Conto: Kholstomér (fragmento)
Liev Tolstói
[...] Era inverno, época de festas. Não
me deram nem de comer nem de beber durante o dia inteiro. Fiquei sabendo depois
que aquilo acontecera porque o cavalariço estava bêbado. Naquele mesmo dia, o
chefe veio à minha baia, deu pela falta de ração e foi-se embora xingando com
os piores nomes o cavalariço, que não estava ali. No dia seguinte, acompanhado
de um peão, o cavalariço trouxe feno à nossa baia; notei que ele estava
especialmente pálido, abatido, tinha nas costas longas algo significativo que
despertava piedade. Ele atirou feno por cima da grade, com raiva; eu ia metendo
a cabeça em seu ombro, mas ele deu um murro tão dolorido no meu focinho, que me
fez saltar pra trás. E ainda por cima chutou-me a barriga com a bota.
-- Não fosse esse lazarento, nada disso
tinha acontecido.
-- Mas o que aconteceu? – perguntou o
outro cavalariço.
-- Os potros do conde ele não
inspeciona, mas este ele examina duas vezes por dia.
-- Será que deram o malhado mesmo pra
ele?
-- Se deram ou venderam, só o diabo
sabe. O certo é que você pode até matar de fome todos os cavalos do conde, e
nada acontece, mas você se atreva a deixar o potro dele sem ração... Deita aí,
diz ele, e tome chicotada. Não tem senso cristão. Tem mais pena de animal do
que de homem; logo se vê que não usa cruz no pescoço... ele mesmo contou as
chicotadas que me deu, o bárbaro. O general não bate assim, ele deixou as
minhas costas em carne viva... pelo visto, não tem alma cristã.
Eu entendi bem o que eles disseram
sobre os lanhões e o cristianismo, mas naquela época era absolutamente obscuro
para mim o significado das palavras meu, meu potro, palavras através das quais
eu percebia que as pessoas estabeleciam uma espécie de vínculo entre mim e o
chefe dos estábulos. Não conseguia entender de jeito nenhum o que significava
me chamarem de propriedade de um homem. As palavras “meu cavalo”, referidas a
mim, um cavalo vivo, pareciam-me tão estranhas quanto as palavras “minha terra”,
“meu ar”, “minha água”.
No
entanto, essas palavras exerciam uma enorme influência sobre mim. Eu não parava
de pensar nisso e só muito depois de ter as mais diversas relações com as
pessoas compreendi finalmente o sentido que atribuíam àquelas estranhas
palavras. Era o seguinte: os homens não orientam suas vidas por atos, mas por
palavras. Eles não gostam tanto da possibilidade de fazer ou não fazer alguma
coisa quanto da possibilidade de falar de diferentes objetos utilizando-se de
palavras que convencionam entre si. Dessas, as que mais consideram são “meu” e “minha”,
que aplicam a várias coisas, seres e objetos, inclusive à terra, às pessoas e
aos cavalos. Convencionaram entre si que, para cada coisa apenas um deles diria
“meu”. E aquele que diz “meu” para o maior número de coisas é considerado o
mais feliz, segundo esse jogo. Para que isso, não sei, mas é assim. Antes eu
ficava horas a fio procurando alguma vantagem imediata nisso, mas não dei com
nada.
Muitas das pessoas que me chamavam, por
exemplo, de “meu cavalo” nunca me montavam; as que o faziam eram outras,
completamente diferentes. Também eram bem outras as que me alimentavam. As que
cuidavam de mim, mais uma vez, não eram as mesmas que me chamavam “meu cavalo”,
mas os cocheiros. Os tratadores, estranhos de modo geral. Mais tarde, depois
que ampliei o círculo de minhas observações, convenci-me de que, não só em
relação a nós, cavalos, o conceito de “meu” não tem nenhum outro fundamento
senão o do instinto vil e animalesco dos homens, que eles chamam de sentimento
ou direito de propriedade. O homem diz: “minha casa”, mas nunca mora nela,
preocupa-se apenas em construí-la e mantê-la. O comerciante diz: “meu bazar”, “meu
bazar de lãs”, por exemplo, mas não tem roupa feita das melhores lãs que há no
seu bazar. Existem pessoas que chamam a terra de “minha”, mas nunca a viram nem
andaram por ela. Existem outras que chamam de “meus” outros seres humanos, mas
nenhuma vez sequer botaram os olhos sobre eles, e toda a sua relação com essas
pessoas consiste em lhes causar mal. Existem homens que chamam de “minhas” as
suas mulheres ou esposas, mas essas mulheres vivem com outros homens. As
pessoas não aspiram a fazer na vida o que consideram bom, mas a chamar de “minhas”
o maior número de coisas. Agora estou convencido de que é nisso que consiste a
diferença essencial entre nós e os homens. É por isso que, sem falar das outras
vantagens que temos sobre eles, já podemos dizer sem vacilar que, na escada dos
seres vivos, estamos acima das pessoas; a vida das pessoas pelo menos daquelas
com as quais convivi traduz-se em palavras; a nossa, em atos. E eis que foi o
chefe dos estábulos que recebeu o direito de me chamar de “meu cavalo”; por
isso açoitou o cavalariço. Essa descoberta me deixou profundamente
impressionado e [...] levou-me a me tornar o malhado ensimesmado e sério que eu
sou.
TOLSTÓI, Liev. O
diabo e outras histórias. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
Fonte: Livro – Tecendo Linguagens – Língua Portuguesa – 8º
ano – Ensino Fundamental – IBEP 4ª edição São Paulo 2015 p. 167-9.
Entendendo o conto:
01 – O primeiro parágrafo do
texto situa o leitor. De que maneira ele faz isso?
Esse parágrafo
indica o tempo em que a narrativa se desenrola (“Era inverno, época de festas”),
e localiza o leitor a respeito de onde ocorreram os fatos e explica em quais
condições o cavalo vivia.
02 – Que tipo de narrador
esse conto apresenta? Quem é ele?
Narrador-personagem.
Ele é assumido pela figura de um animal, um cavalo.
03 – Releia o trecho a
seguir, em que a personagem principal expõe suas ideias:
“[...]
O homem diz: “minha casa”, mas nunca mora nela, preocupa-se apenas em
construí-la e mantê-la. O comerciante diz: “meu bazar”, “meu bazar de lãs”, por
exemplo, mas não tem roupa feita das melhores lãs que há em seu bazar. Existem
pessoas que chamam a terra de “minha”, mas nunca a viram nem andaram por ela.
Existem outras que chamam de “meus” outros seres humanos, mas nenhuma vez
sequer botaram os olhos sobre eles, e toda a sua relação com essas pessoas
consiste em lhes causar mal. [...]”
a) Nesse trecho, que ideia é reforçada pela repetição das expressões “O homem diz”, “O comerciante diz”, “Existem pessoas” e “Existem outras”?
Os exemplos que o cavalo apresenta mostram como a postura dos seres
humanos se repete, corroborando a teoria da personagem sobre a necessidade
humana de ter, de possuir. A repetição dessas expressões ajuda a construir a
argumentação do cavalo e também dá a ideia de generalização.
b) Em seu caderno, indique qual das frases a seguir, retiradas do texto, corresponde à ideia apresentada no trecho:
I. E aquele que
diz meu para o maior número de coisas é considerado o mais feliz [ ].
II. As pessoas não aspiram a
fazer na vida o que consideram bom [...].
III. [ ] já podemos dizer
sem vacilar que, na escada dos seres vivos, estamos acima das pessoas [ ].
04 – Era o dono do cavalo
quem cuidava dele? O que o cavalo pensava a respeito desse fato?
Não. O cavalo
estranhava o comportamento do dono, sentia a ausência de seus cuidados e
julgava estranha a maneira como os humanos lidavam com questões de propriedade,
pois aquele que o chamava “meu” não era o mesmo que cuidava dele.
05 – O que o cavalo percebeu
a respeito do uso que os humanos faziam da palavra meu? Que relação ele
estabeleceu entre essa palavra e o conceito de felicidade?
Ele percebeu que
o uso dessa palavra era atribuído à noção de propriedade e de felicidade, ou seja,
era considerado mais feliz aquele que dissesse “meu” para o maior número de
coisas.
06 – O cavalo conseguia
compreender esse tipo de comportamento? Em seu caderno, transcreva um trecho
que comprove a sua resposta.
Não. “Para que
isso, não sei, mas é assim. Antes eu ficava horas a fio procurando alguma
vantagem imediata nisso, mas não dei com nada.”
07 – Que sentido a palavra “meu”
tinha para o cavalo? O que ele argumenta sobre isso?
Para o cavalo, a
palavra “meu” só fazia sentido em uma relação próxima, concreta, de
afetividade. Ele argumenta que quem era seu dono não o alimentava nem montava,
e isso o decepcionava.
08 – É possível afirmar que,
no texto, a personagem do cavalo foi humanizada? Por quê?
Sim, pois o
cavalo apresenta sentimentos e atitudes normalmente atribuídos a seres humanos,
visto que faz reflexões no decorrer do conto.
09 – No conto, há uma
inversão entre o que é humano e o que é animal. Explique essa afirmação.
O cavalo, um
animal, aparece na história repleto de características que o humanizam,
enquanto o ser humano é apresentado de maneira animalizada em consequência do
significado que atribui à palavra “meu”, do modo como entende o conceito de
propriedade e de como se relaciona com o outro e com aquilo que lhe pertence.
10 – Estabeleça relação
entre o conto e o título deste capítulo: “Entre o ser e o ter”.
O conto nos
mostra que o primordial não está no “ter”, mas no “ser”.