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quinta-feira, 10 de março de 2022

CRÔNICA: CARTILHA BRASILEIRA - PEDRO BIAL - COM GABARITO

 Crônica: Cartilha Brasileira

              Pedro Bial

        Queridas filhas, vocês chegam ao Brasil depois de amanhã. Vocês, meninas, são um tipo muito especial de brasileirinhas. Pois aqui vocês vieram ao mundo, nasceram em dias de sol tropical, e receberam as primeiras lufadas de vento direto do Oceano Atlântico. Só que bem pequeninas ainda, vocês foram para o hemisfério norte, foram morar na Inglaterra, ou como se diz por aqui, nas Oropas...

        Agora, vocês terão de aprender o que é o Brasil bem rapidinho... É verdade que nós vínhamos em todas as férias, e é verdade também que vocês sempre adoraram. Brasil era sinônimo de farra, biquíni, praia, vovô, vovó, tio, tia, primo, prima... Uma delícia...

        Lembro daquela vez em que uma amiga minha perguntou a uma de vocês, bem novinha ainda, o que achava do Brasil. A resposta foi um sorriso encantado, feliz, e palavras contentes sobre brincadeira, carnaval, sol e mar... Aí, a mesma amiga fez outra pergunta: e lá na Inglaterra, como é? A resposta: lá, você precisa saber bem as regras...

        No Brasil, esse negócio de regras muda toda hora, e na maioria dos casos vale para alguns e não para todos...

                                                 *

        Em primeiro lugar, tenham paciência. Principalmente, porque vocês vêm morar no Rio de Janeiro, onde parece que a primeira solução de qualquer problema é o adiamento. Mas, com tolerância e esquecendo a pressa, as coisas acabam se resolvendo.

        Porque, na batata mesmo, o número de pessoas que gostaria de resolver as coisas, de melhorar a cidade é maior, bem maior do que o número de preguiçosos e aproveitadores. Os brasileiros trabalham muito.

                                                 *

        Sorte, vocês chegarem agora em julho. Pode até ser que vocês usem um daqueles cardigans de primavera londrina neste inverno carioca. Mas, depois, preparem-se; é quente, muito quente por aqui.

                                                 *

        Será difícil para vocês entender como um país rico desse jeito tem tanta gente pobre na rua. Vocês vão ter que estudar um bocado de História do Brasil, e mesmo assim vai ser duro chegar a uma conclusão.

        Uma pista: lembram aquela revolução na França, que vocês estudaram, em que no fim da história os reis perdiam suas cabeças na guilhotina? Lembram que depois daquela sangueira toda, os franceses deixaram de ser "súditos" e passaram a ser "cidadãos"? Pois é, meus amores, aqui nunca teve nada disso não...

                                                  *

        Por isso, também, vocês terão de ser mais cuidadosas na rua. Aqui, tem muito assalto e até sequestros. Em certas partes da cidade, vocês nunca irão, ou só irão se eu estiver junto. Acho que vocês até vão gostar de conhecer uma favela, ver como as pessoas vivem no maior sufoco e mantêm uma alegria de viver difícil de encontrar naquela prosperidade europeia.

        Na verdade, a vidinha de vocês vai ser bem diferente. Vocês vão andar de carro para cima e para baixo, em todos os lugares vocês se verão cercadas por grades e guaritas de segurança, como se dois países ocupassem o mesmo lugar ao mesmo tempo. Num país, vocês vão curtir mordomias que aí na Inglaterra a gente nem sonhava. Só que, em volta da gente, sombras de perigo estarão rondando. Mas, não é para ter medo não... É tudo gente, e se, por acaso, vocês se virem numa situação meio cabeluda, não esqueçam: quem parece tão ameaçador é humano também, e só nos resta negociar. Negociar pela própria vida.

        Mas, pode deixar que nada de mal vai acontecer.

                                                     *

        Vocês vão ter que acordar mais cedo para ir à escola, por causa do trânsito. É cada jam que vocês nem imaginam...

                                                     *

        Ah!, vocês vão estranhar um pouco os modos de outras meninas. Aqui, desde cedo, as garotas são incentivadas a se comportar como mulheres. Não só na maneira de vestir ou andar. Nos programas infantis na televisão, as crianças aprendem umas danças quase pornográficas. Danças que aí na Inglaterra vocês nunca veriam, danças que não sairiam de casas noturnas, vedadas a menores de dezoito anos.

                                                   *

        Vai ser duro dizer adeus aos amiguinhos aí de Londres. A gente, que xingou tanto os ingleses, agora se dá conta de como fomos bem recebidos na ilha britânica. Depois que aprendemos as tais regras, foi muito bom, não foi? Vamos sentir saudades da televisão daí, e teremos que nos acostumar com a quantidade estúpida de anúncios da telinha daqui.

                                                   *

       Vocês nem se dão conta, mas o tempo em que vivemos na Inglaterra nos fez brasileiros melhores.

        E, nesses últimos tempos, os brasileiros andam gostando de cuspir na própria bandeira, adoram falar mal do Brasil, como se isto aqui não tivesse jeito mesmo. Nós, que aprendemos como os europeus valorizam a sua nacionalidade, vamos ver se ensinamos aos amigos, como é que se trata a própria pátria: com amor e dedicação! (...)

                                                   *

        E principalmente, meninas, aqui vocês são muito importantes. O Brasil precisa de moças como vocês, inteligentes e esforçadas. Lá, na Europa, vocês sabem, os jovens terminam a escola e não têm muito o que fazer, ou melhor, têm que brigar muito para fazer alguma coisa e têm aquela sensação de que tudo já foi feito. A Europa é velha...

        Aqui, tudo ainda está por fazer.

        Bem-vindas!

        E, por favor, escrevam logo a vossa cartilha brasileira, para que eu, burro velho, possa aprender por vossos olhinhos tão lindos a ver um país que ainda não foi inventado.

Julho/96. Crônicas de repórter. 5. ed. Rio de Janeiro, Objetiva Reportagem, 1996. p. 15-9.

Fonte: Português – Linguagem & Participação, 6ª Série – MESQUITA, Roberto Melo/Martos, Cloder Rivas – Ed. Saraiva, 1ª edição – 1998, p. 152-5.

Entendendo a crônica:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Tropical: dos trópicos, regiões quentes do mundo.

·        Lufadas: golpes de vento, rajadas.

·        Hemisfério: cada uma das metades do globo terrestre.

·        Regras: leis.

·        Adiamento: ato de deixar para depois.

·        Tolerância: aceitação.

·        Guilhotina: instrumento utilizado para decapitação.

·        Súditos: pessoas submetidas à vontade de outrem.

·        Cidadãos: pessoas que têm seus direitos civis e políticos garantidos.

·        Prosperidade: riqueza.

·        Jam: congestionamento de tráfego.

·        Pornográficas: imorais.

·        Vedadas: proibidas.

02 – As palavras usadas na carta do pai saudoso caracterizam os “dois mundos” por ele comparados – O Brasil e a Inglaterra. Faça um levantamento das palavras e expressões que indicam os hábitos, o clima e a sociedade de cada país.

     No Brasil – Hábitos: farra; carnaval; adiamento; tolerância; grades; guaritas; trânsito; danças quase pornográficas. Clima: biquíni; sol tropical; lufadas de vento direto do oceano Atlântico; quente, muito quente. Sociedade: trabalham muito; assaltos; sequestros; favela; viver num sufoco; modos diferentes; regras que não valem para todos; garotas incentivadas a se comportar como mulher.

      Na Inglaterra – Hábitos: televisão melhor; valorizam a nacionalidade; jovens não vão a casas noturnas antes dos dezoito anos. Clima: mais frio. Sociedade: regras que valem para todos; jovens tem que brigar muito para fazer alguma coisa; pois quase tudo já foi feito.

03 – Por que as filhas do narrador são “um tipo muito especial de brasileirinhas”?

      Porque elas nasceram aqui no Brasil, mas, bem pequenas, viajaram para a Inglaterra e lá viveram até julho de 1996.

04 – As meninas passavam as férias no Brasil. Como elas viam o nosso país?

      Elas o viam de modo muito positivo, como uma festa.

05 – Segundo o texto, qual é a diferença entre o Brasil e a Inglaterra?

      No Brasil as regras mudam rapidamente e não tem valor geral. Na Inglaterra não mudam e valem para todos.

06 – Como você entendeu este conselho: “Em primeiro lugar, tenham paciência. Principalmente porque vocês vem morar no Rio de Janeiro, onde parece que a primeira solução de qualquer problema é o adiamento”.

      Segundo o texto, no Rio de Janeiro os problemas são resolvidos “esquecendo a pressa”.

07 – De acordo com o texto, por que há tantos pobres num país tão rico?

      Porque nunca houve no Brasil uma revolução como a francesa e, por isso, os brasileiros continuam sendo súditos, não cidadãos.

08 – Dois problemas que os moradores das grandes cidades brasileiras enfrentam aparecem no texto. Quais são eles?

      Os problemas de trânsito e a violência.

09 – O texto apresenta críticas à televisão brasileira. Quais são elas?

      A televisão incentiva as meninas a comportarem-se como mulheres e “tem uma quantidade estúpida de anúncios”.

10 – Qual é a lição que as meninas aprenderam dos ingleses?

      Que devemos tratar a pátria com amor e dedicação.

11 – Como você entendeu o último parágrafo do texto?

      Resposta pessoal do aluno.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

CRÔNICA: SALVE-SE QUEM PUDER - PEDRO BIAL - COM GABARITO

 Crônica: SALVE-SE QUEM PUDER

                Pedro Bial

        Volta e meia, alguém pergunta como anda a minha adaptação ao Brasil. Vai indo, digo eu, disfarçando o fato de que nunca me adaptei a lugar nenhum, ainda que me adapte a qualquer lugar. Não estranho cama ou travesseiro, ou a ausência deles. Estranho, sim, qualquer tipo de permanência.

        Para ser sucinto e direto, a melhor maneira de falar sobre a minha (ou melhor nossa, minha e de minhas crianças) adaptação ou inadaptação, é comentar o trânsito nas grandes cidades brasileiras.

        Toda a nossa falta de civilidade e o nosso pouco apreço pela vida ficam evidentes na loucura de nosso tráfego.

        O caso da demissão de nosso ministro, dos transportes!, é exemplar.

        O que passa pela cabeça de uma das mais altas figuras da República ao fugir covardemente da cena de um atropelamento? Se o destino não tivesse urdido a presença de uma testemunha casual teria sido mais um caso, uma causa e nenhuma consequência na selvageria assassina de nossas ruas.

        Cada um de nossos motoristas dirige contra todos os outros, em vez de conduzir a favor de sua própria segurança.

        Mas, como diria o esquartejador, vamos por partes:

        -- A impressão que se tem é de que se as buzinas dos carros brasileiros pifassem, ninguém sairia de casa. Nossos automóveis parecem movidos a buzina...

        -- Junte-se a buzina ao raro evento de alguém parar no sinal vermelho. Na melhor das hipóteses, o carro que vem atrás buzina para que o da frente avance. Na maior parte das vezes, a buzinada é acompanhada de uma aceleração ameaçadora. Também é comum o sujeito ir aproximando os pára-choques como se estivesse pronto a passar por cima. Como é que alguém ousa parar no sinal vermelho?

        E tem a célebre definição de Millôr Fernandes de fração de segundo: o tempo entre o sinal abrir e alguém buzinar atrás de você.

        -- O que a nossa imbecilidade coletiva não consegue enxergar é que se não respeitamos os vermelhos, não podemos confiar nos verdes. Cada cruzamento é uma roleta-russa.

        -- Seguir o carro da frente parece humilhação. Se alguém vai em sua dianteira, a obrigação do motorista brasileiro é ultrapassar. Em geral, o sujeito não tem pressa; é apenas parte da mentalidade “autopista” onipresente em nosso asfalto.

        -- Ultrapassar pela esquerda não satisfaz. Bom é cortar pela direita, de surpresa, acrescentando algum gesto obsceno ou sonoro palavrão à ultrapassagem pela direita.

        -- O ziguezague! De preferência dentro de um túnel movimentado. Na Inglaterra, como na maioria dos países civilizados, o ziguezague dá cadeia. Principalmente, porque quando faz o ziguezague, o motorista denuncia a si mesmo. O impulso de mudar de pista, cortando todos os outros veículos, é típico de motoristas alcoolizados.

        -- Consideramos absolutamente normal beber e dirigir. No resto do mundo, o motorista pilhado bêbado ao volante é conduzido ao xadrez como um assassino.

        -- E os ônibus... Ah, os ônibus! Em qualquer grande cidade do mundo, o trânsito só flui graças a pistas exclusivas para os transportes coletivos. Os ônibus ganham a sua faixa própria mas não ousam trafegar pelas outras pistas. Já por aqui, todas as pistas são invadidas e monopolizadas pelos monstros barulhentos e malcheirosos. A agressividade de seus motoristas pode ser explicada pelos baixos salários e falta de condições de trabalho, mas não deve ser perdoada.

                 Crônicas de um repórter. São Paulo, Objetiva, 1996.

       Fonte: Português – Linguagem & Participação, 8ª Série – MESQUITA, Roberto Melo / Martos, Cloder Rivas – 2ª edição – 1999 – Ed. Saraiva, p. 126-8.

Entendendo a crônica:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Sucinto: que usa poucas palavras, conciso.

·        Roleta-russa: jogo com revólver que contém apenas uma bala.

·        Apreço: estima, consideração.

·        Urdido: tramado, tecido.

·        Onipresente: presente em todos os lugares.

·        Esquartejador: aquele que corta em pedaços.

·        Obsceno: imoral.

·        Evento: acontecimento.

·        Monopolizadas: possuídas, exploradas com exclusividade.

·        Hipótese: ideia ou explicação não provada.

02 – Como se sente o narrador em relação ao Brasil?

      Ele ainda está em processo de adaptação.

03 – Qual o fato que deu origem à crônica?

      A demissão de um ministro dos transportes flagrado ao fugir covardemente da responsabilidade por um atropelamento.

04 – Por que o narrador escolhe o tema “trânsito nas grandes cidades brasileiras”?

      Porque o tema demonstra nossa falta de civilidade e pouco apreço pela vida.

05 – Como dirigem, segundo o texto, os motoristas brasileiros?

      Dirigem contra todos os outros motoristas.

06 – Qual a consequência principal do estilo brasileiro de dirigir?

      O elevado número de acidentes.

07 – Como você interpreta esta afirmação: “Cada cruzamento é uma roleta-russa”?

      Resposta pessoal do aluno.

08 – Como se sente o narrador em relação ao trânsito brasileiro?

      Sente-se mal, critica a irresponsabilidade e a impunidade que vê em toda a parte.

09 – O texto contém várias críticas aos motoristas brasileiros. Você concorda ou discorda delas? Por quê?

      Resposta pessoal do aluno.