Poema: Num planeta enfermo
Carlos Drummond de Andrade
A culpa é tua, Pai Tietê? A culpa
é tua se tuas águas estão podres de fel e majestade falsa? Mário de Andrade
(Meditação sobre o Tietê)
Cai neve em Parnaíba, noiva
branca.
Vem dos lados de Pirapora do
Bom Jesus.
Presente de Deus, com
certeza,
a seus filhos que jamais
viram Europa.
Ou talvez cortesia do
Prefeito?
Moleques, brinquem na neve
pura e rara.
Garotas, não tenham
cerimônia.
Cai neve em Parnaíba, é
promoção.
O senhor que é tabelião, o
dr. promotor
por que não vão fazer
bonecos dessa neve
especial, que reacende
o espírito infantil?
Correm todos a ver a neve
santa,
a alvorejar em sua alvura.
Olha a rua vestida de sonho,
olha o jardim envolto em
toalha de nuvens,
olha nossas tristezas
lavadas, enxaguadas!
O professor chega perto e
não se encanta.
Esse cheiro… diz ele.
Realmente,
quem pode com esse cheiro
nauseante?
A neve foi malfeita, não se
faz
neve como em filmes e
gravuras.
E me dói a cabeça, diz
alguém.
E a minha também, e o
mal-estar
me invade o corpo. Desculpem
se vomito
à vista de pessoas tão
distintas.
Envenenada morre a
flor-de-outubro
no canteiro onde o branco
deixa uma escura marca de
gordura.
Marcadas ficarão
as casas coloniais da Praça
da Matriz
tombadas pelo IPHAN?
A pele dos rostos mais
limpinhos
— ai Rita, ai Mariazinha —
cheira a óleo queimado.
Estranha neve:
espuma, espuma apenas
que o vento espalha, bolha
em baile no ar,
vinda do Tietê alvoroçado
ao abrir de comportas,
espuma de dodecilbenzeno
irredutível,
emergindo das águas
profanadas
do rio-bandeirante, hoje
rio-despejo
de mil imundícies do
progresso.
Pesadelo? Sinal dos tempos?
Jeito novo de punir cidades,
pois a Bíblia
esgotou os castigos de água
e fogo?
Entre flocos de espuma
detergente
vão se findar os dias
lentamente
de pecadores e não
pecadores,
se pecado é viver entre rios
sem peixe
e chaminés sem filtro e
monstrimultinacionais,
onde quer que a valia
valha mais do que a vida?
Minha Santana pobre de
Parnaíba,
meu dorido Bom Jesus de
Pirapora,
meu infecto Anhambi de
glória morta,
fostes os chamados
não para anunciar uma outra
luz do dia,
mas o branco sinistro, o
negro branco,
o branco sepultura do que é
cor, perfume
e graça de viver, enquanto
vida
ou memória de vida se
consente
neste planeta enfermo.
Carlos Drummond de
Andrade. Discurso de primavera e algumas sombras. São Paulo: Companhia das
Letras. www.carlosdrummond.com.br.
Fonte: Língua
Portuguesa – Caminhar e transformar – Aos finais do ensino fundamental – 1ª
edição – São Paulo – FTD, 2013. p. 105-8.
Entendendo o poema:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Alvorejar: tornar alvo, branco.
·
Anhambi
e Anhembi: antigo nome do rio Tietê.
·
Dodecilbenzeno: composto químico utilizado na fabricação de detergentes.
·
Dorido: cheio de dor, dolorido.
·
Enfermo: doente.
·
IPHAN: sigla de Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,
responsável pelo tombamento de prédios históricos.
·
Pirapora
do Bom Jesus: cidade do interior
de São Paulo, às margens do Tietê.
·
Valia: lucro, nesse contexto.
·
Santana
de Parnaíba: cidade do interior
de São Paulo, às margens do Tietê.
02 – Quantas estrofes o
poema apresenta?
07 (sete) estrofes.
03 – O poema apresenta
rimas?
( ) Sim. (X) Não.
04 – Releia estes versos d
primeira estrofe.
“Cai
neve em Parnaíba,
Noiva branca.”
As palavras neve e noiva foram
utilizadas num sentido diferente do usual e do que aparece nos dicionários. A
que se referem as palavras neve e noiva nesses versos?
Elas se referem à
espuma de detergente.
05 – Releia a terceira
estrofe do poema. Copie um verso com palavra utilizada em sentido conotativo.
Olha a rua
vestida de sonho / olha o jardim envolto em toalha de nuvens.
06 – Na terceira estrofe, o
eu lírico apresenta o comportamento da população em relação à neve.
a)
A princípio, como a neve é vista pela
população?
Como uma coisa bela, agradável de olhar.
b)
O que acontece ao final da terceira estrofe?
O cheiro da espuma é desagradável e provoca náuseas e vômitos.
07 – Na quarta estrofe, o eu
lírico mostra as consequências da neve. Quais são?
As casas colônias
tombadas ficarão com marcas de gordura e os rostos, com cheiro de óleo
queimado.
08 – Na quinta estrofe, o eu
lírico explicita o que seria a neve.
a)
De onde vem a neve que invade a cidade?
Do rio Tietê.
b)
Por que isso acontece? Justifique com um
verso dessa estrofe.
Porque o rio recebe a espuma de detergente e “mil imundícies do
progresso”. Os quatro últimos versos ressaltam isso.
09 – Que crítica o eu lírico
apresenta nas duas últimas estrofes?
O eu lírico faz
uma crítica ao capitalismo selvagem, que, na ganância por mais lucro, coloca o
planeta em perigo (enfermo).
10 – Na sexta estrofe, há a
palavra monstrimultinacionais criada
pelo eu lírico. Qual é o sentido dessa palavra?
As multinacionais
são monstros que destroem o rio com seus esgotos em nome dos lucros.