Crônica: Cartilha Brasileira
Pedro Bial
Queridas filhas, vocês chegam ao Brasil
depois de amanhã. Vocês, meninas, são um tipo muito especial de brasileirinhas.
Pois aqui vocês vieram ao mundo, nasceram em dias de sol tropical, e receberam
as primeiras lufadas de vento direto do Oceano Atlântico. Só que bem pequeninas
ainda, vocês foram para o hemisfério norte, foram morar na Inglaterra, ou como
se diz por aqui, nas Oropas...
Agora, vocês terão de aprender o que é
o Brasil bem rapidinho... É verdade que nós vínhamos em todas as férias, e é
verdade também que vocês sempre adoraram. Brasil era sinônimo de farra,
biquíni, praia, vovô, vovó, tio, tia, primo, prima... Uma delícia...
Lembro daquela vez em que uma amiga minha
perguntou a uma de vocês, bem novinha ainda, o que achava do Brasil. A resposta
foi um sorriso encantado, feliz, e palavras contentes sobre brincadeira,
carnaval, sol e mar... Aí, a mesma amiga fez outra pergunta: e lá na
Inglaterra, como é? A resposta: lá, você precisa saber bem as regras...
No Brasil, esse negócio de regras muda
toda hora, e na maioria dos casos vale para alguns e não para todos...
*
Em primeiro lugar, tenham paciência.
Principalmente, porque vocês vêm morar no Rio de Janeiro, onde parece que a
primeira solução de qualquer problema é o adiamento. Mas, com tolerância e
esquecendo a pressa, as coisas acabam se resolvendo.
Porque, na batata mesmo, o número de
pessoas que gostaria de resolver as coisas, de melhorar a cidade é maior, bem
maior do que o número de preguiçosos e aproveitadores. Os brasileiros trabalham
muito.
*
Sorte, vocês chegarem agora em julho.
Pode até ser que vocês usem um daqueles cardigans de primavera londrina neste
inverno carioca. Mas, depois, preparem-se; é quente, muito quente por aqui.
*
Será difícil para vocês entender como
um país rico desse jeito tem tanta gente pobre na rua. Vocês vão ter que
estudar um bocado de História do Brasil, e mesmo assim vai ser duro chegar a
uma conclusão.
Uma pista: lembram aquela revolução na
França, que vocês estudaram, em que no fim da história os reis perdiam suas
cabeças na guilhotina? Lembram que depois daquela sangueira toda, os franceses
deixaram de ser "súditos" e passaram a ser "cidadãos"? Pois
é, meus amores, aqui nunca teve nada disso não...
*
Por isso, também, vocês terão de ser
mais cuidadosas na rua. Aqui, tem muito assalto e até sequestros. Em certas
partes da cidade, vocês nunca irão, ou só irão se eu estiver junto. Acho que
vocês até vão gostar de conhecer uma favela, ver como as pessoas vivem no maior
sufoco e mantêm uma alegria de viver difícil de encontrar naquela prosperidade
europeia.
Na verdade, a vidinha de vocês vai ser
bem diferente. Vocês vão andar de carro para cima e para baixo, em todos os lugares
vocês se verão cercadas por grades e guaritas de segurança, como se dois países
ocupassem o mesmo lugar ao mesmo tempo. Num país, vocês vão curtir mordomias
que aí na Inglaterra a gente nem sonhava. Só que, em volta da gente, sombras de
perigo estarão rondando. Mas, não é para ter medo não... É tudo gente, e se,
por acaso, vocês se virem numa situação meio cabeluda, não esqueçam: quem
parece tão ameaçador é humano também, e só nos resta negociar. Negociar pela
própria vida.
Mas, pode deixar que nada de mal vai
acontecer.
*
Vocês vão ter que acordar mais cedo
para ir à escola, por causa do trânsito. É cada jam que vocês nem imaginam...
*
Ah!, vocês vão estranhar um pouco os
modos de outras meninas. Aqui, desde cedo, as garotas são incentivadas a se
comportar como mulheres. Não só na maneira de vestir ou andar. Nos programas infantis
na televisão, as crianças aprendem umas danças quase pornográficas. Danças que
aí na Inglaterra vocês nunca veriam, danças que não sairiam de casas noturnas,
vedadas a menores de dezoito anos.
*
Vai
ser duro dizer adeus aos amiguinhos aí de Londres. A gente, que xingou tanto os
ingleses, agora se dá conta de como fomos bem recebidos na ilha britânica.
Depois que aprendemos as tais regras, foi muito bom, não foi? Vamos sentir
saudades da televisão daí, e teremos que nos acostumar com a quantidade
estúpida de anúncios da telinha daqui.
*
Vocês nem se dão conta, mas o tempo em
que vivemos na Inglaterra nos fez brasileiros melhores.
E,
nesses últimos tempos, os brasileiros andam gostando de cuspir na própria
bandeira, adoram falar mal do Brasil, como se isto aqui não tivesse jeito
mesmo. Nós, que aprendemos como os europeus valorizam a sua nacionalidade,
vamos ver se ensinamos aos amigos, como é que se trata a própria pátria: com
amor e dedicação! (...)
*
E principalmente, meninas, aqui vocês
são muito importantes. O Brasil precisa de moças como vocês, inteligentes e esforçadas.
Lá, na Europa, vocês sabem, os jovens terminam a escola e não têm muito o que
fazer, ou melhor, têm que brigar muito para fazer alguma coisa e têm aquela
sensação de que tudo já foi feito. A Europa é velha...
Aqui, tudo ainda está por fazer.
Bem-vindas!
E, por favor, escrevam logo a vossa
cartilha brasileira, para que eu, burro velho, possa aprender por vossos
olhinhos tão lindos a ver um país que ainda não foi inventado.
Julho/96. Crônicas de
repórter. 5. ed. Rio de Janeiro, Objetiva Reportagem, 1996. p. 15-9.
Fonte: Português –
Linguagem & Participação, 6ª Série – MESQUITA, Roberto Melo/Martos, Cloder
Rivas – Ed. Saraiva, 1ª edição – 1998, p. 152-5.
Entendendo a crônica:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Tropical: dos trópicos, regiões quentes do mundo.
·
Lufadas: golpes de vento, rajadas.
·
Hemisfério: cada uma das metades do globo terrestre.
·
Regras: leis.
·
Adiamento: ato de deixar para depois.
·
Tolerância: aceitação.
·
Guilhotina: instrumento utilizado para decapitação.
·
Súditos: pessoas submetidas à vontade de outrem.
·
Cidadãos: pessoas que têm seus direitos civis e políticos garantidos.
·
Prosperidade: riqueza.
·
Jam: congestionamento de tráfego.
·
Pornográficas: imorais.
·
Vedadas: proibidas.
02 – As palavras usadas na
carta do pai saudoso caracterizam os “dois mundos” por ele comparados – O
Brasil e a Inglaterra. Faça um levantamento das palavras e expressões que
indicam os hábitos, o clima e a sociedade de cada país.
No Brasil – Hábitos: farra; carnaval; adiamento;
tolerância; grades; guaritas; trânsito; danças quase pornográficas. Clima: biquíni; sol tropical; lufadas
de vento direto do oceano Atlântico; quente, muito quente. Sociedade: trabalham muito; assaltos; sequestros; favela; viver num
sufoco; modos diferentes; regras que não valem para todos; garotas incentivadas
a se comportar como mulher.
Na Inglaterra – Hábitos: televisão melhor; valorizam a nacionalidade; jovens não
vão a casas noturnas antes dos dezoito anos. Clima: mais frio. Sociedade:
regras que valem para todos; jovens tem que brigar muito para fazer alguma
coisa; pois quase tudo já foi feito.
03 – Por que as filhas do
narrador são “um tipo muito especial de brasileirinhas”?
Porque elas
nasceram aqui no Brasil, mas, bem pequenas, viajaram para a Inglaterra e lá
viveram até julho de 1996.
04 – As meninas passavam as
férias no Brasil. Como elas viam o nosso país?
Elas o viam de modo muito positivo, como uma
festa.
05 – Segundo o texto, qual é
a diferença entre o Brasil e a Inglaterra?
No Brasil as
regras mudam rapidamente e não tem valor geral. Na Inglaterra não mudam e valem
para todos.
06 – Como você entendeu este
conselho: “Em primeiro lugar, tenham paciência. Principalmente porque vocês vem
morar no Rio de Janeiro, onde parece que a primeira solução de qualquer
problema é o adiamento”.
Segundo o texto,
no Rio de Janeiro os problemas são resolvidos “esquecendo a pressa”.
07 – De acordo com o texto,
por que há tantos pobres num país tão rico?
Porque nunca
houve no Brasil uma revolução como a francesa e, por isso, os brasileiros
continuam sendo súditos, não cidadãos.
08 – Dois problemas que os
moradores das grandes cidades brasileiras enfrentam aparecem no texto. Quais
são eles?
Os problemas de trânsito e a violência.
09 – O texto apresenta
críticas à televisão brasileira. Quais são elas?
A televisão incentiva
as meninas a comportarem-se como mulheres e “tem uma quantidade estúpida de
anúncios”.
10 – Qual é a lição que as
meninas aprenderam dos ingleses?
Que devemos tratar a pátria com amor e
dedicação.
11 – Como você entendeu o
último parágrafo do texto?
Resposta pessoal
do aluno.