quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

CRÔNICA: PEQUENOS ABUSOS - WALCYR CARRASCO - COM GABARITO

 Crônica: Pequenos Abusos

                Walcyr Carrasco

ACONTECEU EM UM SÁBADO, a uma da manhã. Eu havia saído com alguns amigos. A carona me deixou em frente o meu prédio, onde há uma banca de revistas. Estava aberta. Aproveitei para entrar. E uma banca grande, com caixa e até máquina que preenche cheque. Espantei-me ao ver, espalhados sobre o balcão, vários montinhos de dinheiro, alguns de moedas. Troco pequeno: notas de um, dois reais. O caixa contava o total. Ao lado, um engraxate. Moleque. Na idade em que já deveria estar em casa, e não solto pelas ruas do centro da cidade. Trouxera a féria do dia, em dinheiro picadinho, para trocar por notas de maior valor.   

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjs7T5_yZlyDWYRF2Z2uoXYowJlK-GQLyiqyEDrAr7MgFUxXbZP2KkI6Wf-B40QOwvbXwrrf76-6lu6fl7XhmhahTweAumxFuuFc0fWDHK3ebQQ3iviWnxgEStIr42JQJPT7ryAF8l6gWe7mwVFgplFUQpmE0WnZvlcZ2Da9TtWELgbUdC2WvYJCHohLH8/s320/ENGRAXATE.jpg

   

Nesse instante, um policial entrou na banca. Alto, fardado. Olhou para o garoto. Estendeu o pé, mostrando o sapato. O garoto quis explicar.

— Estou sem material para engraxar.

— Lustre — ordenou o policial.

Confesso que fiquei chocado. Ninguém é obrigado a trabalhar à uma hora da manhã. Ainda mais de graça. Obviamente, o policial nem sequer cogitava pagar. Também, confesso, fiquei sem ação. O garoto, já acostumado à dura vida na rua, ajoelhou-se. Tirou um pano da caixa de engraxate. Lustrou ambos os sapatos. Mas, ao abrir a caixa, subiu um cheiro de cola no ar.

         — É cola? — disse o policial.         

Percebi uma acusação a caminho. Lembrei-me dos meus tempos de criança, quando havia um sapateiro perto de casa. Às vezes a sola do meu sapato soltava, e ele colava novamente. Não sou ingênuo a ponto de achar que o garoto fosse completamente inocente. Mas, segundo acredito, até qualquer prova em contrário ninguém é culpado. Talvez carregar cola fosse normal para um engraxate.

Comentei:

-— A cola pode servir para consertar uma sola solta, por exemplo.

O policial me encarou e não respondeu. Olhou o garoto, ameaçador. Decidi permanecer na banca. A vítima ali era o garoto. Por que motivo um policial acha que tem o direito de usufruir trabalho gratuito? Ainda mais de madrugada? Já vi isso acontecer várias vezes. E comum um policial entrar em um bar e consumir sem botar a mão no bolso. Não acho correto. E o mais interessante é que estou do lado dos policiais. São mais do que necessários, com a violência de hoje em dia. Não têm vida fácil, não. O salário é baixo. Pequeno, para o risco que todo policial corre diariamente. Uma vez conversei com um policial e ele desabafou:

— Imagine o que é sair para trabalhar todo dia sem saber se vou voltar vivo para casa. Além de ganhar pouco, muitos até têm de esconder a profissão, para não sofrer hostilidades na vizinhança. Mas é justamente por isso que sua atitude deveria ser completamente outra. O policial deve ser visto como um amigo. Por todos nós. Mas fundamentalmente pelos mais pobres, mais carentes, que só têm a eles para recorrer. Pequenos abusos, como espichar o pé para lustrar o sapato de madrugada, levam à desconfiança. Ao medo. À perda de confiança necessária para fazer denúncias. A polícia precisa do apoio da população. Como conquistá-lo com atitudes nesse estilo?

Certamente, o pequeno engraxate estava apavorado. A presença da cola na caixa de trabalho talvez merecesse uma conversa. Um encaminhamento. Talvez eu estivesse errado em sair tão prontamente em sua defesa. Mas o que havia lá era apenas ameaça. Terror. 

O rapaz da banca terminou de contar o dinheiro e deu duas notas de dez reais ao garoto. Seu faturamento no dia, provavelmente. Ele partiu. O policial saiu em seguida. Voltei para meu prédio sentindo uma grande tristeza. Enquanto continuarem os pequenos abusos, muita coisa grande vai ficar sem solução.

 Entendendo o texto

  01. O que o autor observa ao entrar na banca de revistas na crônica "Pequenos Abusos"?

       A) Jornais espalhados.

       B) Montinhos de dinheiro.

       C) Máquina de café.

       D) Revistas empilhadas.

02. O que o garoto engraxate faz quando o policial entra na banca?

      A) Corre para fora.

      B) Conta dinheiro.

      C) Lustra os sapatos do policial.

      D) Pede uma carona.

03. Qual é a ordem dada pelo policial ao garoto?

      A) Contar o dinheiro.

      B) Comprar jornais.

      C) Lustrar os sapatos.

      D) Fechar a banca.

04. Como o autor reage à situação do garoto engraxate?

     A) Fica chocado.

     B) Ri da situação.

     C) Ignora o ocorrido.

     D) Oferece ajuda financeira.

05. O que o policial observa na caixa de engraxate do garoto?

     A) Dinheiro picadinho.

     B) Balas e doces.

     C) Ferramentas de trabalho.

     D) Um cheiro de cola.

06. O que o autor comenta sobre a presença da cola na caixa do engraxate?

    A) Sugere que pode ser usada para consertar sapatos.

    B) Acusa o garoto de má conduta.

    C) Ignora o assunto.

    D) Oferece uma explicação alternativa.

07. O que o policial faz após o garoto lustrar seus sapatos?

    A) Paga pelo serviço.

    B) Ameaça o garoto.

    C) Ignora o garoto.

    D) Prende o garoto.

08. Como o autor descreve a atitude do policial em relação ao trabalho do garoto?

    A) Correta e justa.

    B) Inadequada e abusiva.

    C) Simpática e compreensiva.

    D) Desinteressada e apática.

09. Qual é a preocupação do autor em relação aos pequenos abusos policiais?

    A) Eles levam à desconfiança e ao medo.

    B) Eles aumentam a confiança da população.

    C) Eles não têm impacto significativo.

    D) Eles são inevitáveis na sociedade.

10. Como o autor se sente ao voltar para seu prédio no final da crônica?

    A) Feliz.

    B) Enraivecido.

    C) Triste.

    D) Indiferente.

 

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