CRÔNICA: O valor do verdadeiro e do falso amigo
Ilka Brunhilde Laurito
Meus primos haviam ganho do pai um
burrico muito engraçadinho, com o qual passeavam para baixo e para cima das
ladeiras, fazendo inveja às outras crianças. Passear para baixo e para cima era
fácil na Saracena, já que a aldeia, toda rodeada dos antigos muros das
fortificações antigas, tinha uma parte alta, que terminava ao pé das montanhas
e onde se viam ainda as ruínas do velho castelo dos príncipes que haviam sido
os donos da terra em tempos passados.
Um dia, meus primos me convidaram para passear
de burrico com eles e com a prima Rina. Fiquei felicíssima e pedi licença para
vovó Catarina, que me recomendou muito cuidado.
Como era ainda pequena e não sabia
montar sozinha, os primos me puseram na garupa, atrás de Rina. Nós duas começamos
a andar gloriosamente ruma às ladeiras que iam das na estradinha que ficava
fora dos muros da aldeia e se dirigia ao convento dos padres.
Os meninos nos acompanhavam a pé,
fazendo a maior algazarra e judiando do burrico, que chicoteavam sem a menor
necessidade. Com justa razão, numa certa hora o bicho protestou, esperneando. E
Rina caiu. Por milagre, que não sei explicar até hoje, fiquei agarrada ao lombo
do animal como um carrapato. Para quê... Foi o bastante para que meus primos
gritassem furiosamente comigo, acusando-me de ter empurrado Rina para baixo da
garupa.
Eu quis me defender, dizer que era tudo
mentira e que, se fosse verdade, eu confessaria. Mas não adiantou nada. Eles
não acreditaram em mim, me fizeram apear, berrando nos meus ouvidos como se
também me chicoteassem:
-- Foi você, Fortunatella! Foi você!
Comecei a chorar, olhando para o
burrico, que sacudia continuamente as orelhas, como se estivesse dizendo para
os meninos, com pena de mim: “Não foi ela, não, fui eu...”.
Mas meus primos nem deram atenção ao
burrico. E, para se vingarem, resolveram impor-me um castigo:
-- Para pagar a sua culpa, você tem de
ir comprar um caderno no armazém do seu Alfonso.
Embora não fosse culpada, achei o castigo
fácil, e resolvi obedecer para continuar a brincar de montaria. Meus primos me
deram uma moedinha, e eu fui, sem desconfiar de nada.
Entrei no armazém e disse:
-- Seu Alfonso, eu quero um caderno bem
bonito.
E estendi a moeda. O velho Alfonso,
muito desconfiado, porque minha avó nunca me mandava fazer compras, pegou a
moeda, virou-a e revirou-a na palma da mão e sumiu nos fundos do armazém, sem
dizer uma única palavra.
“Vai ver ele está procurando o caderno
mais bonito que tem”, pensei eu muito orgulhosa, achando que os primos iam
ficar satisfeitos com meu serviço.
E o burrico, meu amigo, muito mais
ainda. Enquanto esperava, porém, ouvi um barulho muito forte lá dentro, assim
como as batidas do ferreiro, que, todas as manhãs e todas as tardes, arrumava a
ferradura dos cascos dos cavalos.
A aldeia era como uma família só. E,
naquele dia, acho que seu Alfonso, muito amigo do vovô Vincenzo, resolveu me
dar uma lição. Quando voltou ao salão da frente do armazém, jogou a moeda em
minha mão. Apanhei-a e soltei um grito de dor! Era uma placa de latão que,
achatada pelas marteladas que levara, ardia como ferro em brasa. Na minha mão
nascia uma bolha, enquanto eu, de rosto vermelho de espanto, ouvia seu Alfonso:
-- Fortunatella, nunca mais engane
ninguém, que é muito feio! Vou contar ao seu avô que você quis me passar a
perna me dando uma moeda falsa...
Saí chorando do armazém e fui ao
encontro dos meus primos, que riam. Foi então que compreendi.
Eles haviam se vingado de mim por causa do
tombo da Rina. Ou teria sido por causa do ciúme e da inveja que sempre haviam
sentido do amor que vovô Vincenzo e vovó Catarina me davam?... Só sei que,
naquele momento, olhando para aquela latinha redonda e amassada, ali no chão, e
olhando para o bicho pensativo, que olhava para mim com um ar que parecia de
piedade, eu estava começando a compreender que não há moeda mais falsa no mundo
do que uma falsa amizade.
Nunca mais fui brincar com meus primos
desleais. Pena foi ter perdido a companhia leal do burrico...
LAURITO, Ilka
Brunhilde. A menina que fez a América. São Paulo: FTD, 1995. p. 43-6.
Fonte: Língua Portuguesa –
Coleção Mais Cores – 5° ano – 1ª ed. Curitiba 2012 – Ed. Positivo p. 135-141.
Entendendo o texto:
01 – Quem narra essa
história criada por Ilka Brunhilde Laurito?
Fortunatella.
02 – Onde se passa essa
história?
Saracena.
03 – Fortunatella e seus
primos saíram para passear de burrico.
a) Que incidente aconteceu para que os primos ficassem tão furiosos?
Seus primos achavam que ela tinha derrubado a Rina do burrico.
b) Qual foi a causa desse incidente?
Foi um protesto do burrico, que esperneando derrubou a Rina.
04 – Os primos de
Fortunatella lhe impuseram um castigo.
a) Qual foi esse castigo?
Que ela fosse ao armazém do seu Alfonso comprar um caderno.
b) Por que Fortunatella recebeu tal castigo?
Porque todos achavam que tinha derrubado a Rina de propósito.
c) Você acha que o castigo imposto a Fortunatella foi uma atitude justa? Por quê?
Não. Porque eles não tinham certeza de que foi Fortunatella que
tinha empurrado a Rina.
d) Como você agiria, se estivesse no lugar de Fortunatella?
Eu tentaria ao máximo fazer que eles acreditassem em mim.
05 – Leia o que seu Alfonso
disse a Fortunatella.
“-- Fortunatella, nunca mais engane
ninguém, que é muito feio! Vou contar ao seu avô que você quis me passar a perna me dando uma
moeda falsa...”.
a) O que significa a expressão destacada acima?
Enganar, trapacear.
b) Qual foi o motivo do choro de Fortunatella enquanto seu Alfonso falava com ela?
Que ela não tinha a intenção de enganar, mas foi enganada pelos
primos.
06 – Observe as palavras
destacadas nesta frases e depois resolva as questões.
“— Seu
Alfonso, eu quero um caderno bem bonito.”
“Vou contar ao seu avô que você quis me passar a perna me dando uma moeda
falsa...”
a) O significado da palavra destacada é o mesmo nas duas frases? Justifique sua resposta.
Não. A palavra seu é uma forma de tratamento: Senhor. No segundo, a
palavra indica posse, é um pronome possessivo.
b) Agora, elabore duas frases usando a palavra seu, usando os significados descobertos por você.
- Olá Seu Lucas, como vai?
- Oi, seu carro é novo?
07 – Observe o uso de
vírgula nas seguintes falas.
“-- Foi você, Fortunatella! Foi você!”
“-- Seu Alfonso, eu quero um caderno
bem bonito.”
“-- Fortunatella, nunca mais engane
ninguém.”
a) Com auxílio de seu professor, explique por que a vírgula foi usada nesses casos.
Para isolar o vocativo ou expressão usada para chamar alguém.
b) Compare as falas a seguir.
“Quem é Francisco?
“Quem é, Francisco?
O sentido das duas frases é o mesmo? Qual a diferença? Troque ideias com seu professor e colegas. Depois, registre nas linhas as conclusões a que vocês chegaram.
Não. Na primeira fala está sendo feito
uma pergunta, quem é a pessoa. E na segunda, pergunta a pessoa o que é.