Crônica: Achando
o amor
Paulo
Mendes Campos
Ele tem quinze anos, calça 42, usa cabelos
razoavelmente compridos. Estava num bar do Leblon, na companhia de castigados
adultos. Estes tomavam uísque; o rapazinho tomava a segunda coca média. Quando
os homens feitos já tinham falado sobre mulheres, o time do Flamengo, o custo
de vida, reviravolta política dum país africano, desastre espetacular no
aterro, música da moda, o silêncio entrou no bar e empapou tudo como gordura.
Um silêncio hepático ou pancreático ou esplenético. O silêncio que intoxica os
etílicos. Para agravar o oleoso drama, era aquela hora da noite, já um pouco
tarde para o jantar doméstico e ainda um pouco cedo para a irresponsabilidade.
O encaroçado point of no return dos boêmios.
Aí o jovem disse que estava juntando
dinheiro para comprar um sabiá. Talvez não comprasse um sabiá, mas um curió. Ia
para o colégio de ônibus porque sempre estava em cima da hora, mas voltava a
pé. Não comia sanduíche no recreio. Sabiá tá caro! Vendedor de passarinho tem
muito trambique. Ele chateou tanto um, ali naquela lojinha de Ipanema, pedindo
abatimento para pintassilgo, que o homem acabou lhe ensinando onde se compra
pintassilgo mais barato na cidade. Tinha em casa azulão, canário, coleiro,
bigodinho... Teve bicudo, corrupião, mainá... O triste é que passarinho morre.
Então os etílicos foram buscar
passarinhos no fundão do tempo e começaram também a passarinhar. O bar noturno
virou um viveiro de cantores e cores. O Silêncio voltou de novo mais limpo,
exorcizado.
O jovem retomou a palavra: o passarinho
que mais o entusiasmou a vida toda não cantava nem era bonito. Até o dicionário
dizia que ele era feio. Foi ao dicionário por não saber se o certo era chopim
ou chupim.
O
chupim põe os ovos em ninho de tico-tico, e é este que cria os filhotes. Tinha
descoberto numa árvore da lagoa Rodrigo de Freitas um ninho de tico-tico com um
ovo de chupim. Quando o chupim nasceu, o problema era mantê-lo vivo: arranjou
um conta gotas e, todas as tardes, depois das aulas, subia à árvore e descia
alimentos líquidos pela goela do filhote. No momento certo, levou o chupim pra
casa. O passarinho não ficava preso, pelo menos grande parte do tempo, mas
pousado num galho de arbusto decorativo. Saía às vezes para passear com o
chupim e a cachorrinha: ele na frente, o chupim andando atrás, a cachorrinha
saltitando em torno. Bastava um gesto e um assovio para que o chupim decolasse
e viesse pousar em seu ombro. Espetacular! Pouco depois, passou a lançar o
passarinho pela janela; ele sumia durante uma ou duas horas, pousando à tarde
na amendoeira de defronte; um assovio, e o passarinho entrava pela janela,
pousando no ombro do dono. Como um falcão amestrado! Mas era um chupim, um feio
e triste chupim!
Uma tarde, quando o passarinho andava
lá por fora, caiu a tempestade. O chupim não voltou. Ele ficou à janela até
depois de escurecer; mas o chupim não voltou. Esperou ainda durante uma semana,
sabendo que esperava sem motivo.
Confesso que fiquei triste às pampas,
disse o jovem.
Aí o Silêncio que entrou parecia uma
enorme bola de sabão, uma coisa que não vale nada, mas que nos inquieta de leve
quando se desfaz.
O jovem arrematou: É engraçado, eu
senti por aquele chupim um negócio esquisito. Eu não tenho vergonha de dizer
pra vocês: chorei por causa do meu chupim. Eu sentia uma afeição pelo chupim...
uma coisa profunda mesmo... Ora, eu amava aquele chupim... Agora é que tou
entendendo: o que eu tinha pelo chupim era amor.
CAMPOS,
Paulo Mendes. Balé do pato e outras crônicas. São Paulo, Ática, 1998. p. 93-5.
Fonte: Linguagem
Nova. Faraco & Moura. Editora Ática. 8ª série. p. 12-4.
Entendendo a crônica:
01 – O texto é narrado em
primeira pessoa ou em terceira pessoa? Transcreva do primeiro parágrafo o
pronome pessoal que justifica sua resposta.
Terceira pessoa.
Ele.
02 – Nesse mesmo parágrafo,
o narrador emprega um adjetivo para caracterizar os adultos.
a)
Que adjetivo é esse?
Castigados.
b)
Que conotação pode ter essa palavra no texto?
Ao empregar essa palavra, o narrador possivelmente quis referir-se
ao sofrimento das pessoas ou ao fato de já terem tido bastante experiência com
fatos tristes na vida.
03 – “... o Silêncio entrou
no bar e empapou tudo como gordura.” Por que a palavra silêncio está
empregada como inicial maiúscula?
A maiúscula
personifica o silêncio, reforçando ideia da sua presença.
04 – O silêncio que toma
conta do bar é caracterizado, no primeiro parágrafo, por adjetivos que se
referem a três órgãos do corpo: baço, pâncreas e fígado.
a)
Transcreva do texto o adjetivo correspondente
a cada um desses órgãos.
Baço: esplenético. Pâncreas: pancreático. Fígado: hepático.
b)
Por que o narrador faz referência a esses
órgãos do corpo e não a outros? Considere que se trata de um grupo de boêmios.
Porque esses são os órgãos geralmente mais afetados pelas bebidas
alcoólicas.
05 – Etílico significa “provocado pelo álcool; alcoólico”. No
texto, quem são os etílicos?
São os adultos
que tomam bebidas alcoólicas.
06 – “... os etílicos fora
buscar passarinhos no fundão do tempo...”. O que o autor quis dizer com essa
afirmação?
Os boêmios começaram a contar suas
histórias de passarinho que tinham ocorrido muito tempo atrás.
07 – No segundo parágrafo, o
narrador emprega uma frase que antecipa o final da história. Que frase é essa?
“O triste é que passarinho morre”.
08 – No terceiro parágrafo,
utiliza-se uma metáfora para caracterizar a atmosfera do bar depois que
começaram as conversas sobre passarinho. Transcreva essa metáfora.
“Viveiro de
cantores e cores”.
09 – O que o narrador quer
dizer ao afirmar que o silêncio voltara mais limpo?
Todos já tinham
falado sobre suas histórias com passarinho; não havia mais ambiente tenso,
angustiante, em que não se sabe o que dizer.
10 – O narrador compara o
silêncio que se instalou pela terceira vez no bar ao efeito provocado por uma
enorme bola de sabão que se desfaz. Explique.
A história
contada pelo jovem era uma história comum, sem nenhum valor especial para as
pessoas que a ouviam, como a bola de sabão, mas seu final e a confissão da
tristeza causaram o silêncio inquietante, a inquietação da bola que se desfaz.
11 – Até chegar à
constatação de que seu sentimento pelo chupim era amor, o jovem estabelece uma
gradação de sentimentos. Transcreva essa gradação.
Negócio esquisito / afeição / coisa
profunda / amor.
12 – No texto, o silêncio
sempre aparece com características de um ser vivo, é tratado como pessoa. Como
se chama essa figura de estilo?
Personificação ou prosopopeia.
13 – O verbo passarinhar
pode significar “caçar passarinho”. No texto, esse verbo não foi empregado com
esse sentido, mas sim com sentido figurado. Justifique essa afirmativa.
No texto o verbo
pode ter o sentido de contar histórias de passarinho, com a alegria e a
algazarra que fazem os passarinhos quando estão em bando.
14 – “O chupim põe os ovos
em ninho de tico-tico, e é este que cria os filhotes”.
a)
O comportamento do chupim pode caracterizar
que tipo de gente?
Pode caracterizar pessoas que vivem à custa de outras ou que se
aproveitam de outras.
b)
Na escola, o que seria um(a) chupim?
Alunos que não fazem trabalho e só assinam; alunos que não estudam e
colam, e assim por diante.