrasco?
a) Lasanha.
b)
Feijoada.
c) Salada.
d) Sushi.
02. Por que o autor
se surpreende quando a amiga pede adoçante para o cafezinho?
a) Ele não esperava
que ela gostasse de café.
b) Ele acredita que
ela não está fazendo regime.
c) Ele
acha que ela não deveria se preocupar com o café.
d) Ele acha estranho
o adoçante após uma feijoada.
03. Qual é o tema
principal abordado pelo autor na crônica?
a) As vantagens da
telepatia.
b) A importância das
dietas.
c) As
mentiras cotidianas.
d) As experiências
em restaurantes.
04. Como o autor
descreve o comportamento da amiga que compra roupas em liquidações?
a) Econômica.
b)
Despreocupada.
c) Desastrosa.
d) Arrependida.
05. O que o autor
menciona sobre mentir em relação à idade?
a) Todos dizem a
verdade sobre sua idade.
b) Sempre
funciona.
c) É uma prática
desonesta.
d) Nunca é
aceitável.
06. Como o autor
descreve a reação das pessoas quando alguém diz que não se lembra delas?
a) Ficam ofendidas.
b) Sentem-se
insultadas.
c) Aceitam
a situação com naturalidade.
d) Riem e elogiam a
mudança.
07. Qual é a
situação em que o autor menciona ser empurrado para a casa de alguém sem
convite explícito?
a)
Aniversários.
b) Festas de
casamento.
c) Reuniões
familiares.
d) Jantares
improvisados.
08. Como o autor
reage quando chega à festa para a qual não foi convidado?
a) Sair correndo.
b)
Agradecer e entrar.
c) Expressar sua
surpresa.
d) Ignorar a
situação.
09. O que o autor
menciona sobre chegar de mãos abanando em uma festa?
a) Pode
ser constrangedor.
b) É a atitude mais
honesta.
c) É uma tradição
aceitável.
d) Não há problema
em não levar presente.
10. Qual é a
conclusão geral do autor sobre as mentiras abordadas na crônica?
a) São
desnecessárias.
b) Tornam
a vida mais confortável.
c) Devem ser
evitadas a todo custo.
d) Não têm impacto
na vida cotidiana.
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