Crônica: Tudo
mais barato
Fernando Sabino
Naquela manhã, quando o carro oficial o
conduzia ao Ministério, lembrou-se do supermercado na Praça da Bandeira:
-- Você precisa dar um pulo lá um dia
desses – um amigo lhe havia recomendado: – É tudo mais barato.
-- Siga para a Praça da Bandeira –
ordenou ao motorista.
Depois de se embaraçar nas filas que se
formavam à entrada, disputando gêneros de primeira necessidade, perdeu-se por
entre as prateleiras de mercadorias menos procuradas, pegue e pague.
Tudo realmente mais barato – sua mulher
ficaria satisfeita. Foi pegando o que lhe ocorria levar: latas de conserva,
queijos, vinho, azeite, biscoito, balas para as crianças. Logo precisou de um
dos carrinhos de arame enfileirados na porta. Estranhou que ninguém ali os
usasse. Não seria costume da casa?
Encaminhou-se afinal para a saída,
formando na longa fila dos que passavam pela caixa: meio quilo de arroz, um
quilo de farinha, meio quilo de açúcar.
Olhou para os que já aguardavam atrás
dele: as mesmas caras sérias, encardidas de pobreza, cada um com sua comprinha
humilde na mão. E ele ali, o único de paletó e gravata, atravessado no caminho
com seu carrinho repleto. Era tão chocante o contraste, que a cada passo
parecia estar sendo empurrado para frente, em estocadas de muda acusação.
Pensou ainda se não seria o caso de desistir, recolocar a mercadoria no lugar,
ou abandonar ali mesmo o carrinho e ir saindo displicente, como quem não quer
nada.
-- Cinquenta cruzeiros.
-- Trinta e dois cruzeiros.
Quando chegasse a sua vez, estaria
perdido: uma semana de ordenado, no mínimo, daquela gente que o cercava.
Enxugou o suor da testa. Atrás dele alguém comentava:
-- Esse aí vai levar pelo menos meia
hora, está comprando a casa inteira.
-- Cruz credo! – soltou uma voz de
mulher.
E outra ainda:
-- Até parece uma babá, empurrando
carrinho.
Ouviram-se risos, já de franca
hostilidade. E chegou enfim a sua vez. Procurou ser o mais expedito possível:
-- Isto... isto... e mais isto...
A moça ia registrando, espantada e
aborrecida.
-- Cinco mil, oitocentos e cinquenta
cruzeiros – contou afinal, implacável, para ele e para quem mais quisesse
ouvir.
Correu pela fila um murmúrio de
admiração.
-- Agora tire daí, por favor.
Ele desfolhava atabalhoadamente um maço
de notas de quinhentos que retirara do bolso da calça para pagar a mercadoria.
Nunca aquela gente tinha visto tanto dinheiro junto.
-- Tirar como? – já desesperado, olhou em
torno: – A mocinha ali não tem um saco de papel?
-- Em saco de papel não cabe tudo isso.
O próximo, por favor.
Na fila já se avolumava um resmungo de
impaciência. Sem saber o que fazer, ele tentou recolher as coisas com os dois
braços, deixou cair uma lata, o pacote de biscoitos se arrebentou. Já se
dispunha a largar tudo e sair correndo, quando viu um caixote de papelão a um
canto. Arrastou-o com a ponta do pé, despejou tudo dentro dele. Ao erguê-lo
pela tampa, viu, agoniado, que o fundo se abria e a mercadoria se espalhava
pelo chão. Uma garrafa de vinho tinto se espatifou no cimento. Agachou-se
apanhando freneticamente o que podia e atirando de novo dentro do caixote.
Depois ergueu-o a custo, contendo com os braços as abas do fundo.
-- Com licença. Com licença.
Abriu caminho aos tropeços,
precipitou-se até o carro que o aguardava, pediu auxílio ao motorista:
-- Vamos, me ajude aqui. E siga para
casa, depressa.
Despejada a mercadoria no banco de
trás, conseguiu, enfim, abandonar o local do crime, seguindo para a Zona Sul.
Se percebessem que se tratava de carro oficial, a agressiva curiosidade que o
acompanhou até a porta se transformaria em depredação e até mesmo linchamento.
Não perceberam; pôde, assim, regressar
ao seu mundo farto e repousante, até onde não chegavam ainda os atropelos,
apertos e aflições dos que estão do outro lado.
Mas não por muito tempo – pensou,
preocupado.
Fernando Sabino. In: A falta
que ela me faz.
7ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1981.
Entendendo a crônica:
01 – Reescreva as frases,
substituindo as palavras destacadas por sinônimos:
a)
“Ouviram-se
risos, já de franca hostilidade.”
Escutaram-se risos, já de sincera inimizade.
b)
“Ele desfolhava atabalhoadamente um maço de notas...”
Ele desfolhava atrapalhadamente um maço de notas.
c)
“Na fila se
avolumava um resmungo de impaciência.”
Na fila aumentava um resmungo de impaciência.
02 – Complete as frases com
as palavras abaixo:
Linchamento
– murmúrio – farto – atropelo – displicente – freneticamente.
a)
As garotas aplaudiam freneticamente seu ídolo.
b)
Naquele atropelo todo
perdi as chaves do carro.
c)
Ele pouco ligava para as recomendações dos
pais e continuava sendo o aluno displicente
de sempre.
d)
O linchamento
é uma forma injusta de justiça popular.
e)
Ouvia-se, naquele momento, um murmúrio de protesto no fundo do salão.
f)
Ela vivia naquele mundo farto; nunca conheceu as dificuldades da pobreza.
03 – O texto “Tudo mais
barato” é narrado em terceira pessoa. Nele, o autor desempenha o papel de:
( ) Narrador-personagem.
(X)
Narrador-observador.
04 – Quem é a personagem
principal do texto? A que classe social pertence? Comprove sua informação com
elementos do texto.
É um funcionário do Ministério. A
personagem pertence a uma classe social elevada. Trata-se de um funcionário do
governo que utiliza carro oficial com motorista.
05 – O funcionário do
Ministério pretendia comprar gêneros de primeira necessidade?
Não. Pois se dirigiu às prateleiras de
mercadorias menos procuradas.
06 – O funcionário do
Ministério contrastava com as demais pessoas que faziam compras no
supermercado. Em que consistia esse contraste?
Era o único de paletó e gravata, com carrinho repleto,
ostentando uma situação econômica invejável. As demais pessoas estavam
malvestidas e carregavam poucos produtos, porque eram muito pobres.
07 – Podemos considerar o
protagonista uma pessoa insensível e indiferente à pobreza das pessoas que
faziam compras naquele supermercado? Por quê?
Não. Em certo
momento, ele ficou tão perturbado com a pobreza daquela gente que pensou em
recolocar as mercadorias na prateleira e desistir da compra.
08 – O funcionário do
Ministério pensou em abandonar o carrinho e deixar o supermercado por que:
( ) Ficou irritado com os comentários dos
fregueses na fila.
(X) Percebeu que
sua situação econômica contrastava enormemente com a pobreza daquela gente.
09 – Assinale o CORRETO:
O funcionário do Ministério
foi invadido pelos sentimentos de:
( ) Compreensão e solidariedade.
(X)
Constrangimento e pânico.
( ) Agressividade.
10 – Por que se criou um
clima de hostilidade em relação ao funcionário do Ministério?
Suas atitudes
provocaram um sentimento de injustiça nas pessoas e, também, por incomodar os
presentes.
11 – Por que o fato de ele
estar usufruindo do carro oficial poderia provocar depredação e linchamento?
O povo não aprovaria essa mordomia, à
custa do dinheiro público.
12 – A que conclusão o
funcionário do Ministério chegou depois dos acontecimentos no supermercado?
Refletindo sobre a enorme diferença
social e econômica que o distanciava daquela gente humilde, concluiu que sua
situação privilegiada não duraria para sempre.
13 – Nesta crônica, Fernando
Sabino denuncia principalmente:
( ) A utilização indevida de carros oficiais.
(X) As
desigualdades sociais.
14 – Você acha correto usar
bens públicos, como carros oficiais, em proveito pessoal? Por quê?
Resposta pessoal do aluno.
15 – Na sua opinião, por que
existem desigualdades sociais?
Resposta pessoal
do aluno.
16 – Pra você, como podem
ser combatidas as desigualdades sociais para se construir um mundo mais justo?
Resposta pessoal
do aluno.