Conto: A hora e a vez de Augusto Matraga – Fragmento
Guimarães Rosa
Mas, afinal, as chuvas cessaram, e deu
uma manhã em que Nhô Augusto saiu para o terreiro e desconheceu o
mundo: um sol, talqualzinho a bola de enxofre do fundo do pote, marinhava céu
acima, num azul de água sem praias, com luz jogada de um para o outro lado, e
um desperdício de verdes cá embaixo – a manhã mais bonita que ele já pudera
ver.

Estava capinando, na beira do rego.
De
repente, na altura, a manhã gargalhou: um bando de maitacas passava, tinindo
guizos, partindo vidros, estralejando de rir. E outro. Mais outro. E ainda
outro, mais baixo, com as maitacas verdinhas, grulhantes, gralhantes, incapazes
de acertarem as vozes na disciplina de um coro.
Depois, um grupo verde-azulado, mais
sóbrio de gritos e em fileiras mais juntas.
– Uai! Até as maracanãs!
E
mais maitacas. E outra vez as maracanãs fanhosas. E não se acabavam mais. Quase
sem folga: era uma revoada estrilando bem por cima da gente, e outra brotando
ao norte, como pontozinho preto, e outra – grão de verdura – se sumindo no sul.
– Levou o diabo, que eu nunca pensei
que tinha tantos!
E agora os periquitos, os periquitos de
guinchos timpânicos, uma esquadrilha sobrevoando outra ... E mesmo, de vez em
quando, discutindo, brigando, um casal de papagaios ciumentos. Todos tinham
muita pressa: os únicos que interromperam, por momentos, a viagem, foram os
alegres tuins, os minúsculos de cabecinha amarela, que não levam nada a sério,
e que choveram nos pés de mamão e fizeram recreio, aos pares, sem sustar o
alarido — rrr!-rrri!! rrr!-rrri!! ...
Mas o que não se interrompia era o
trânsito das gárrulas maitacas. Um bando grazinava alto, risonho, para o que ia
na frente:
— Me espera! Me espera!... — E o grito tremia e ficava nos ares, para o outro
escalão, que avançava lá atrás.
— Virgem! Estão todas assanhadas,
pensando que já tem milho nas roças... Mas, também, como é que podia haver um
de-manhã mesmo bonito, sem as maitacas?!...
O sol ia subindo, por cima do voo verde
das aves itinerantes. Do outro lado da cerca, passou uma rapariga. Bonita!
Todas as mulheres eram bonitas. Todo anjo do céu devia de ser mulher."
[...]
João Guimarães Rosa, em
“A hora e a vez de Augusto Matraga”.
Fonte: Português. Série
novo ensino médio. Volume único. Faraco & Moura – 1ª edição – 4ª impressão.
Editora Ática – 2000. São Paulo. p. 423-424.
Entendendo o conto:
01 – Qual a transformação na
paisagem que Nhô Augusto observa após as chuvas?
Após as chuvas,
Nhô Augusto se depara com uma manhã ensolarada e vibrante, com um céu azul
intenso e uma profusão de verde na vegetação, descrevendo a manhã como a mais
bonita que já viu.
02 – Que elementos da natureza
chamam a atenção de Nhô Augusto na manhã descrita?
Nhô Augusto fica
impressionado com a quantidade e variedade de aves que cruzam o céu, como
maitacas, maracanãs, periquitos e papagaios, além da beleza do sol e da paisagem
verdejante.
03 – Como as aves são
descritas no texto?
As aves são
descritas com uma linguagem rica em sons e cores, com referências aos seus
gritos, como "tinindo guizos" e "grulhantes, gralhantes", e
às suas cores, como "verdinhos" e "verde-azulado".
04 – Qual a reação de Nhô
Augusto ao observar a revoada de aves?
Nhô Augusto
expressa surpresa e admiração diante da quantidade de aves, exclamando:
"Levou o diabo, que eu nunca pensei que tinha tantos!".
05 – Que reflexão Nhô Augusto
faz sobre as maitacas?
Nhô Augusto
comenta que as maitacas parecem estar "assanhadas", como se
estivessem ansiosas pela colheita de milho, e reconhece que a beleza da manhã
está intrinsecamente ligada à presença delas.
06 – Como a figura da mulher é
apresentada no final do fragmento?
A figura da
mulher é idealizada e associada à beleza da paisagem e à figura angelical, com
a frase: "Todas as mulheres eram bonitas. Todo anjo do céu devia de ser
mulher.".
07 – Qual a importância da
descrição da natureza no fragmento?
A descrição da
natureza exuberante serve como um contraponto à aridez do sertão e à violência
presente em outras partes do conto, além de revelar a sensibilidade de Nhô
Augusto e sua capacidade de se maravilhar com a beleza do mundo.