CRÔNICA: RECADO PRO BOLSINHO DA CAMISA
Lourenço Diaféria
Não sei como você se chama,
garoto, mas te vi um dia atravessando o viaduto de concreto.
Caía chuvisco.
Teus cabelos estavam ensopados e a camisa de brim grudada
no teu corpo magro e ágil como flecha disparada pelo arco do trabalho.
Você corria saltando no reflexo do asfalto molhado, como bolinha de gude rolada
na infância.
Não deu tempo para perguntar teu nome. Tuas pernas finas tinham pressa. Você
carregava a maleta de mão com fecho cromado, a dentro dela havia o peso da
responsabilidade de papéis sérios e urgentes, que deveriam chegar a um ponto
qualquer da Cidade, antes que se fechassem os guichês e portarias.
Outra vez te vi, garoto.
Fazia então um sol redondo e cheio pendurado no travessão do espaço.
Outra vez, teus cabelos úmidos de suor, a camisa de brim manchada, as calças
rústicas mostrando a marca da barra que tua mãe soltou de noite, fio por fio,
com um sorriso e um orgulho: - O moleque está crescendo!
Não sei como você se chama, garoto.
Te conheço de vista escalando os edifícios, alpinista de elevadores, abridor de
picadas na multidão , ponta de lança rompedor nesta briga de foice que são as
ruas da Cidade.
Garoto que cresce sob o sol e chuva carregando na maleta cheques, duplicatas,
títulos, recibos, cartas, telegramas, tutu, bufunfa, grana e um retrato da
menina que te espera na lanchonete.
Teu nome é: - gente.
Inventaram outro nome enrolado para dizer que você é garoto do batente.
Office-boy.
Guri que finta branco, escritório, repartição, fila, balcão, pedido de
certidão, imposto a pagar, taxa de conservação, título no protesto e que mata
no peito e baixa no terreno quando encontra os olhos da garota da caixa, que
pergunta de modo muito legal:
– Tem dois cruzeiros trocados?
Moleque valente que acorda cedo, engole café com pão, fala tchau mesmo, vai pro
ponto do ônibus ou estação, se pendura na condução, se vira mais que pião, tem
sua turma, conta vantagem, lê jornal na banca, esquenta a marmita, discute a
seleção, e depois do almoço bebe um refrigerante gelado e pede uma esfirra com
limão.
E depois toca de novo a zunir pela Cidade, conhecido em tudo que é esquina, oi
daqui, oi dali, até que a tarde chega e o garoto sai correndo de volta pra
casa, vestir o guarda-pó, apanhar a esferográfica, enfiar os cadernos na sacola
e enfrentar a escola, o sono, a voz do professor, o quadro-negro, a equação de
duas incógnitas, depois de ter passado o dia inteiro gastando sola.
Guri, teu nome é: – gente
Menino de escritório, menino do batente, que agarra o trabalho com unhas e
dentes, sem você a Cidade amanheceria paralisada como bicho enorme ao qual
houvesse cortado as pernas.
Pois bem: este recado não é para ser entregue a ninguém, a não ser a você
mesmo.
Se quiser, guarde-o no bolsinho da camisa.
Um dia, quando você estiver completamente crescido, quando tiver bigodes,
telefones, papéis importantes para preencher, alguns cabelos brancos; e sua mãe
não precisar (ou não puder mais) desmanchar a barra de suas calças que ficaram
curtas; quando você tiver de dar ordens de serviço a outros garotos da Cidade,
saberá que, para chegar a qualquer lugar, o segredo é não desistir no meio do
caminho.
Mas não se esqueça de que as oportunidades não apenas se recebem ou se
conquistam.
As oportunidades também devem ser oferecidas para que as pessoas pequenas
saibam que seu nome é: – gente.
No futebol da vida, garoto, a parada é dura e a bola, dividida. Jogue o jogo
mais limpo que você tiver. Jogue sério.
Não afrouxe se o passe recebido parecer longo demais.
Os mais bonitos gols da vida são marcados pelos que acreditam na força de seu
pique.
Ponha esse recado no bolsinho da camisa, guri.
Um dia você descobrirá que a vida nem sempre é a conquista da taça.
A vida é participar do campeonato.
Vai nela, garotão!
(Antologia da crônica brasileira – de Machado de Assis a Lourenço Diaféria. São Paulo: Moderna, 2005. p. 196-9.)
Fonte: Livro- Português:
Linguagem, 3/ William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães, 11.ed – São
Paulo: Saraiva, 2016.p.35-7.
Entendendo
o texto
1. A crônica é um gênero
textual que oscila entre literatura e jornalismo e, antes de ser publicada em livro,
costuma ser veiculada em jornal ou revista.
Na crônica lida, o cronista
dirige-se diretamente à personagem que é tema do seu texto.
a) A personagem é uma celebridade ou uma pessoa comum, encontrada no cotidiano da cidade grande?
É uma pessoa comum, encontrada no dia a dia das grandes cidades.
De situações circunstanciais comuns, que dizem respeito ao cotidiano
dos jovens que trabalham como office-boys.
2. A crônica é quase sempre
um texto curto, com poucas personagens, e que chama a atenção para acontecimentos
ou seres aparentemente inexpressivos do cotidiano. Na crônica lida, o cronista
focaliza uma personagem comum na vida urbana.
a)
O que
chama a atenção do cronista nessa personagem?
O fato de a personagem, que
é um jovem, estar sempre correndo, sob sol ou chuva.
Como um ser coletivo, como representante
de todos os office-boys que circulam nas cidades grandes.
c)Em que lugares e em que
períodos de tempo o cronista situa sua personagem?
O cronista situa a personagem nos
lugares nos quais ela circula – a sua casa, as ruas, os estabelecimentos onde
cumpre suas tarefas, a lanchonete onde namora, a escola noturna, etc. – no
decorrer de um dia; e, no final da crônica, imagina-a no futuro, em situação de
chefia em uma empresa.
3. Em uma crônica, o
narrador pode ser observador ou personagem. Qual é o tipo de narrador na crônica
em estudo? Justifique sua resposta.
Narrador observador, pois
ele não participa dos fatos que narra, embora se imagine falando com a
personagem.
4. O cronista costuma ter
sua atenção voltada para fatos do dia a dia ou veiculados em notícias de jornal
e os registra com humor, sensibilidade, crítica e poesia. Ao proceder assim,
quais dos seguintes objetivos o cronista espera atingir com seu texto?
a) Informar os leitores sobre um assunto.
b) Entreter os
leitores e, ao mesmo tempo, levá-los a refletir criticamente sobre a vida e os
comportamentos humanos.
c) Dar instruções aos leitores.
d) Tratar de um assunto cientificamente.
e) Argumentar, defender um ponto de vista e convencer o
leitor.
f) Despertar no leitor solidariedade por um
tipo humano.
5. Observe a linguagem
empregada na crônica em estudo.
a) Como é retratada a vida
da personagem: de forma impessoal e objetiva, isto é, em linguagem jornalística,
ou de forma pessoal e subjetiva, ou seja, em linguagem literária?
De forma pessoal e
subjetiva, em linguagem literária.
b)A crônica, quanto à
linguagem, está mais próxima do noticiário de jornais e revistas ou mais
próxima de textos literários?
Está mais próxima de textos
literários.
“Não sei como você se chama, garoto, mas te vi um dia atravessando o viaduto
de concreto.”
Como esse desvio pode ser explicado?
O emprego do pronome te em
vez de lhe confere informalidade ao texto, contribuindo para a comunicação
coloquial no diálogo fictício do cronista com o jovem.
c)O cronista emprega vários
substantivos, sinônimos, para se referir à sua personagem. Quais são eles? E
qual é, para ele, o substantivo que, de fato, corresponde ao nome do jovem?
Garoto, menino,
moleque, guri/gente.
6. Ao retratar as andanças
da personagem pela cidade, o cronista emprega um vocabulário relacionado ao
campo semântico de um esporte.
a) Qual é esse esporte?
Justifique.
O futebol, de cujo campo semântico
fazem parte expressões como “travessão”, “finta”, “mata no peito”, “bola dividida”,
“jogo mais limpo”, “gols”, “campeonato”, etc.
b)Com que finalidade o
cronista tem esse procedimento?
Estabelecer uma comparação
entre a vida e o futebol, sintetizada na expressão “o futebol da vida”.
a) Que tempo verbal
predomina na crônica em estudo?
O presente do
indicativo.
b)Que efeito de sentido a
escolha desse tempo verbal
confere ao texto?
O de o leitor ser conduzido pelo
cronista, envolver-se com os pensamentos dele e participar das cenas que ele
descreveu.