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quarta-feira, 11 de junho de 2025

CONTO DE ENIGMA: O INCRÍVEL ENIGMA DO GALINHEIRO - MARCOS REY - COM GABARITO

 CONTO DE ENIGMA: O INCRÍVEL ENIGMA DO GALINHEIRO

 

         Isso aconteceu numa época em que o grande detetive Sherlock Holmes estava aposentado e um tanto esquecido. Em Londres, onde morava, ninguém mais o chamava para elucidar mistérios. Conformava-se, dizendo: não se fazem mais bandidos como antigamente. Meu tio Clarimundo, leitor das aventuras de Sherlock, foi quem decidiu contratá-lo. Mas que não trouxesse seu secretário Dr. Watson, que só servia para ouvir no final de cada caso a mesma frase:

“Elementar, Watson”.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgMejgubA-K6xZJz_fe1sLCw2NEwamm7l28F9wv4_aQlfp0zXh8G8-2AcU05bZx0Wr0MZ0LicnOjQa6mc0a-yO-FKN6ptRXsb_3wAOXJLJ2YUqHcjXYex9lPfquOXkqMTu5LfTIz1hllJmZVbP5rS9HXTIbyRGlIZD7xAEq25sz_xV_bHNPwV09y8eJlT8/s320/GALO.jpg


– Mas se trata dum caso tão insignificante – protestou mamãe. – Insignificante?

       Esse enigma está nos pondo malucos.

        Alguém andava assaltando nosso galinheiro. A cada dia sumia uma galinha. Quem faria isso, estando a casa cercada por paredes de imensos edifícios? Não havia muro para saltar. Nem grades para pular. E na casa só morávamos eu, meus pais, tio Clarimundo e Noca, a velha empregada. Um enigma muito enigmático, sim.

        Sherlock Holmes chegou e hospedou-se no quarto dos fundos. Ele, seu boné xadrez, seu cachimbo, lógico, e mais logicamente sua lupa, que aumentava tudo. Chegou anunciando:

        – Chamarei esta aventura “O caso das galinhas desaparecidas”. Ou ficaria melhor “O incrível enigma do galinheiro”?

        – Ambos são bons, mas...

        – Na maior parte das vezes o culpado é o mordomo – informou Sherlock.

        – Onde está o suspeito?

        – Não temos mordomo – lamentou tio Clarimundo.

        – Então me levem à cena do crime.

        Levamos Sherlock ao quintal, pequeno e espremido entre os prédios. Ele tirou a lupa do bolso. Um palito ou folha de árvore, examinava concentradamente. Depois, tomava notas num caderno. Mas, como a viagem o cansara, foi dormir cedo. Na manhã seguinte minha mãe acordou-o com uma informação:

        – Sumiu outra galinha.

       – Esta noite dormirei no galinheiro.

       E dormiu mesmo, sentado numa poltrona. Desta vez eu que o acordei.

       – Mister Holmes, roubaram mais uma galinha.

       A notícia fez com que se decidisse:

       – A história se chamará mesmo “O incrível enigma do galinheiro”.

       – Não estamos preocupados com títulos – rebateu meu tio.

       – Mas meu editor está.

       Neste dia consegui ler o caderno de anotações do detetive. Li: nada, nada, nada. Um nada em cada página. Organizado, não? Também nesse dia Sherlock telefonou a Londres para trocar impressões com o fiel Dr. Watson. Uma fortuninha em chamados internacionais. E as galinhas continuavam desaparecendo, apesar de Sherlock Holmes dormir no galinheiro. Ele já andava falando sozinho.

        – Nem sinal de gato, cachorro, raposa, gambá. Todo o meu prestígio está em jogo. Por fim, restou apenas uma galinha.

        À hora do almoço o famoso detetive, sentindo-se velho e fracassado, sofreu uma crise, chorando na frente de todos. Nós nos comovemos muito com a situação. Um homem daqueles derramar lágrimas... Noca, então, deu um passo à frente e confessou:

       – Eu que roubava as galinhas. Dava às famílias pobres duma favela.

        Sherlock enxugou imediatamente as lágrimas na manga do paletó.

         – Já sabia. Fingi chorar para que ela confessasse.

         – Então desconfiava de Noca? – Perguntou tio Clarimundo. – Encontrei penas de galinha no quarto dela. Elementar, Clarimundo. E o que dizem de comermos a penosa que resta no galinheiro?

         Não sei se foi escrito “O incrível enigma do galinheiro”. Se foi, pobres leitores. Na verdade eu que roubava as galinhas para dar aos favelados. Inclusive quando o detetive dormia no galinheiro. Noca sabia disso e assumiu a culpa em meu lugar.

Elementar, Mister Sherlock Holmes.

(Marcos Rey, Em Vice-Versa ao Contrário. Org. Heloísa Prieto. São Paulo, Companhia das Letrinhas, 1993.)

 

01. Responda.

a. O que é um enigma?

Um enigma é algo de difícil compreensão, um mistério, um quebra-cabeça ou uma questão que precisa ser decifrada ou resolvida.

b. Qual o mistério que trata o texto?

O mistério que o texto trata é o desaparecimento misterioso de galinhas do galinheiro, sem que se saiba quem as está roubando, dada a dificuldade de acesso ao local.

02. Sobre os Elementos da Narrativa, pergunta-se: O narrador desse texto é

a.  Sherlock Holmes.

b. Tio Clarimundo.

c.  Noca. 

d. Sobrinho do tio Clarimundo.

03. Marque a alternativa que indica o momento de maior tensão na narrativa.

a. À chegada de Sherlock Holmes à casa do narrador.

b.  A crise de choro de Sherlock Holmes e a consequente confissão de Noca.

c. O momento que o narrador revela que ele é o ladrão de galinhas.

d. O momento em que Sherlock decide qual será o título da história.

 04. Quem decide contratar Sherlock Holmes?

     a.  A mãe do narrador.

     b. O narrador.

     c. O tio Clarimundo.

     d.  Noca, a empregada.

05. Qual era o enigma a ser resolvido?

     a. O desaparecimento do mordomo.

     b. O roubo das galinhas.

     c. O título da história.

     d. O choro de Sherlock Holmes.

06. Onde Sherlock Holmes dormiu para tentar solucionar o caso?

     a.  No quarto dos fundos.

     b.  Na sala.

     c.  No quintal.

     d. No galinheiro.

07. Quem confessou ser o ladrão das galinhas?

    a. O narrador.

    b.  O tio Clarimundo.

    c.  Sherlock Holmes.

    d.  Noca.

08. Qual era a justificativa para o roubo das galinhas?

   a. Vender as galinhas.

   b. Alimentar a família.

   c. Dar às famílias pobres de uma favela.

   d.  Fazer um banquete.

domingo, 8 de junho de 2025

CONTO: MACAUÃ - IVENS CUIABANO SCAFF - COM GABARITO

 Conto: MACAUÃ

           Ivens Cuiabano Scaff

        Ninguém se lembrava direito de quando foi que Bugrinho havia chegado ali no Estirão Bonito! Chegou quieto e continuou calado. Deve ter sido bem pequeno mesmo, pois mesmo agora ele devia ter uns doze, onze no máximo. Regulando por aí.

        Veio em alguma embarcação com certeza. Porque estrada por ali era coisa precária. De serventia, só mesmo na época da seca. Nas águas, era corixo juntando com corixo. Baía com baía, baía com rio e parecia que era igual no pantanal lá de baixo, emendado tudo, tudo uma água só. E quero ver automóvel passar. Nem jipe. Nem caminhão. Só carro de boi. E olhe lá.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg3tNJTZbU2uaehe3A2tYykBFupBvqHQ_Xmp7nSJ0mTkvTEB06T1z5LaltWyjDz6djL-KhlZJwoHwETopwrnkRByqxD2Wrqx7Q62y69065VMXFek_niZkA0YLzIKnPMOqYl1crFG2fohzwdYAYShNi2TxnPqXoKM-QCB-Rh4Fj9W9fQ95QYCEbJnINn2Lw/s320/RIO.jpg


        Disque ele veio bem lá de baixo. Da baía do Gahiva. Quase Bolívia. Disque. Diziam. Porque ele mesmo não dizia nada. Bugrinho era quieto como um peixe. Se ele não gostava do apelido, também não retrucava. Olhava as pessoas com aqueles olhos redondos, um pouco puxados como os dos índios. Aí abaixava a cabeça e logo desviava os olhos. Aliás tinha um sestro. Sempre um pouco antes de desviar os olhos, ele piscava o olho esquerdo. Só o esquerdo.

        Quem eram seus pais naturais, disso ninguém tinha conhecimento. Também ninguém se encarregou de substituí-los. Era cria da casa e pronto. Agregado. Pra todo serviço.

        De privilégio, só mesmo a escola. Isso mesmo. Tinha escola no Estirão Bonito. Uma corrutelinha de nada. Tapera de antiga usina, mas escola tinha. E vinha aluno de tudo quanto é morador em volta. De canoa, do rio acima e do rio abaixo. De carroça, de bicicleta e até a pé. Criança não faltava.

        Como alguém tinha decidido e ninguém contestado, já que todo mundo mandava em Bugrinho, ficou assim que ele também ia estudar.

        Bugrinho não faltava nunca. Mas também não falava. Nada. Se aprendia, isso era outro mistério.

        Ninguém lhe tomava lições e ficava tudo por isso mesmo.

        De resto, a vida continuava como sempre foi. No rio, tinha peixe de tudo quanto é tipo, peixe de escama e de couro. No pomar, tudo quanto é tipo de fruta, cada uma no seu tempo. No mato, tudo quanto é tipo de caça.

        Faziam farinha. Faziam rapadura. Doces de tudo que é tipo.

        E tinha as festas de santo. Cada lugar com o seu santo padroeiro e seu dia certo de festejar.

        Assim era a vida no Estirão Bonito. O rio passando. Os sarãs balançando com o vento. As canoas se roçando umas com as outras, amarradas no porto. Aquele pátio grande. Talvez o maior de todos, diziam as pessoas que eram viajadas e já tinham visto outros lugares. Isso diziam como diziam que Estirão Bonito se chamava assim porque era mais bonito que os outros.

        As crianças podiam fazer tudo. Nada era proibido. Nada era perigoso.

        Medo mesmo só de onça que às vezes uma bancava a atrevida vindo pegar um bezerro ali no curral, perto do engenho e das casas de moradia.

        Ah! Também tinham medo do Negrinho d’água e do Minhocão. Quem é que não sabia das duas crianças que sumiram um dia. Duas crianças, um menino e uma menina, iguaizinhos a Joãozinho e Maria, que sumiram e depois de dois dias de procura apareceram mortinhos, parecendo que estavam dormindo de mãozinhas dadas deitadinhos na beira d’água. Foi o Negrinho d’água, só podia. Do Minhocão então, tinha criança que não entrava em canoa nem junto com o pai e mãe, não importa se no lusco-fusco ou até no solão da tarde.

        Mas isso só os muito pequenos. Que eles iam crescendo e perdendo o medo e se espalhando. Não tinha grota, nem baía, nem corixo, nem sangradouro, nem mesmo bocaina, moradia de onça que aquelas crianças não zanzeassem por lá.

        Que o que tinha no Estirão Bonito era criança.

        Era uma alegria a vida no Estirão Bonito.

        Um dia, a professora veio trazer a notícia, uma novidade. Ia chegar uma lancha. Na verdade, duas lanchas. Uma que tinha motor, timão e comandante e a outra não tinha nada disso e era chamada “chata”. A chata era para as mercadorias e vinha colada ao lado da lancha, lancha mesmo, como pequi ou banana quando é fruta gêmea.

        Mas o que é que tem de novidade nisso é que acontece que faz é muito que uma lancha não subia o rio até ali. Antigamente era outra coisa. Tudo acontecia em Cáceres, Corumbá, rio abaixo afora, eles sabiam. Pra chegar em Cuiabá, tinham que passar ali, de subida, pelo Estirão Bonito. Mas aí as embarcações foram rareando, rareando. Dizem que agora tinham outros caminhos. Estrada de ferro. Estrada de chão. Até de asfalto cruzando Mato Grosso sertão afora.

        O fato é que aquela criançada do Estirão Bonito nunca tinha visto uma lancha. Se tinham visto, não se lembravam. Deviam ser muito pequenas na última vinda delas por lá.

        Por isso, a professora ia explicando como eram as embarcações. E lembrando do seu tempo de moça ia ficando emocionada. Cada nome de lancha que ela dizia lhe trazia uma lembrança.

        -- Ah! A lancha “Agashi” era linda. Vinha cortando água desde que apontava no fim do estirão. De longe, a gente via a espuma dela. Só a espuma, antes mesmo de ver a lancha.

        -- E a “Filosofina”? Tinha esse nome em homenagem à filha de um usineiro. Moça muito feia. Deus me livre. Não estou desfazendo, mas ela era muito feia. E como falava nome feio. Nem parecia moça bem criada, filha de gente de posses. Vôte!

        -- Cada lancha tinha sua tripulação. Seu prático. Ah! Vocês não sabem o que é prático? Prático é quem conhece os caminhos do rio. É uma profissão. Ele sabe onde é o canal, onde dá para a lancha passar e onde é baixo, que são as partes rasas.

        -- E a gente vai poder subir na lancha, professora? – já queriam saber as crianças.

        Antes que a professora pudesse responder, Bugrinho falou.

        -- Eu já subi numa, professora.

        Foi aquele espanto. Bugrinho nunca falava nada. Que dirá na sala de aula.

        As crianças ficaram num desassossego. Risinhos, cochichos, beicinhos.

        A professora pediu silêncio.

        -- Já subiu, Bugrinho? Conte pra gente.

        Bugrinho sentiu um calor subindo pelo seu pescoço e se espalhando pelo seu rosto. Sentia também todos os olhares pregados nele. Pra que tinha falado? Se pudesse, sumiria dali num segundo.

        -- Vamos Bugrinho. Conte. Como foi? – Insistiu a professora.

        Bugrinho bem que tentou, mas não conseguiu articular palavra.

        -- Viu nada, professora.

        -- Bugrinho! – a professora com os olhos doces aguardava.

        -- Foi... – por fim Bugrinho falou. E sua voz parecia bater do lado de dentro da sua cabeça, martelar o seu ouvido por dentro antes de com seguir achar o caminho pra fora.

        -- Foi quando eu ainda não morava aqui. Lá passavam muitas lanchas. De todo tamanho.

        -- Mentira, professora. Ele vive aqui desde pequeno. Como é que vai se lembrar?

        A professora levou o dedo aos lábios de novo pedindo silêncio.

        -- Muitos dias antes da lancha chegar, a gente ficava ouvindo o seu barulho...

        Na sala, o silêncio parecia um meio-dia.

        -- ... que é porque o rio faz muitas voltas...

        A professora sorria como quem está ouvindo uma canção de que gosta muito.

        -- ... ou então que, se for na boca da noite, a lancha entrou numa baía e não encontra saída.

        Bugrinho estremeceu como quem sente um arrepio ou quem é acordado de repente. Baixou a cabeça. Piscou o olho esquerdo e desviou os olhos.

        As crianças estavam espantadas com a ousadia de Bugrinho.

        A professora retomou a palavra.

        -- No porto de Cuiabá, tinha uma grande figueira na beira d’água. Debaixo dela, as pessoas ficavam abanando os lenços até as lanchas sumirem na curva do rio.

        Desse dia em diante, o assunto no Estirão Bonito era um só. Ninguém dava certeza. Cada um falava uma coisa. Vinha. Não vinha. Vinha sim.

        -- Se o rio baixar, ela não vem.

        -- Mas ela vem sim. Disque já passou do Poço Feio.

        -- Vir ela vem. Mas não vai parar aqui nem duas horas. Tem que descer rápido o rio senão fica encalhada.

        -- Mas o rio não está baixando. Vocês não estão vendo quanto pau está rodando. Cada cepa de árvore.

        -- Então, vamos ver a marca que eu deixei.

        E lá iam todos para a beira do rio. Todos? Não, cadê Bugrinho? Sumiu. Se bem que Bugrinho era assim mesmo. Não era sempre que estava com a gurizada. Também pra tudo quanto era serviço chamavam Bugrinho. Amanhecia tirando leite. Anoitecia recolhendo gado. Plantava cana. Ajudava na moagem. Remendava canoa furada. Bugrinho pra cá. Bugrinho pra lá. Faz rapadura. Mexe o doce. Cata ovo no quintal. Mesmo assim se dava um tempinho lá estava ele com a criançada. Quietinho. Retraído. Mas sempre lá.

        Mas, depois daquele dia na escola, ele até gostava quando puxavam ele pra lá e pra cá pra tudo quanto é tarefa. Chegava na aula em cima da hora e saía quase correndo quando a professora tocava a sineta. Se pudesse voltar atrás, nunca, teria falado qualquer coisa. Todo dia, ainda morria de vergonha. E se esquecia um pouco daquele dia sempre tinha um pegando no seu pé.

        -- Mentiroso!

        -- Você gosta de aparecer, Bugrinho!

        -- Deu pra inventar agora, é?

        -- Saliente!

        Bugrinho ficava mais quieto ainda. Abaixava a cabeça e um instante antes de desviar os olhos, piscava o olho esquerdo.

        -- Sestroso!

        Aí sumia. Nem as crianças nem os adultos sabiam dar conta dele.

        Sumia a pé ou andando a cavalo em pelo. Por onde? Quando voltava distraído, distraído, parecia que a pergunta não era com ele.

        Ele estava lá. Imóvel no galho mais alto. Olhando longe, sério. Parecia que não tinha nada a ver com as coisas aqui de baixo. Ficava parecendo uma estátua já que só de vez em quando mudava a posição do olhar.

        A vista alcançava todo o grande descampado quase sem nenhuma árvore. Só uma piúva solitária de longe em longe. Campo limpo mesmo. Nem capão tinha. Umas maçarocas de árvores acompanhando um corixo. E só. Lá no fim uma fieira horizontal de árvores bordando o horizonte de lado a lado. Devia de ser com certeza, é sim, a mata da beira do rio. Ou de alguma baía dele.

         Ele gostava mais do cerrado, mas, às vezes, também se aventurava na beira do rio. As suas árvores preferidas era as três figueiras enormes que existiam no pátio do Estirão Bonito. Uma lá no extremo rio acima. Outra no meio perto da casa grande e a terceira já junto da cerca rio abaixo. As figueiras eram mesmo o reino das japuíras com seus ninhos pendurados.

        Gostava também de cruzar o canavial e ir pousar naquelas grandes árvores com raízes à mostra que cresciam na beira lodosa e cheia de folhas mortas das baías.

        Andava por todos os cantos, porque era o rei de tudo.

        Bugrinho concordava que ele era o rei. Ele nunca tinha visto um rei de verdade. Sabia só das aulas de história que existiam reis. Reis de lugares distantes. Reis de histórias de fada. Reis do reino animal. Mas Bugrinho sabia. Claro que ele era rei. Tinha o porte de rei. Tinha o olhar altivo de rei. Movia a cabeça com decisão como um rei.

        E quando alçava voo com as suas asas estendidas. Ninguém se igualava a ele. Aliás, ninguém se igualava a eles. Pois eram as várias espécies os gaviões. Tinham os caramujeiros, que se fartavam, porque o que não faltava no Pantanal eram caramujos. O gavião pescador, acastanhado, também chamado de velho, por ter a cabeça branca. O criquiri, que, diziam, cortava os tendões das asas dos filhotes de tuiuiú ainda no ninho e ficava esperando que eles caíssem ao tentar o primeiro voo. Pequenos gaviões inteiramente pretos. Cracarás carijós, rajadinhos para quem não sabe o que é carijó. O gavião de fumaça ou caboclo, marrom com a ponta da asa preta.

        E aquele que Bugrinho mais admirava, o Macauã. Macauã comedor de cobra. Macauã era visto boa parte do ano. Do Macauã, contavam o seguinte. Se o Macauã viesse, assentasse e cantasse em uma árvore seca como aquelas em que os tuiuiús fazem ninhos, o ano seria de seca. Se, ao contrário, o Macauã cantasse em uma árvore bem verde, o ano seria de muita chuva.

        Eram todos reis das aves, pensava Bugrinho, e por todo lugar ele ia vê-los. Sabia onde encontra-los. Aliás, o que não era difícil. Por ali, eles eram muitos. Bugrinho não conhecia outros lugares mas não sabia porque tinha certeza de que ali era a terra dos gaviões.

        -- Onde você andava, Bugrinho? – a professora quer falar com todas as crianças.

        A professora já estava na classe. Criança por tudo quanto é lado.

        -- Já está tudo certo. A lancha chega amanhã às dez horas.

        As crianças já arfavam descompassadamente.

        -- E se vocês prometerem se comportar...

        -- Vamos poder subir na lancha? – as crianças não falavam mais, gritavam.

        -- Melhor!

        Um silêncio de ouvir mosca voando. Um segundo depis daquela gritaria incontrolável.

        -- O quê, professora?

        -- Fala logo.

        -- Vocês foram convidados para almoçar na lancha.

        Ninguém conseguiria controlar aquelas crianças agora. Nem a professora tentava acabar com aquela euforia. Gritos, assobios. Os olhos da professora estavam longe. Ela se lembrava de seu irmão. Hoje já avô, morando longe.

        Seu irmão tinha por muito tempo lidado com navegação. Praticamente tinha passado a sua juventude em cima de uma lancha. Subindo e descendo o rio, praticando o comércio. Trazia mercadorias, sal, trigo, cerveja em garrafas brancas louçadas. Comprava doces, rapaduras, melado. Recebia encomendas das moças. Trazia e levava notícias. Como era querido por todos, esse irmão.

        Pelas crianças, então, nem se fala. Naquele tempo, se lembrava a professora, a comida servida nas lanchas era de primeira, Ela não se esquecia nunca das uvas, das maçãs argentinas. Ah! Foi por isso mesmo que ela havia se lembrado. As maçãs argentinas eram um dos motivos pelos quais ele era tão querido pelas crianças.

        Quando a lancha vinha subindo o rio. Vindo de onde? De Cáceres, Corumbá? De Assunción no Paraguay? Quando a lancha vinha subindo, as crianças já rumavam para a beira do rio. Subiam nas canoas. Se não tinha canoa no porto da corruptela, se jogavam n água e seguiam nadando rumo às embarcações.

        Da proa da lancha que subia o rio, surgia o seu irmão, o comandante, lançando maçãs para a gurizada. Cheio de alegria, gritava a plenos pulmões com a sua voz levemente anasalada.

        -- Manzanas, Manzanas argentinas.

        A sua voz ecoava nos barrancos e o rio parecia uma piracema de tanta criança. Crianças nadando contra a corrente feito lontras brilhantes.

        -- Professora, professora.

        A professora repetia baixinho.

        -- Manzanas, manzanas argentinas.

        Chegou o dia. Chegou a hora. Como custou. Mas chegou. Todos os pensamentos daquele pequeno mundo estavam centrados na chegada das lanchas. As crianças, então, eram um cochicho só. Um grupinho aqui, outro ali, de repente, todas as brincadeiras haviam perdido a graça. A única graça era esperar. Iam, enfim, conhecer a grande maravilha.

        Mas uma coisa não estava certa. Eles não concordavam. Não conseguiam tirar da cabeça. E, de um modo que eles não conseguiam compreender, aquilo os magoava. No fundo, bem lá no fundo. Da alma, do coração. Onde também é a casa da mágoa. Estragava a alegria que a lancha vinha trazer.

        Como é que Bugrinho, aquele arigó, podia já ter visto, aliás não só ter visto, mas ter conhecido tão bem uma lancha? Como é, como funciona. Por dentro e por fora. Tão bem como eles conheciam um carro de boi ou uma moenda. Parecia que aquilo até tirava a graça da chegada da lancha.

        Só podia ser mentira. Gurizinho mentiroso. Querendo bancar o sabido. Merecia uma lição.

        -- Também acho.

        -- Pra aprender.

        -- Não judiem dele.

        -- Ninguém vai judiar.

        Foi assim. O travo no coração daquelas crianças foi se juntando, se juntando e aquele odiozinho que podia se apagar como um fósforo num terreiro bem limpinho, foi se alastrando, se encorpando, se juntando como se fosse fogo no canavial.

        -- Vai ser só um susto, um sustinho.

        -- Mas ele nunca vai esquecer.

        -- Vai ser até bom pra ele.

        -- Metido.

        -- Acha que é o bom.

        Bugrinho vinha voltando de um daqueles passeios solitários. Havia deixado a mata caminhando pelo sangradouro. Sangradouros, vocês sabem, são aquelas valas que levam água para a baía na cheia e devolvem a água na seca. Nessa época do ano, tinha um pouco de água e lama, mas não estava um rio como costuma ficar no alto da cheia e era mais limpo de andar do que por dentro da mata. Ainda tinha a vantagem de que, na hora que, o sangradouro saísse no pátio da usina, ele poderia caminhar sossegado, pois ninguém o veria da casa grande ou da escola já que ele não tinha muita altura.

        Veio vindo, se misturando com os feixes de cana no engenho. Passou por trás da moenda. Foi quando caíram em cima dele como um bando de urubus. Enfiaram em sua boca um pano sujo. Amarraram seus braços. Suas pernas. Não conseguia gritar. Não adiantava espernear. Sentia muitos braços segurando-o. Eram muitos. Conseguiram colocá-lo dentro de um saco e saíram correndo com ele.

        Bugrinho foi deixado num lugar quente e abafado. Esforça daqui, esforça dali, conseguiu se livrar das cordas e sair do saco. Mas de que adiantou. Estava preso. Conhecia aquele lugar. Era uma espécie de depósito abandonado nos fundos da sala de purgar. Trancado a cadeado por fora. Só uma pequena janela lá no alto, quatro vezes ou mais a altura de Bugrinho. Não havia escada. Apesar da penumbra, logo descobriu que não havia nada em pudesse subir.

        Tentou forçar a porta. Nada. Estava trancado. E bem trancado. Tudo tinha sido muito rápido, mas ele sabia quem tinha feito aquilo com ele. Vira alguns rostos de relance. Ouvira os cochichos. Que eram os seus colegas de escola ele sabia. Mas por quê? Nenhum era seu amigo de verdade. Pra falar a verdade, Bugrinho nem sabia direito o que era isso. Mas, se sabia que o desprezavam, não conseguia atinar de alguém que tivesse raiva dele a ponto de fazer aquilo.

        Devia ser uma brincadeira. Sentou-se encostado à parede mas como estava cansado com a caminhada e ali estava quentinho logo ferrou no sono.

        Acordou assustado, suado, com aquele barulho. Que era aquilo? O som se repetiu e ele já completamente desperto teve a certeza. Como que não iriam se lembrar. A lancha. O apito da lancha. Devia vir subindo o rio e apitando. Levantou-se correndo e tentou abrir a porta. A porta estava trancada. Ele tinha até esquecido.

        A lancha apitou de novo. Devia estar quase chegando.

        Bugrinho fez então o que nunca tinha feito na vida. Gritou. Gritou uma, duas vezes. Gritou uma porção. Gritou muitas e muitas vezes.

        Mas aquele depósito em que o trancaram era longe de tudo. A casa grande, a escola ficava do outro lado do engenho, mais perto do rio. Depois, não devia ter ninguém nas casas. Todo o povo do Estirão Bonito já devia estar plantado na beira do rio vendo a lancha chegar.

        Bugrinho continuou gritando, gritando. Mesmo rouco continuava gritando. Até que seu desespero se transformou num grande pranto.

        A lancha vinha subindo o rio pelo lado esquerdo, que deste lado que ficava o canal do rio. Por isso, sua visão ainda estava encoberta pelos sarãs. Mas as crianças nadavam até o meio do rio e de lá gritavam.

        -- Vem vindo. É linda!

        -- Enorme!

        -- Tem duas chatas!

        O povo todo do Estirão Bonito estava enfileirado na beira do rio, uns no sol quente, outros se abrigando na sombra das figueiras. Por fim, o comboio, a lancha e suas duas chatas, surgiu aos olhos de todos. O comandante acenava com uma das mãos e segurava com a outra o timão. As hélices submersas faziam uma espuma branquinha e a água rebojava e depois virava uma esteira de borbulhas que ia se desfazendo aos poucos já longe parecendo um véu de noiva.

        Após manobrar lentamente, por fim atracou.

        Os tripulantes e passageiros começaram a descer com cuidado pelas tábuas que faziam as vezes de prancha, unindo a embarcação à margem do rio.

        As crianças tiveram direito a tudo que haviam prometido. Puderam andar por todos os lugares. Descer à casa de máquinas e ver o motor poderoso e fedorento. Subir aos camarotes no segundo andar. Cuspir lá de cima e ver as piquiras se assanhando, pensando que era comida.

        A professora, muito bem vestida e emocionada, passado e presente passeando em seu coração, conversava com o comandante.

        Se almoçaram na lancha? Claro que almoçaram. Passou tudo tão rápido como um sonho, que terminou com as lanchas usando toda a largura do rio para fazer as manobras e sumir, bruma da manhã sobre o rio, rapidamente rio abaixo.

        Depois. Muito, muito depois que as lanchas sumiram lá na curva do rio, lá longe onde terminava o estirão. Depois que todos os adultos já tinham subido e só as crianças continuavam na beira do rio, Depois que as crianças já tinham enjoado de olhar aquele estirão que nunca mais ia ser o mesmo sem as lanchas.

        Depois foi que uma das crianças se lembrou.

        -- Bugrinho.

        -- O que é que tem Bugrinho?

        -- Quedê?

        -- Quedê o que?

        -- Bugrinho. Ele não estava aqui. Você não soltou?

        -- Eu? Você que ficou de soltar.

        -- Eu deixei a chave com você, lembra?

        -- Eu guardei a chave no lugar. Não ficou nada combinado.

        As crianças se entreolhavam assustadas. Era pra ser só uma brincadeira. Era prá soltá-lo no último minuto. E agora, coitado do Bugrinho. Coitado deles. Aquilo agora depois daqueles momentos de felicidade. O melhor dia de suas vidas.

        -- Agora...Oh! Meu Deus – gemeu uma das meninas, que vontade de chorar.

        -- Agora, agora... Caga na mão e joga fora – respondeu irritado um dos meninos mais velhos.

        Que maldade tinham feito, que coisa muito ruim, ninguém nunca tinha feito uma coisa tão ruim assim. Seus olhos se falavam assim, sem saber o que fazer.

        Até que um deles desabalou na carreira rumo ao depósito seguido por todas as crianças. Suando, correndo, ofegantes e silenciosas.

        Estacaram em frente ao depósito. Encostaram os ouvidos na porta. Nada. Nenhum ruído. O cadeado continuava fechado.

        -- Bugrinho! Bugrinho!

        Nada.

        -- Me dá a chave.

        Empurraram a porta que foi se abrindo com um guinchado. Lá dentro estava quase escuro. Não dava pra ver quase nada. Aí seus olhos foram se acostumando com a penumbra e eles foram distinguindo o saco, as cordas, o pano sujo que eles tinham enfiado na boca do Bugrinho.

        -- Quedê ele?

        O depósito não era grande e como estava abandonado não havia nenhum móvel atrás do qual Bugrinho pudesse se esconder. Nem nenhuma tralha...

        -- Bugrinho! – chamaram com a voz trêmula.

        Não havia nenhuma outra porta e aquela pela qual eles tinham entrado estava trancada quando eles chegaram.

        -- Meu Deus, quedê Bugrinho?

        As crianças suavam frio. O que estava acontecendo?

        -- Você soltou Bugrinho? Fala!

        Todas as crianças estavam arrepiadas.

        -- Não soltei. Juro!

        Os olhos já tinham se acostumado à penumbra. Eles vasculhavam com olhos atentos o salão vazio. Em seguida, elevaram os olhos para a janela lá no alto. Era impossível que Bugrinho, tão pequeno, sem ter onde subir, pudesse ter fugido por ali.

        Ei! Mas a janela não estava vazia. Um pássaro estava pousado nela.

        Um pequeno gavião. Talvez filhote. Imóvel! Olhando longe. Sério.

        Parecia que não tinha nada a ver com aquelas crianças lá em baixo. Talvez nem as tivesse visto. Parecia uma linda estatueta de madeira envernizada.

        As crianças também pareciam estátuas, pequenas estátuas morenas feitas do barro do barranco. O pequeno gavião olhou as crianças com aqueles olhos redondos, um pouco puxados como de um pequeno índio. Em seguida, abaixou a cabeça e, um momento antes de desviar os olhos, piscou o olho esquerdo.

        As crianças, de olhos arregalados e bocas entreabertas, entretanto permaneciam mudas.

        O gavião encolheu-se preparando para voar. Deu impulso e estendendo as asas alçou voo.

        Como um verdadeiro rei.

        Escutei esta história de um velhinho bem velhinho. Desconfio que ele era uma dessas crianças. Talvez não. Talvez fosse apenas um velho que gostava de inventar histórias. Às vezes, eu pedia que ele me contasse a história de Bugrinho, mas, às vezes, eu pedia pra ele contar a história de Macauã. Ou Macamã. O que é a mesma coisa.

SCAFF, I C. Macauã. IN: CARVALHO, J. M. K. de. LEITE, M. C. S., (Sel. e org.). Na margem esquerda do rio – contos de fim de século. São Paulo: Via Lettera, 2002. p. 71-83.

Entendendo o conto:

01 – Quem é Bugrinho e quais são suas principais características físicas e de comportamento no início do conto?

      Bugrinho é um menino, de uns onze a doze anos, que chegou ao Estirão Bonito muito pequeno. Ele é quieto e calado, com olhos redondos e um pouco puxados como os de índios, e tem o sestro de piscar o olho esquerdo antes de desviar o olhar.

02 – Qual a importância da escola no Estirão Bonito para Bugrinho e como ele se comporta nela?

      A escola é o único "privilégio" de Bugrinho. Apesar de nunca faltar, ele permanece calado e é um mistério se realmente aprende, pois ninguém lhe tomava lições.

03 – Quais lendas e medos assombram as crianças do Estirão Bonito?

      As crianças têm medo do Negrinho d’água e do Minhocão, associados ao sumiço e morte de duas crianças que foram encontradas na beira do rio.

04 – Qual é a grande novidade que a professora anuncia e por que ela causa tanta comoção nas crianças?

      A professora anuncia a chegada de duas lanchas, uma com motor e outra, a "chata", para mercadorias. Isso causa comoção porque há muito tempo uma lancha não subia o rio até ali, e a maioria das crianças nunca havia visto uma.

05 – Qual é a reação de Bugrinho ao anúncio da lancha e o que acontece quando ele tenta compartilhar sua experiência?

      Bugrinho surpreende a todos ao dizer que já subiu em uma lancha, causando espanto, risinhos e cochichos entre as crianças. No entanto, ao tentar contar sua experiência, ele se intimida e não consegue articular as palavras, sendo alvo de desconfiança e zombaria.

06 – Como a professora, em sua fala, relaciona a chegada das lanchas com suas próprias memórias e afetos?

      A professora se emociona ao falar das lanchas, lembrando de seu tempo de moça e de seu irmão, o comandante, que trazia mercadorias e, principalmente, maçãs argentinas, sendo muito querido pelas crianças da época.

07 – Qual o motivo que leva as crianças a armarem uma "brincadeira" cruel com Bugrinho?

      As crianças ficam magoadas e irritadas com a suposta mentira de Bugrinho sobre já ter visto uma lancha. Elas sentem que ele está "bancando o sabido" e que isso "tira a graça" da chegada da lancha para elas, decidindo que ele "merecia uma lição".

08 – Onde e como Bugrinho é capturado e trancado pelas outras crianças?

      Bugrinho é capturado no pátio da usina, ao passar por trás da moenda. As crianças o atacam, enfiam um pano sujo em sua boca, amarram-no e o colocam dentro de um saco, trancando-o em um depósito abandonado com uma janela alta e sem escada.

09 – O que Bugrinho faz ao ouvir o apito da lancha, já que está preso?

      Ao ouvir o apito da lancha, Bugrinho tenta forçar a porta e, ao perceber que está trancado e que a lancha está chegando, ele grita desesperadamente muitas e muitas vezes, até ficar rouco e chorar.

10 – Qual é a revelação final sobre Bugrinho e como ela se conecta ao título do conto?

      A revelação final é que Bugrinho não está mais no depósito. Em vez disso, as crianças veem um pequeno gavião pousado na janela alta, que as observa e pisca o olho esquerdo, exatamente como Bugrinho fazia. Isso sugere que Bugrinho se transformou em um gavião Macauã, uma das aves que ele tanto admirava e que era considerada "rei" entre os gaviões, conectando-se diretamente ao título "Macauã".

 

 

 

quarta-feira, 4 de junho de 2025

CONTO: O BURRINHO PEDRÊS - FRAGMENTO - GUIMARÃES ROSA - COM GABARITO

 Conto: O burrinho pedrês – Fragmento

           Guimarães Rosa

        Era um burrinho pedrês, miúdo e resignado, vindo de Passa-Tempo, Conceição do Serro, ou não sei onde no sertão. Chamava-se Sete-de-Ouros, e já fora tão bom, como outro não existiu e nem pode haver igual.

        [...]

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgu0u97qQzbiiNoucpCUcYCN5F1rkRb2lfPzEOovqDrbTzkCe3VpbgK5h-Ehyl_Q2oeWaYPBsKDLVvEJuu37NgOQv_RgpmCgaAsF29YFu5AH78rFLlXqrPA6GVZNstBDiSuHlQ2CrAPz-B-WSMuOYXO7MAuwZ5JFKtEUj608KKtPkVMH1YESZWqWJIsix0/s320/Burrinho%20Pedr%C3%AAs.jpg


        As ancas balançam, e as vagas de dorsos, das vacas e touros, batendo com as caudas, mugindo no meio, na massa embolada, com atritos de couros, estralos de guampas, estrondos e baques, e o berro queixoso do gado Junqueira, de chifres imensos, com muita tristeza, saudade dos campos, querência dos pastos de lá do sertão…

        “Um boi preto, um boi pintado,
        cada um tem sua cor.
        Cada coração um jeito
        de mostrar o seu amor.”

        Boi bem bravo, bate baixo, bota baba, boi berrando… Dança doido, dá de duro, dá de dentro, dá direito… Vai, vem, volta, vem na vara, vai não volta, vai varando…

        [...].

25. ed. Rio de Janeiro: José Olympio,1982. p. 24.

Fonte: Livro – Português: Linguagens, 3ª Série – Ensino Médio – William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães, 9ª ed. – São Paulo: Saraiva Editora, 2013. p. 299.

Entendendo o conto:

01 – Qual é a descrição inicial do burrinho Pedrês e qual seu nome?

      O burrinho Pedrês é descrito como "miúdo e resignado". Seu nome é Sete-de-Ouros, e o narrador enfatiza que ele "já fora tão bom, como outro não existiu e nem pode haver igual."

02 – Como o autor descreve o movimento e o som do gado no trecho?

      O autor descreve o movimento e o som do gado de forma bastante sensorial e rítmica. Ele menciona "ancas balançam, e as vagas de dorsos", "batendo com as caudas, mugindo no meio, na massa embolada, com atritos de couros, estralos de guampas, estrondos e baques", e "o berro queixoso".

03 – Que sentimentos o gado Junqueira parece expressar, segundo o narrador?

      O gado Junqueira, com seus "chifres imensos", parece expressar "muita tristeza, saudade dos campos, querência dos pastos de lá do sertão". Isso atribui aos animais sentimentos humanos de nostalgia e apego ao seu local de origem.

04 – Qual é a função da quadra popular ("Um boi preto, um boi pintado...") inserida no texto?

      A quadra popular serve para introduzir uma reflexão sobre a individualidade e a diversidade ("cada um tem sua cor") e a expressão do amor ("Cada coração um jeito / de mostrar o seu amor"). Ela quebra o ritmo da descrição do gado e adiciona uma camada de lirismo e sabedoria popular ao conto.

05 – Observe o trecho "Boi bem bravo, bate baixo, bota baba, boi berrando… Dança doido, dá de duro, dá de dentro, dá direito… Vai, vem, volta, vem na vara, vai não volta, vai varando…". Que recurso de linguagem Guimarães Rosa utiliza aqui e qual o efeito que ele cria?

      Guimarães Rosa utiliza intensamente a aliteração (repetição de sons consonantais, como o "b" em "boi bem bravo, bate baixo, bota baba, boi berrando") e o ritmo marcado, quase onomatopeico. O efeito criado é de dinamismo, sonoridade e vivacidade, mimetizando os movimentos e os sons do boi, e dando um caráter quase musical e visual à escrita.