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segunda-feira, 11 de novembro de 2024

CONTO: MYSTERIUM - LYGIA FAGUNDES TELLES - COM GABARITO

 Conto: Mysterium

           Lygia Fagundes Telles

        “Eu vi ainda debaixo do sol que a corrida não é para os mais ligeiros, nem a batalha para os mais fortes, nem o pão para os mais sábios, nem as riquezas para os mais inteligentes, mas tudo depende do tempo e do acaso.” 

(Eclesiastes) 

        Ao tempo e ao acaso eu acrescento o grão de imprevisto. E o grão da loucura, a razoável loucura que é infinita na nossa finitude. Vejo minha vida e obra seguindo assim por trilhos paralelos e tão próximos, trilhos que podem se juntar (ou não) lá adiante mas tudo sem explicação, não tem explicação. 

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEghtdfwsCTWFNPDPhGqkON7KBgkHt4CBtdTQe8BBiBkb4QW_8f8SwpXmyLhH-pIZIFTAY1oh-sy-6rKhVJUO-XvgEZhMrSXPYRCoq54Z3Nd5OtjDUEYm-HwSpnPR77pXQLa_wHcMZVSufdii83JYtFxf8ep1garbsqLuWuhPlP7gT69tyM_Vc-i95fgCzw/s320/IMPREVISTO.jpg


        Os leitores pedem explicações, são curiosos e fazem perguntas. Respondo. Mas se me estendo nas respostas, acabo por pular de um trilho para outro e começo a misturar a realidade com o imaginário, faço ficção em cima de ficção, Ah! Tanta vontade (disfarçada) de seduzir o leitor, esse leitor que gosta do devaneio. Do sonho. Queria estimular sua fantasia mas agora ele está pedindo lucidez, quer a luz da razão.

        Não gosto de teorizar porque na teoria acabo por me embrulhar feito um caramelo em papel transparente, me dê um tempo! Eu peço. Quero ficar fria, espera. Espera que estou me aventurando na busca das descobertas. “Devagar já é pressa!”, disse Guimarães Rosa. Preciso agora atravessar o cipoal dos detalhes e são tantos! E tamanha a minha perplexidade diante do processo criador, Deus! Os indevassáveis signos e símbolos. Ainda assim, avanço em meio da névoa, quero ser clara em meio desse claro que de repente ficou escuro, estou perdida? 

        Mais perguntas, como nasce um conto? E um romance? Recorro a uma certa aula distante (Antônio Candido) onde aprendi que num texto literário há sempre três elementos: a ideia, o enredo e a personagem. A personagem, que pode ser aparente ou inaparente, não importa. Que pode ser única ou se repetir, tive uma personagem que recorreu à máscara para não ser descoberta, quis voltar num outro texto e usou disfarce, assim como faz qualquer ser humano para mudar de identidade. 

        Na tentativa de reter o questionador, acabo por inventar uma figuração na qual a ideia é representada por uma aranha. A teia dessa aranha seria o enredo. A trama. E a personagem, o inseto que chega naquele voo livre e acaba por cair na teia da qual não consegue fugir, enleado pelos fios grudentos. Então desce (ou sobe) a aranha e nhac! Prende e suga o inseto até abandoná-lo vazio. Oco. 

        O questionador acha a imagem meio dramática mas divertida, consegui fazê-lo sorrir? Acho que sim. Contudo, há aquele leitor desconfiado, que não se deixou seduzir porque quer ver as personagens em plena liberdade e nessa representação elas estão como que sujeitas a uma destinação. A uma condenação. E cita Jean-Paul Sartre que pregava a liberdade também para as personagens, ah! Odiosa essa fatalidade dos seres humanos (inventados ou não) caminhando para o bem e para o mal. Sem mistura.

        Começo a me sentir prisioneira dos próprios fios que fui inventar, melhor voltar às divagações iniciais onde vejo (como eu mesma) o meu próximo também embrulhado. Ou embuçado? Desembrulhando esse próximo, também vou me revelando e na revelação, me deslumbro para me obumbrar novamente nesta viragem-voragem do ofício. 

TELLES, Lygia Fagundes. Durante aquele estranho chá: perdidos e achados. Rio de Janeiro: Editora Rocco, Rio: 2002.

Fonte: Português – José De Nicola – Ensino médio – Volume 1 – 1ª edição, São Paulo, 2009. Editora Scipione. p. 203-204.

Entendendo o conto:

01 – Qual a principal temática abordada no conto?

      A principal temática é o processo criativo da escrita. Lygia Fagundes Telles reflete sobre as dificuldades e os prazeres de escrever, a relação entre o autor e o leitor, e a natureza da ficção.

02 – Qual a importância da citação de Eclesiastes no início do conto?

      A citação de Eclesiastes introduz a ideia da incerteza e da imprevisibilidade da vida. Ela estabelece um paralelo com o processo criativo, que também é marcado pela incerteza e pela busca por significado.

03 – Qual a metáfora utilizada pela autora para representar o processo de criação?

      A autora utiliza a metáfora da aranha e da teia para representar o processo de criação. A aranha tece a trama, que seria o enredo, e o inseto capturado representaria a personagem. Essa metáfora sugere que o escritor captura e manipula elementos da realidade para criar suas histórias.

04 – Qual a importância da interação entre o autor e o leitor para Lygia Fagundes Telles?

      A interação entre o autor e o leitor é fundamental para Lygia Fagundes Telles. Ela destaca a curiosidade dos leitores e a necessidade de explicar o processo criativo. Ao mesmo tempo, ela questiona a possibilidade de oferecer explicações definitivas e completas sobre a criação literária.

05 – Como a autora aborda a questão da liberdade e do destino nas personagens?

      A autora apresenta diferentes perspectivas sobre a liberdade e o destino das personagens. Por um lado, a metáfora da aranha e da teia sugere que as personagens estão presas a uma trama pré-determinada. Por outro lado, a autora reconhece a importância da liberdade e da autonomia das personagens.

06 – Qual a relação entre o conto e a vida real?

      O conto estabelece uma relação entre o processo criativo e a vida real. A autora utiliza elementos da realidade para construir suas histórias, mas também reconhece a importância da imaginação e da ficção. A busca por significado tanto na vida quanto na literatura é um tema central do conto.

07 – Qual a principal mensagem do conto "Mysterium"?

      A principal mensagem do conto é que o processo criativo é um mistério. Não há uma fórmula única para criar uma obra de arte, e cada escritor utiliza suas próprias ferramentas e estratégias. A escrita é uma jornada de descoberta e de autoconhecimento.

 

 

quarta-feira, 23 de outubro de 2024

CONTO: LUVIBÓRIX - FRAGMENTO - CARLOS EMILIO CORRÊA LIMA - COM GABARITO

 Conto: Luvibórix – Fragmento

        Ele mantém somente um olho fechado para que o outro veja normalmente o espaço. Tampa um olho enquanto mantém outro aceso vibrando, vivo, vivendo. Interessantíssimo. Por que não abre os dois juntos? Não pode. Um olho está costumado. Não pode fazer assim. Se vendasse o outro olho e reabrisse o direito, por exemplo, veria outro espaço, outros seres e coisas, um universo distinto desse em que nós estamos. Com os dois olhos abertos misturaria os dois universos numa visão simultânea. O universo esquerdo se chocaria com o universo que flui do olho direito, com este universo que resiste sólido, dentro do qual vivemos tudo que é possível. As coisas e seres novos se embaralhariam com tudo que já existe, se fundiriam, tudo poderia mesmo atingir o ponto da destruição final.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhnje-27dIW0k-GCmFlFhU9w89RQQjIWe93MBXDuH-4JIbcVoN9abbE3N0Wh4aJi4o1x8OVhHuxUyTVBPySOq8vknokHm5vg68XYv1U-lgs2wo5aW7dzvHPmRli1JmeAMPljdvwjlDnsxgBz0xQfHbQ_WdlsLHbH9Vl3mtVq9IzgeKGOyioqI3g-IAxo3I/s320/2%20UNIVERSOS.jpg


    Os dois universos, o oculto dentro do seu globo ocular, e o visível, cujas raízes são os raios do seu olho desimpedido, não podem ocorrer ao mesmo tempo exato. Não caberiam juntos no espaço. Seria o desastre, o cataclismo temido desde sempre? Por isso o guardam, por isso o servem e protegem. Eu sou um desses.

        Quando o vi pela primeira vez, mantinha-se quieto, melancólico, no fundo do grande poço, e continuava a ser alimentado por pedras maciças, granito e mármore, cristais e ferro, torres e pináculos, restos das estátuas e paredes das demolições preciosas por ele prefixadas com sábia antecedência. Jogávamos-lhe amontoados de rosas também. Esfregava as rosas nas superfícies ásperas, granulosas, irritantes de certos blocos de pedra inteiriça e só depois é que os comia. Ouvíamos o triturar de suas mandíbulas dentadas. Raras vezes podia sair lá debaixo. Gostava mesmo de caminhar pelas galerias subterrâneas e de molhar seu corpo de réptil nas águas das cavernas secretas, nas cachoeiras profundas. Seu olho direito dilatado mantinha o mundo suspenso e intacto, perene. O horizonte, as montanhas e os povos.

        Ao digerir pela enésima vez uma cabeça de apóstolo João, esculpida em série por um artesão-escultor do século XII, anônimo, exasperou-se, lembrou-se. Precisava novamente vistoriar o canteiro de obras de devastação em que se transformara o planeta fixado pelo seu olhar de limites. Resolveu pedir para habitar a superfície da Terra por algumas semanas (foi o que disse no início) para realizar mais uma inspeção, ver como iam seguindo os trabalhos de seus desejos.

        Pôs o tapa-olho preferido sobre o olho hermeticamente fechado, perpétuo em sua imobilidade; subiu lentamente pela escada de aço e pediu-me que o guiasse pelos arredores porque, disse-me, entre entristecido e indiferente, ficara desacostumado e tudo na superfície se modicava muito rapidamente mercê das ações de suas formigas obreiras, nós, os seres humanos. Não reencontraria os caminhos do milênio passado, bastante provável, entre os novos guindastes que se moviam entre um entrecruzar-se metálico pela planície de neve interminável.

        Ouçam a sirene vermelha do carro-esteira. Escondam-se todos no interior das máquinas, em suas casas-nômades. É ainda o olho direito que está aberto! Mesmo assustados com sua passagem todos vocês podem respirar com alívio, nosso universo, nosso mundo equilibra-se a salvo. Posso notar que é olho direito arregalado e tenso, sedento de ar e de luz, a irradiar e a reter tudo o que está presente, posso perceber com perfeição o olho aberto modelador já que bem perto de mim ele sentou-se, instalou-se, sua cabeça. Não tenho medo, fui capacitado para não sentir pavor ante sua presença e depois, aqueles que, como eu, não são feitos de granito e de rocha, nada precisam temer das mandíbulas de Luvibórix, o eterno...

LIMA, Carlos Emílio Corrêa. Luvibórix. In: TAVARES, Braulio (org.) Páginas de sombras: contos fantásticos brasileiros. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2009. p. 133-136.

Fonte: Maxi: Séries Finais. Caderno 1. Língua Portuguesa – 7º ano. 1.ed. São Paulo: Somos Sistemas de Ensino, 2021. Ensino Fundamental 2. p. 57-58.

Entendendo o conto:

01 – Quem é Luvibórix e qual sua principal característica?

      Luvibórix é uma entidade poderosa que possui a capacidade de criar e destruir universos com seus olhos. Sua principal característica é a capacidade de controlar a realidade através do seu olhar, mantendo um universo estável com um olho fechado e observando outro universo com o olho aberto.

02 – Qual o significado do olho fechado e do olho aberto para Luvibórix?

      O olho fechado representa um universo oculto e potencial, enquanto o olho aberto representa o universo manifesto e visível. Ao alternar entre os dois, Luvibórix controla a criação e a destruição, mantendo um equilíbrio cósmico delicado.

03 – Qual a relação de Luvibórix com os humanos?

      Luvibórix vê os humanos como "formigas obreiras" que executam seus desejos de destruição e reconstrução. Ele os observa com uma mistura de indiferença e superioridade, utilizando-os para moldar o mundo de acordo com sua vontade.

04 – Qual o objetivo de Luvibórix em visitar a superfície da Terra?

      Luvibórix visita a superfície da Terra para inspecionar os resultados de suas ações e garantir que seus planos de destruição e reconstrução estejam progredindo conforme o esperado. Ele busca verificar se o mundo está sendo moldado de acordo com sua visão.

05 – Qual a sensação que os humanos sentem diante da presença de Luvibórix?

      Os humanos sentem medo e respeito diante da presença de Luvibórix. Eles reconhecem seu poder e sabem que suas ações podem ter consequências devastadoras. No entanto, também há uma sensação de fascínio e admiração pela sua capacidade de controlar a realidade.

06 – Qual o papel das "pedras maciças" e das "rosas" na história?

      As "pedras maciças" e as "rosas" servem como alimento para Luvibórix, representando a matéria prima que ele utiliza para criar e destruir. As rosas, em particular, podem simbolizar a beleza e a fragilidade da criação, que é consumida e transformada pela entidade.

07 – Qual a atmosfera geral criada pelo conto?

      O conto cria uma atmosfera de mistério, poder e destruição. A figura de Luvibórix é imponente e aterrorizante, enquanto a descrição do mundo transformado por ele evoca uma sensação de desolação e caos. Ao mesmo tempo, há um elemento de beleza e fascínio na descrição da capacidade de Luvibórix de controlar a realidade.

 

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

CONTO: TERRAS DO SEM-FIM - (FRAGMENTO)- JORGE AMADO - COM GABARITO

 Conto: Terras do Sem-Fim – Fragmento

           Jorge Amado 

        A cidade ficava entre o rio e o mar, praias belíssimas, os coqueiros nascendo ao largo de todo o areal. Um poeta, que certa vez passara por Ilhéus e dera uma conferência, a chamara de “cidade das Palmeiras ao vento” numa imagem que os jornais repetiam de quando em vez.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEizoI5CMH4tsgz9y6_GWO69fzzhmgs6o0HPafMsJ0o4cAr4jOorRI2-MqsJQNEddza4dUoidvd35_DRw8zN2L9a22DfbmCWMuYFvB83uEEjg5F7TSlnthOE_REU853tjs7D0C44IJHS_6IgTEHsiiFqOd-vU5JtvQvPybxki7w36fDMSedsEwn_aLLZuPU/s1600/Terras_do_Sem-Fim.jpg


        A verdade, porém, é que as palmeiras nasciam nas praias e se deixavam balançar pelo vento. A árvore que influía em Ilhéus era a árvore do cacau, se bem não visse nenhuma em toda a cidade. Mas era ela que estava por detrás de toda a vida de São Jorge do Ilhéus. Por detrás de cada negócio que era feito, de cada casa que era construída, de cada armazém, de cada loja que era aberta, de cada caso do amor, de cada tiro trocado na rua. Não havia conservação em que a palavra não entrasse como elemento primordial. E sobre a cidade pairava, vindo dos armazéns de depósito, dos vagões da estrada de ferro, dos porões dos navios, das carroças e da gente, um cheiro de chocolate que é cheiro de cacau seco.

        Existia outra ordenança municipal que proibia o porte de armas. Mas muito poucas pessoas sabiam que ela existia e mesmo aqueles poucos que o sabiam, não pensavam em respeitá-lo. Os homens passavam, calçados de botas ou de botinas de couro grosso, a calça cáqui, o paletó de casimira, e por debaixo deste o revólver. Homens de repetição a tiracolo atravessavam a cidade sob a influência dos moradores, Apesar do que já existia de assentado, de definitivo, em Ilhéus, os grandes sobrados, as ruas calçadas, as casas de pedra e cal, ainda assim restava na cidade um certo ar de acampamento. Por vezes, quando chegavam os navios abarrotados de emigrantes vindos do sertão, de Sergipe e do Ceará, quando as pensões de perto da estação não tinham mais lugar de tão cheias, então barracas eram armadas na frente do porto. Improvisavam-se cozinhas, os coronéis vinham ali escolher trabalhadores. Dr. Rui, certa vez, mostrara um daqueles acampamentos a um visitante da capital.

        -- Aqui é o mercado de escravos...

        Dizia com um certo orgulho e certo desprezo, era assim que ele amava aquela cidade que nascera de repente, filho do porto, alimentada pelo cacau, já se tornando a mais rica do estado, a mais próspera também. Existiam poucos ilheenses de nascimento que já tivessem importância na vida da cidade. Quase todos fazendeiros, médicos, advogados, agrônomos, políticos, jornalistas, mestre-de-obras eram gente vinda de fora, de outros estados. Mas amavam estranhamentos aquela terra venturosa e rica. Todos se diziam "grapiúnas" e, quando estavam na Bahia, em toda parte eram facilmente reconhecíveis pelo orgulho com que falavam.

        -- Aquele é um ilheense... – diziam.

        Nos cabarés e nas casas de negócios da capital eles arrotavam valentia e riqueza, gastando dinheiro, comprando do bom e do melhor, pagando sem discutir preços, topando barulhos sem discutir o porquê. Nas casas de rameiras, na Bahia, eram respeitados, temidos e ansiosamente esperados. E também nas casas exportadores de produtos para o interior os comerciantes de Ilhéus eram tratados com a maior consideração, tinham crédito ilimitado.

        De todo o Norte do Brasil descia gente para essas terras do Sul da Bahia. A fama corria, diziam que o dinheiro rodava na rua, que ninguém fazia caso em Ilhéus, de prata de dois mil-réis. Os navios chegavam entupidos de imigrantes, vinham aventureiros de toda espécie, mulheres de toda idade, para quem Ilhéus era a primeira ou a última esperança.

        Na cidade todos se misturavam, o pobre de hoje podia ser o rico de amanhã, o tropeiro de agora poderia ter amanhã uma grande fazenda de cacau, o trabalhador que não sabia ler poderia ser um dia chefe político respeitado. Citavam-se os exemplos e citava-se sempre a Horácio que começara tropeiro e agora era dos maiores fazendeiros da zona, e o rico de hoje poderia ser o pobre de amanhã se um mais rico, junto com um advogado, fizesse um “caxixe” bem feito e tomasse sua terra. E todos os vivos de hoje poderiam amanhã estar mortos na rua, com uma bala no peito. Por cima da justiça, do juiz e do promotor, do júri de cidadãos, estava a lei do gatilho, última instância da justiça em Ilhéus.

Jorge Amado. Terras do sem-fim. 54. ed. Rio de Janeiro, Record, s.d. p. 188-9.

Fonte: livro Língua e Literatura – Faraco & Moura – vol. 3 – 2º grau – Edição reformulada 9ª edição – Editora Ática – São Paulo – SP. p. 163-4.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Grapiúna: na Bahia, apelido que os sertanejos dão aos moradores da capital ou de Ilhéus.

·        Rameira: prostituta.

·        Caxixe: negociata feita em torno de terras produtoras de cacau; logro.

02 – Qual é a principal atividade econômica de Ilhéus e como ela influencia a vida da cidade?

      A principal atividade econômica é a produção de cacau, que permeia todos os aspectos da vida da cidade, desde a economia até a cultura local.

03 – Qual é a atmosfera que predomina em Ilhéus? Justifique sua resposta com exemplos do texto.

      A atmosfera de Ilhéus é marcada pela violência, pela ambição e pela constante transformação. A presença de armas, a luta pelo poder e a rápida ascensão e queda social dos personagens ilustram essa atmosfera.

04 – Qual é o perfil dos habitantes de Ilhéus? São pessoas nativas da região ou vindas de outros lugares?

      A população de Ilhéus é bastante heterogênea, com muitos imigrantes vindos de outras regiões do Brasil em busca de oportunidades. A cidade é um caldeirão cultural, onde se misturam diferentes origens e histórias.

05 – Como os habitantes de Ilhéus se relacionam entre si? Há muita união ou a competição é acentuada?

      As relações entre os habitantes de Ilhéus são marcadas pela competição e pela violência. A busca por poder e riqueza gera conflitos e rivalidades.

06 – Qual é o papel da lei e da justiça em Ilhéus?

      A lei e a justiça formal têm pouco poder em Ilhéus. A violência e a força bruta são frequentemente utilizadas para resolver conflitos, e a lei do mais forte prevalece.

07 – Como a autora descreve a ascensão e queda social em Ilhéus?

      A ascensão e queda social em Ilhéus são rápidas e imprevisíveis. A riqueza pode ser adquirida de forma rápida, mas também pode ser perdida da mesma forma.

08 – Que tipo de linguagem Jorge Amado utiliza para descrever Ilhéus e seus habitantes?

      Jorge Amado utiliza uma linguagem rica em detalhes e vívida, capaz de transmitir a atmosfera da cidade e a complexidade de seus personagens.

09 – Quais são os principais temas abordados no fragmento?

      Os principais temas abordados são a violência, a desigualdade social, a busca por riqueza e poder, e a construção de uma nova sociedade no interior do Brasil.

10 – Com base neste fragmento, qual você acredita que seja o papel do cacau na história de Ilhéus?

      O cacau é o motor da economia de Ilhéus, gerando riqueza e atraindo pessoas de todas as partes do país. No entanto, ele também é responsável por muitos dos conflitos e da violência que marcam a cidade.

11 – Qual a sua impressão inicial sobre a obra "Terras do Sem-Fim" após ler este fragmento?

      Esta pergunta é aberta e permite que o leitor expresse sua própria opinião sobre a obra, com base nas informações presentes no fragmento.

 

 

 

CONTO: A MENOR MULHER DO MUNDO - FRAGMENTO - CLARICE LISPECTOR - COM GABARITO

 Conto: A menor mulher do mundo – Fragmento

           Clarice Lispector

        Nas profundezas da África Equatorial o explorador francês Marcel Pretre, caçador e homem do mundo, topou com uma tribo de pigmeus de uma pequenez surpreendente. Mais surpreso, pois, ficou ao ser informado de que menor povo ainda existia além de florestas e distâncias. Então mais fundo ele foi.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgkARKZonRB3Lv6t0lB-JzG1OjQrhtQy-8YeHxBhebcYRhxfAmaHVQc0Wdyh5mynLR5cnvrLhJe2G3QcNvn-Ld7pFvWjJyh3MkI4F2jOUzDKJCHWFGmwHrhtnRygHdhM3to8GFemn8CBkBdx4gTadFxVc0X_l1dsUN2tZzB1l-E7LO551ENrayZqe4xs4g/s320/pigmeia.jpg


        No Congo Central descobriu realmente os menores pigmeus do mundo. E — como uma caixa dentro de um caixa — entre os menores pigmeus do mundo estava o menor dos menores pigmeus do mundo, obedecendo talvez à necessidade que às vezes a Natureza tem de exceder a si própria.

        Entre mosquitos e árvores mornas de umidade, entre as folhas ricas do verde mais preguiçoso, Marcel Pretre defrontou-se com uma mulher de quarenta e cinco centímetros, madura, negra, calada. "Escura como um macaco", informaria ele à imprensa, e que vivia no topo de uma árvore com seu pequeno concubino. Nos tépidos humores silvestres, que arredondam cedo as frutas e lhes dão uma quase intolerável doçura ao paladar, ela estava grávida.

        Ali em pé estava, portanto, a menor mulher do mundo. Por um instante, no zumbido do calor, foi como se o francês tivesse inesperadamente chegado à conclusão última. Na certa, apenas por não ser louco, é que sua alma não desvairou nem perdeu os limites. Sentindo necessidade imediata de ordem, e dar nome ao que existe, apelidou-a de Pequena Flor. E, para conseguir classificá-la entre as realidades reconhecíveis, logo passou a colher dados a seu respeito.

        [...]

        A fotografia de Pequena Flor foi publicada no suplemento colorido dos jornais de domingo, onde coube em tamanho natural. Enrolada num pano, com a barriga em estado adiantado. O nariz chato, a cara preta, os olhos fundos, os pés espalmados. Parecia um cachorro.

        Nesse domingo, num apartamento, uma mulher, ao olhar no jornal aberto o retrato de Pequena Flor, não quis olhar uma segunda vez "porque me dá aflição".

        Em outro apartamento uma senhora teve tal perversa ternura pela pequenez da mulher africana que — sendo tão melhor prevenir que remediar — jamais se deveria deixar Pequena Flor sozinha com a ternura da senhora. Quem sabe a que escuridão de amor pode chegar o carinho. A senhora passou um dia perturbada, dir-se-ia tomada pela saudade. Aliás era primavera, uma bondade perigosa estava no ar.

        Em outra casa uma menina de cinco anos de idade, vendo o retrato e ouvindo os comentários, ficou espantada. Naquela casa de adultos, essa menina fora até agora o menor dos seres humanos. E se isso era fonte das melhores carícias, era também fonte deste primeiro medo do amor tirano. A existência de Pequena Flor levou a menina a sentir — com uma vaguidão que só anos e anos depois, por motivos bem diferentes, havia de se concretizar em pensamento — levou a sentir, numa primeira sabedoria, que "a desgraça não tem limites".

        Em outra casa, na sagração da primavera, a moça noiva teve um êxtase de piedade:

        — Mamãe, olhe o retratinho dela, coitadinha! Olhe só como ela é tristinha!

        — Mas — disse a mãe, dura e derrotada e orgulhosa — mas é tristeza de bicho, não é tristeza humana.

        — Oh! Mamãe — disse a moça desanimada.

        Foi em outra casa que um menino esperto teve uma ideia esperta:

        — Mamãe, e se eu botasse essa mulherzinha africana na cama de Paulinho enquanto ele está dormindo? Quando ele acordasse, que susto, hein! Que berro, vendo ela sentada na cama! E a gente então brincava tanto com ela! A gente fazia ela o brinquedo da gente, hein!

        A mãe dele estava nesse instante enrolando os cabelos em frente ao espelho do banheiro, e lembrou-se do que uma cozinheira lhe contara do tempo de orfanato. Não tendo boneca com que brincar, e a maternidade já pulsando terrível no coração das órfãs, as meninas sabidas haviam escondido da freira a morte de uma das garotas. Guardaram o cadáver num armário até a freira sair, e brincaram com a menina morta, deram-lhe banhos e comidinhas, puseram-na de castigo somente para depois poder beijá-la, consolando-a. Disso a mãe se lembrou no banheiro, e abaixou mãos pensas, cheias de grampos. E considerou a cruel necessidade de amar. Considerou a malignidade de nosso desejo de ser feliz. Considerou a ferocidade com que queremos brincar. E o número de vezes em que mataremos por amor. Então olhou para o filho esperto como se olhasse para um perigoso estranho. E teve terror da própria alma que, mais que seu corpo, havia engendrado aquele ser apto à vida e à felicidade. Assim olhou ela, com muita atenção e um orgulho inconfortável, aquele menino que já estava sem os dois dentes da frente, a evolução, a evolução se fazendo, dente caindo para nascer o que melhor morde. "Vou comprar um terno novo para ele", resolveu, olhando-o absorta. Obstinadamente enfeitava o filho desdentado com roupas finas, obstinadamente queria-o bem limpo, como se limpeza desse ênfase a uma superficialidade tranquilizadora, obstinadamente aperfeiçoando o lado cortês da beleza. Obstinadamente afastando-se, e afastando-o, de alguma coisa que devia ser "escura como um macaco". Então, olhando para o espelho do banheiro, a mãe sorriu intencionalmente fina e polida, colocando, entre aquele seu rosto de linhas abstratas e a cara crua de Pequena Flor, a distância insuperável de milênios. Mas, com anos de prática, sabia que este seria um domingo em que teria de disfarçar de si mesma a ansiedade, o sonho, e milênios perdidos.

        Em outra casa, junto a uma parede, deram-se ao trabalho alvoroçado de calcular com fita métrica os quarenta e cinco centímetros de Pequena Flor. E foi aí mesmo que, em delícia, se espantaram: ela era ainda menor que o mais agudo da imaginação inventaria. No coração de cada membro da família nasceu, nostálgico, o desejo de ter para si aquela coisa miúda e indomável, aquela coisa salva de ser comida, aquela fonte permanente de caridade. A alma ávida da família queria devotar-se. E, mesmo, quem já não desejou possuir um ser humano só para si? O que, é verdade, nem sempre seria cômodo, há horas em que não se quer ter sentimentos:

        — Aposto que se ela morasse aqui terminava em briga — disse o pai sentado na poltrona, virando definitivamente a página do jornal. — Nesta casa tudo termina em briga.

        — Você, José, sempre pessimista — disse a mãe.

        — A senhora já pensou, mamãe, de que tamanho será o nenenzinho dela? — disse ardente a filha mais velha de treze anos.

        O pai mexeu-se atrás do jornal.

        — Deve ser o bebê preto menor do mundo — respondeu a mãe, derretendo-se de gosto. — Imagine só ela servindo a mesa aqui de casa! E de barriguinha grande!

        — Chega de conversas! — engrolou o pai.

        — Você há de convir — disse a mãe inesperadamente ofendida — que se trata de uma coisa rara. Você é que é insensível.

        E a própria coisa rara?

        Enquanto isso na África, a própria coisa rara tinha no coração — quem sabe se negro também, pois numa Natureza que errou uma vez já não se pode mais confiar — enquanto isso a própria coisa rara tinha no coração algo mais raro ainda, assim como o segredo do próprio segredo: um filho mínimo. Metodicamente o explorador examinou com o olhar a barriguinha do menor ser humano maduro. Foi neste instante que o explorador, pela primeira vez desde que a conhecera, em vez de sentir curiosidade ou exaltação ou vitória ou espírito científico, o explorador sentiu mal-estar.

        É que a menor mulher do mundo estava rindo.

        Estava rindo, quente, quente. Pequena Flor estava gozando a vida. A própria coisa rara estava tendo a inefável sensação de ainda não ter sido comida. Não ter sido comida era que, em outras horas, lhe dava o ágil impulso de pular de galho em galho. Mas, neste momento de tranquilidade, entre as espessas folhas do Congo Central, ela não estava aplicando esse impulso numa ação — e o impulso se concentrara todo na própria pequenez da própria coisa rara. E então ela estava rindo. Era um riso como somente quem não fala, ri. Esse riso, o explorador constrangido não conseguiu classificar. E ela continuou fruindo o próprio riso macio, ela que não estava sendo devorada. Não ser devorado é o sentimento mais perfeito. Não ser devorado é o objetivo secreto de toda uma vida. Enquanto ela não estava sendo comida, seu riso bestial era tão delicado como é delicada a alegria. O explorador estava atrapalhado.

        Em segundo lugar, se a própria coisa rara estava rindo, era porque, dentro dessa sua pequenez, grande escuridão pudera-se em movimento.

        É que a própria coisa rara sentia o peito morno do que se pode chamar de Amor. Ela amava aquele explorador amarelo. Se soubesse falar e dissesse que o amava, ele inflaria de vaidade. Vaidade que diminuiria quando ela acrescentasse que também amava muito o anel do explorador e que amava muito a bota do explorador. E quando este desinchasse desapontado, Pequena Flor não compreenderia por quê. Pois, nem de longe, seu amor pelo explorador — pode-se mesmo dizer seu "profundo amor", porque, não tendo outros recursos, ela estava reduzida à profundeza — pois nem de longe seu profundo amor pelo explorador ficaria desvalorizado pelo fato de ela também amar sua bota. Há um velho equívoco sobre a palavra amor, e, se muitos filhos nascem desse equívoco, tantos outros perderam o único instante de nascer apenas por causa de uma suscetibilidade que exige que seja de mim, de mim! que se goste, e não de meu dinheiro. Mas na umidade da floresta não há desses refinamentos cruéis, e amor é não ser comido, amor é achar bonita uma bota, amor é gostar da cor rara de um homem que não é negro, amor é rir de amor a um anel que brilha. Pequena Flor piscava de amor, e riu quente, pequena, grávida, quente.

        O explorador tentou sorrir-lhe de volta, sem saber exatamente a que abismo seu sorriso respondia, e então perturbou-se como só homem de tamanho grande se perturba. Disfarçou ajeitando melhor o chapéu de explorador, corou pudico. Tornou-se uma cor linda, a sua, de um rosa-esverdeado, como a de um limão de madrugada. Ele devia ser azedo.

        Foi provavelmente ao ajeitar o capacete simbólico que o explorador se chamou à ordem, recuperou com severidade a disciplina de trabalho, e recomeçou a anotar. Aprendera a entender algumas das poucas palavras articuladas da tribo, e a interpretar os sinais. Já conseguia fazer perguntas.

        Pequena Flor respondeu-lhe que "sim". Que era muito bom ter uma árvore para morar, sua, sua mesmo. Pois — e isso ela não disse, mas seus olhos se tornaram tão escuros que o disseram — pois é bom possuir, é bom possuir, é bom possuir. O explorador pestanejou várias vezes.

        Marcel Pretre teve vários momentos difíceis consigo mesmo. Mas pelo menos ocupou-se em tomar notas e notas. Quem não tomou notas é que teve que se arranjar como pôde:

        — Pois olhe — declarou de repente uma velha fechando o jornal com decisão — pois olhe, eu só lhe digo uma coisa: Deus sabe o que faz.

LISPECTOR, Clarice. A menor mulher do mundo. In: Laços de família. 10. ed. Rio de Janeiro. José Olympio, 1978. p. 77-86.

Fonte: livro Língua e Literatura – Faraco & Moura – vol. 3 – 2º grau – Edição reformulada 9ª edição – Editora Ática – São Paulo – SP. p. 247-251.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Concubino: amante.

·        Tépido: morno.

·        Humor: umidade.

·        Engrolar: pronunciar mal.

·        Inefável: indizível, encantador.

·        Fluir: gozar, desfrutar.

02 – Qual a principal característica física de Pequena Flor?

      Pequena Flor é descrita como a menor mulher do mundo, com apenas 45 centímetros. Sua aparência exótica e sua condição de menor a tornam um objeto de curiosidade e fascínio.

03 – Como Pequena Flor é vista pelos outros personagens e pela sociedade?

      Pequena Flor é vista como uma curiosidade, um objeto de estudo e de contemplação. Sua pequenez a torna um símbolo da diferença e da excentricidade.

04 – Quais são os sentimentos de Pequena Flor em relação à sua condição?

      O conto não explora em profundidade os sentimentos de Pequena Flor, mas sugere que ela aceita sua condição e encontra felicidade em sua vida simples. Seu riso é descrito como "quente" e "macio", indicando uma sensação de bem-estar e contentamento.

05 – Qual o impacto do encontro de Marcel Pretre com Pequena Flor?

      O encontro com Pequena Flor provoca uma crise existencial em Marcel Pretre. Ele se questiona sobre a natureza humana, a felicidade e o significado da vida.

06 – Como a relação entre Marcel Pretre e Pequena Flor se desenvolve?

      A relação entre os dois personagens é marcada pela curiosidade e pela incompreensão. Marcel Pretre tenta classificar e entender Pequena Flor, enquanto ela o observa com um olhar enigmático.

07 – Como as diferentes pessoas reagem à notícia sobre Pequena Flor?

      As pessoas reagem de forma diversa ao saber da existência de Pequena Flor. Algumas sentem pena, outras curiosidade, e outras ainda, um desejo de posse ou de exploração.

08 – Qual a crítica social presente nas reações das pessoas?

      O conto critica a curiosidade mórbida, a superficialidade e a falta de empatia das pessoas. As reações das pessoas revelam a tendência humana a julgar e a categorizar os outros com base em suas diferenças.

09 – Quais os temas principais do conto?

      Os temas principais do conto são a diferença, a identidade, a felicidade, a exploração e a natureza humana.

10 – Qual a importância da natureza no conto?

      A natureza é um personagem fundamental no conto. A floresta, com sua exuberância e mistério, serve como pano de fundo para a história e simboliza a liberdade e a espontaneidade.

11 – Qual a mensagem final do conto?

      O conto nos convida a refletir sobre o significado da felicidade e da existência. Pequena Flor, com sua simplicidade e alegria, nos mostra que a felicidade não está ligada à posse ou ao status social, mas sim à aceitação de si mesmo e à capacidade de encontrar prazer nas pequenas coisas da vida.

 

 

CONTO: AS CARIDADES ODIOSAS - CLARICE LISPECTOR - COM GABARITO

 Conto: As caridades odiosas

            Clarice Lispector

        Foi uma tarde de sensibilidade ou de suscetibilidade? Eu passava pela rua depressa, emaranhada nos meus pensamentos, como às vezes acontece. Foi quando meu vestido me reteve: alguma coisa se enganchara na minha saia. Voltei-me e vi que se tratava de uma mão pequena e escura. Pertencia a um menino a que a sujeira e o sangue interno davam um tom quente de pele. O menino estava de pé no degrau da grande confeitaria. Seus olhos, mais do que suas palavras meio engolidas, informavam-me de sua paciente aflição. Paciente demais. Percebi vagamente um pedido, antes de compreender o seu sentido concreto. Um pouco aturdida eu o olhava, ainda em dúvida se fora a mão da criança o que me ceifara os pensamentos.

 
Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjIaVzh7Wwf8GFOtJLnfRiEzSzSuDcnmTigpDENJyxTqeQBSEPAIRuKMbVChws5cJrc1vUj5ot-PHPmCOHDtfIXjxQ-VhAqr2qxFFxneZ6_t-XxHz9yODwDY638JgRwN5-fCbFd8Evm1HiWkbbXTrBNJUS2P7JkTIsK1_sHC6UXxkc90GILnabte0frvKo/s320/DOCE.jpg

        -- Um doce, moça, compre um doce para mim.

        Acordei finalmente. O que estivera eu pensando antes de encontrar o menino? O fato é que o pedido deste pareceu cumular uma lacuna, dar uma resposta que podia servir para qualquer pergunta, assim como uma grande chuva pode matar a sede de quem queria uns goles de água.

        Sem olhar para os lados, por pudor talvez, sem querer espiar as mesas da confeitaria onde possivelmente algum conhecido tomava sorvete, entrei, fui ao balcão e disse com uma dureza que só Deus sabe explicar: Um doce para o menino.

        De que tinha eu medo? Eu não olhava a criança, queria que a cena, humilhante para mim, terminasse logo. Perguntei-lhe: que doce você…

        Antes de terminar, o menino disse apontado depressa com o dedo: Aquelezinho ali, com chocolate por cima. Por um instante perplexa, eu me recompus logo e ordenei, com aspereza, à caixeira que o servisse.

        -- Que outro doce você quer? Perguntei ao menino escuro.

        Este, que mexendo as mãos e a boca ainda esperava com ansiedade pelo primeiro, interrompeu-se, olhou-me um instante e disse com delicadeza insuportável, mostrando os dentes: não precisa de outro não. Ele poupava a minha bondade.

        -- Precisa sim, cortei eu ofegante, empurrando-o para a frente. O menino hesitou e disse: Aquele amarelo de ovo. Recebeu um doce em cada mão, levantando as duas acima da cabeça, com medo talvez de apertá-los. Mesmo os doces estavam tão acima do menino escuro. E foi sem olhar para mim que ele, mais do que foi embora, fugiu. A caixeirinha olhava tudo:

        -- Afinal uma alma caridosa apareceu. Esse menino estava nesta porta há mais de uma hora, puxando todas as pessoas que passavam, mas ninguém quis dar.

        Fui embora, com o rosto corado de vergonha. De vergonha mesmo? Era inútil querer voltar aos pensamentos anteriores. Eu estava cheia de um sentimento, gratidão, revolta e vergonha. Mas como se costuma dizer, o Sol parecia brilhar com mais força. Eu tivera a oportunidade de…E para isso fora necessário um menino magro e escuro…E para isso fora necessário que outros não lhe tivessem dado um doce.

        E as pessoas que tomavam sorvete? Agora, o que eu queria saber com autocrueldade era o seguinte: temera que os outros me vissem ou que os outros não me vissem? O fato é que, quando atravessei a rua, o que teria sido piedade já se estrangulara sob outros sentimentos. E, agora sozinha, meus pensamentos voltaram lentamente a ser os anteriores, só que inúteis.

LISPECTOR, Clarice. As caridades odiosas. In: A descoberta do mundo. Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 1984. p. 380-3.

Fonte: livro Língua e Literatura – Faraco & Moura – vol. 3 – 2º grau – Edição reformulada 9ª edição – Editora Ática – São Paulo – SP. p. 233-4.

Entendendo o conto:

01 – Qual a principal emoção experimentada pela narradora ao longo do conto?

      A narradora experimenta uma gama de emoções complexas, como culpa, vergonha, gratidão e revolta. O encontro com o menino a leva a questionar suas próprias atitudes e a refletir sobre a condição humana.

02 – Como a narradora descreve seus próprios pensamentos antes de encontrar o menino?

      A narradora se descreve como "emaranhada nos meus pensamentos", sugerindo um estado de distração e introspecção. Seus pensamentos são vagos e não são revelados ao leitor.

03 – Qual a atitude inicial da narradora em relação ao pedido do menino?

      Inicialmente, a narradora se sente incomodada com o pedido do menino e demonstra certa relutância em atendê-lo. Ela parece mais preocupada com sua própria imagem e com o que os outros pensarão do que com a necessidade da criança.

04 – Qual o papel do menino na narrativa?

      O menino representa a pobreza, a necessidade e a vulnerabilidade. Seu pedido desperta na narradora uma série de sentimentos conflitantes e a leva a confrontar suas próprias contradições.

05 – Como a narradora descreve o menino?

      A narradora descreve o menino como magro, sujo e com um olhar de "paciente aflição". Sua aparência física contrasta com a opulência da confeitaria e da sociedade em que a narradora vive.

06 – Por que a narradora se sente envergonhada após ajudar o menino?

      A narradora se sente envergonhada porque percebe que seu ato de caridade foi motivado mais pela culpa e pela necessidade de aliviar sua própria consciência do que por um genuíno desejo de ajudar o menino.

07 – Qual a diferença entre a caridade da narradora e a caridade esperada pela sociedade?

      A caridade da narradora é marcada pela culpa e pela vergonha, enquanto a caridade esperada pela sociedade é vista como um ato de bondade e generosidade. A narradora questiona a sinceridade e as motivações por trás dos atos caridosos.

08 – Qual o tema central do conto "As caridades odiosas"?

      O tema central do conto é a hipocrisia da sociedade e a complexidade da natureza humana. A narradora explora a questão da caridade e da compaixão, questionando as motivações que levam as pessoas a ajudar ou a ignorar o sofrimento alheio.

09 – Qual a crítica social presente no conto?

      O conto critica a indiferença e a desigualdade social. A figura do menino faminto em frente a uma confeitaria luxuosa evidencia as disparidades sociais e a falta de empatia de muitas pessoas.

10 – Qual a importância do título "As caridades odiosas"?

      O título reflete a ambivalência da experiência da narradora. A caridade, que deveria ser um ato de bondade, torna-se odiosa quando motivada por sentimentos como culpa e vergonha, em vez de compaixão genuína. O título também sugere que a forma como a caridade é praticada pode ser tão importante quanto o ato em si.