SE
QUEIMAR, QUEIMOU...
"Não faço diário:
"Não faço diário:
Rabisco poemas,
Desenho janelas
Desenho janelas
E vivo levado
Em versos e vento.”
Durante os lentos anos de minha
infância, senti no garoto a frustração de habitar um mundo muito transparente.
Os dias da minha casa não me encantavam com mistérios e segredos, as noites não
me seduziam com absurdos e esquisitices.
Não era por falta de “cadê?”. Eu bem
que vasculhava por todos os cantos, mas não encontrava nunca uma passagem
secreta, no quarto dos meus pais, em meus pais, em mim.
Lembro que, de vez em quando, eu
chegava a sonhar com portas falsas, um fundo falso de gaveta, uma história mal
contada, qualquer coisa inexplicável pra me empolgar. Nada. A vida em minha
casa deslizava cristalina, no jardim de rosas evidentes, na elegância fria do
primeiro andar, nos corredores do segundo, tão eficazes e à-toa. Até mesmo o
sótão, que eu tomava por companheiro de rebeldia e insatisfação, nada me
revelou de extraordinário.
Só quando fiz nove anos é que fui
atinar: os mistérios e absurdos que eu tanto não encontrava no dia-a-dia da
minha casa estavam me esperando, aquele tempo todo, nos livros da sala de estar.
Naquelas páginas empoeiradas, eu passei
no sítio do Pica-pau Amarelo, viajei nos istos ou aquilos, enfrentei o gênio do
crime, faturei o caneco de prata, fiquei maravilhado de encantações e
doideiras.
Eu tinha descoberto: a verdadeira
passagem secreta estava escondida ali. Uma passagem discreta, encaixada entre
versos e letras. Logo, logo, virei uma traça, devorei toda a literatura da
casa.
Mas o melhor foi quando descobri que as
páginas em branco dos cadernos não serviam só pra dever de casa. Elas me
convidavam a enchê-las de histórias, segredos e imaginação. Eu aprendi a ser
aprendiz de poeta.
Hoje, eu, com dezesseis anos, perdi até
a conta do tanto de poemas que escrevi. Uma porção ou mais, como diria meu avô.
Alguns alegres, outros tristes, uns bem simplesinhos, outros metidos a
complicados... Pra falar a verdade, a maioria nem do rascunho passou.
Mas nunca joguei nenhum fora, nem o
primeiríssimo, sobre a professora de Português que não parava de piscar pra mim.
Acabou que era só um tique nervoso da coitada.
É, esses poemas contam mais a minha
infância e adolescência do que qualquer diário, que eu não fiz. Ninguém no
mundo poderia imaginar que algum dia eu fosse botar fogo em todos eles.
Mas aqui estou, sentado no chão do meu
quarto, com esta caixa de fósforos na mão.
São duas da manhã. Desde a tardinha eu
estou crescendo em coragem, os poemas empilhados à minha frente. Já resolvi:
Vou queimar um por um e depois nunca mais escrevo. Nem uma estrofe.
Meu avô acha que é uma loucura sem
volta. Se queimar, queimou, era uma vez. Eu sei que é muito radical, mas não
tenho outro remédio. Só de olhar para os poemas eu penso em Helena e, juro por
Deus, não quero nunca mais pensar em Helena, lembrar que era ela a musa de
tantos sonhos e versos. Lembrar... eu esperando feito um bobo no meio da zoeira
de um shopping center lotado.
Leo Cunha. As pilhas fracas do tempo.
São Paulo: Atual, 1994. p. 1-3.
1 – Por que o sótão de uma
casa seria companheiro de rebeldia?
Talvez por guardar segredos ou objetos a
que ninguém dava importância ou atenção. Provavelmente era o local onde a
personagem se isolava nos momentos de conflito.
2 – A personagem detém-se em
fatos de sua infância. Qual a importância de:
a)
Afirmar que nada havia de misterioso em sua
casa?
A infância é mostrada como algo desinteressante para contrastar com
a vida da personagem após a descoberta da literatura. A vida da personagem
passa a ser povoada de aventuras.
b)
Contar sua trajetória como escritor?
A trajetória da personagem primeiro como leitor e depois como
escritor nos permite avaliar a importância de sua decisão de queimar todos os
seus poemas.
3 – Na sua opinião, para
onde levaria uma passagem secreta dentro da personagem?
Poderia levar a uma parte de seu ser que
lhe era desconhecida, que guardava segredos não revelados a ninguém, nem a ele
próprio. Esses segredos e mistérios que dormiam dentro dele foram despertados
pela literatura.
4 – É possível dizer que a
personagem é dada a atitudes radicais? Por quê?
Ele afirma que vai queimar os poemas,
mas, depois de pensar muito, ainda tem dúvidas. Na verdade, é a raiva que sente
por Helena que move a isso.
5 – Qual o significado
simbólico de queimar todos os seus versos?
Queimar os versos
pode significar romper com a infância, com a adolescência, com um mundo do qual
a personagem está saindo ao entrar na vida adulta. Pode ter, também, um dos
outros significados do fogo: o de renascer após uma purificação: a personagem
quer destruir as provas de seu amor por Helena, que está retratado nos poemas,
e partir para uma nova vida. Depois da desilusão amorosa, escrever versos
perdeu o sentido. Ele “nunca mais” será romântico.
6 – Verifique o recurso
utilizado neste trecho:
“Elas [as páginas em branco] me convidavam a enchê-las de histórias
[...]”.
É o recurso da personificação.
Transcreva as frases
seguintes e use o mesmo recurso para completa-las.
a)
A velha gaveta da cômoda. Resposta pessoal.
b)
Aquela máquina fotográfica. Resposta pessoal.
c)
Uma britadeira. Resposta
pessoal.
d)
Seu retrato na parede. Resposta pessoal.
7 – Aponte outros recursos
expressivos no texto.
Resposta pessoal do aluno. Observar:
--- As adjetivações inéditas: rosas
evidentes, corredores eficazes e à-toa, vida cristalina;
--- Neologismo e metáforas: encantações;
“a vida deslizava cristalina”; “virei uma traça”;
--- Construções sintáticas inusuais e
frases nominais: “os mistérios e absurdos que eu tanto não encontrava...”;
“nada”; “nem uma estrofe”;
--- Efeitos sonoros: passagem secreta /
passagem discreta;
--- Relação da vida da personagem com a
literatura: “... enfrentei o gênio do crime...”; “Se queimar, queimou, era uma
vez.”
8 – Releia este parágrafo:
“Naquelas páginas empoeiradas, eu passei
no sítio do Pica-pau Amarelo, viajei nos istos ou aquilos, enfrentei o gênio do
crime, faturei o caneco de prata, fiquei maravilhado de encantações e
doideiras.”
a)
Qual o processo de construção usado no
período: coordenação ou subordinação? Por que o autor optou por esse processo?
O processo utilizado é o da coordenação. O autor optou por coordenar
ações para mostrar a sequência de leituras realizadas por ele, quando menino.
b)
Que títulos de obras são citados? Por que
aparecem com letra minúscula?
Sítio do Pica-pau Amarelo, como referências às obras de Monteiro
Lobato; ou isto ou aquilo, poema de Cecília Meireles; o gênio do crime e Caneco
de prata, livros infanto-juvenis de João Carlos Marinho. Os títulos aparecem
com letra minúscula porque a personagem se apropria deles e os cita não mais
como títulos de obras, mas como parte de sua experiência.
c)
O que é possível concluir sobre a relação da
personagem com a literatura?
A personagem de tal forma incorpora a literatura à sua vida que se
identifica com as personagens da história que leu. Na verdade, é a turma do
Gordo que enfrenta o gênio do crime e não ele. Essa simbiose fica patente
quando ele usa a expressão “era uma vez” para falar de sua própria vida.
9 – Reescreva as passagens a
seguir, com suas palavras. Em seguida, faça um comentário sobre a escolha do
autor.
a)
“[...] os mistérios e absurdos que eu tanto
não encontrava no dia-a-dia [...]”.
Resposta pessoal do aluno.
b)
“[...] fiquei maravilhado de encantações e
doideiras”.
Resposta pessoal do aluno.
10 – Considerando as
características do texto, que público-alvo o autor quer atingir?
O autor quer atingir o público adolescente porque retrata as
experiências de um rapaz de dezesseis anos que enfrenta uma desilusão amorosa.